Arquivo da tag: aborto

Armadilhas

Acho que é essencial esclarecer que os conceitos de “direita” e “esquerda” nada tem a ver com moral, costumes, sexualidade, aborto, feminismo, drogas, combate à criminalidade etc. Sua origem está no parlamento francês na época da Revolução Francesa, onde os jacobinos – exaltados e radicais representantes dos pequeno-burgueses – sentavam-se à esquerda enquanto os girondinos – considerados mais moderados e conciliadores, representantes interesses comerciais e a visão de mundo da burguesia ilustrada, que oscilava entre a monarquia constitucional e a república – sentavam-se à direita. Os conceitos clássicos de esquerda e direita tem a ver com o tamanho do estado e o foco que se dá ao proletariado e à burguesia no conflito de classes. Também se relaciona com o valor da propriedade e as questões que envolvem o valor do indivíduo e sua inserção nas forças produtivas de uma determinada sociedade.

A partir desse entendimento, é plenamente possível a um direitista ser um ferrenho defensor da liberação e descriminalização do aborto. Aliás, é o que os liberais pregavam: cada sujeito é dono do seu corpo e do seu destino. O mesmo pode ocorrer com a liberação das drogas, tratada como uma decisão pessoal que só diz respeito à quem usa. Da mesma forma nada impede a um comunista ser contra a liberação do aborto por questões pessoais e religiosas, até porque as crenças de cada sujeito em nada impedem alguém de adotar o socialismo como ideário de lutas.

Essa confusão ocorre apenas porque se criou a ideia de que as formas de organização social e econômica devem se misturar com posições religiosas, sexuais e de costumes. Esta confusão não foi natural; ela foi induzida pelos capitalistas americanos para dividir a consciência nacional entre republicanos e democratas. De um lado os conservadores “wasp” (anglo saxão branco protestante) no “Bible Belt” (cinturão da Bíblia)do meio-oeste americano, religiosos e anti-gays, contra a liberação das drogas, contrários ao aborto, etc. Do outro lado feministas, pró-escolha (pro choice), negros, gays, trans, usuários de maconha, universitários, professores, etc.

Nessa configuração as elites americanas retiraram do campo simbólico de disputas os debates relativos à saúde universal, brutalidade policial, moradia, pobres, moradores de rua, epidemia de narcóticos, despesas militares e passariam a ditar a narrativa, estimulando o debate sobre pronomes neutros, censura, ataques às piadas machistas, representatividade negra, feminina, trans, etc. Seria a arena da moralidade e dos costumes.

Assim, todos concordariam com o “fim da história” de Francis Fukuyama, com a vitória definitiva do capitalismo, a livre iniciativa, o imperialismo, a invasão de outros países, as classes sociais, a meritocracia, o militarismo, os golpes, os ataques por procuração, o massacre dos palestinos etc, mas teríamos um espaço enorme para debater se um professor deve ser expulso da escola por chamar uma aluna trans pelo nome que consta na chamada.

O mesmo ocorre desde sempre no Brasil. A direita historicamente procura as pautas morais no sentido de criar pânico na população. Desde o “mar de lama” de Getúlio, o apartamento de Juscelino, “Lula é abortista“, “Lula vai fechar igrejas“, “o PT é ladrão”, “mamadeira de piroca“, “ideologia de gênero nas escolas“, “kit gay” e agora o “banheiro unissex“. Essas são pautas plantadas no debate nacional como manobra diversionista, para que não se discuta financiamento do SUS, salário mínimo, suporte às universidades públicas, ensino de qualidade, salário de professores, fomento do pequeno produtor, política de preservação ambiental, papel das Forças Armadas, reforma tributária, reforma política e do judiciário, desindustrialização, BRICS e controle público das mídias, entre tantas outras questões essenciais para o país.

Enquanto a extrema direita mais reacionária se afasta dos temas realmente relevantes, ela insiste em empurrar o debate para a arena que escolhe – e nós frequentemente caímos nessa armadilha. Não é por acaso que sempre ao se aproximarem as eleições surgem os assuntos e as “fake news” relacionadas ao “satanismo” de pessoas da esquerda, o tema do fechamento (ou tributação) das igrejas, dos direitos das pessoas trans, do casamento gay, dos costumes “depravados” nas universidades, de Nossa Senhora, de Jesus na goiabeira, etc.

É tempo de educar as pessoas, em especial do campo progressista, que o socialismo não é uma doutrina que se importa com o rabo de qualquer um de nós, mas um modelo de sociedade pautado na colaboração, na solidariedade e na definitiva eliminação das classes sociais que nos dividem.

Chega dessa p*rra de moralismo f*did* do caralh*.

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Política

Roe vs Wade

Foto: Lorie Shaull / Wikimedia. Norma McCorvey é a da esquerda ao lado de sua advogada Gloria Allred

A Suprema Corte americana derrubou nesta última sexta-feira (24 de junho) a sua própria decisão de 1973 sobre o tema do aborto – tomada no ápice das manifestações americanas por direitos humanos e contrárias à guerra do Vietnã – que ficou conhecida como “Roe versus Wade”.

O nome “Roe vs Wade” surgiu em um caso famoso nos Estados Unidos protagonizado por uma mulher solteira chamada Norma McCorvey que, insurgindo-se contra uma lei do Texas que considerava o aborto ilegal, processou os Estados Unidos exigindo que os princípios de autonomia e inviolabilidade do seu corpo fossem garantidos para que pudesse realizar uma interrupção legal da sua gestação. Para garantir sua privacidade em um julgamento que envolvia a questão delicada do aborto, ela foi chamada de “Jane Roe”. No final, este julgamento histórico da Suprema Corte derrubou a constitucionalidade da lei do Estado do Texas que considerava o aborto um ato criminoso. O promotor público do caso se chamava Henry Wade, e por esta razão o caso se tornou mundialmente conhecido como “Roe vs Wade”.

* É bom lembrar que o caso foi julgado 3 anos depois da queixa, quando ela já havia ganhado seu filho e dado para adoção. Mais um exemplo de justiças que falham por tardar *

Estranhamente, Norma McCorvey aderiu ao movimento anti-aborto americano em 1995, tendo sido “convertida” por um pastor de sua cidade. Seu arrependimento foi expresso no livro “Won by Love” (Vencida pelo Amor), mas depois descobriu-se que ela foi paga pelos conservadores americanos dos movimentos “pró-vida”, tendo sido sustentada por eles até o fim de sua vida. “O ex-líder da Operação Resgate Rob Shenck, que mais tarde renunciou ao movimento antiaborto, disse aos jornalistas que eles temiam que ela pudesse desertar, então foi paga para permanecer do lado deles. Quando apareceu o depoimento de McCorvey sobre ser paga, Flip Benham, o pastor que a batizou na piscina, afirmou sem qualquer sinal de arrependimento: “Sim, mas ela escolheu ser usada. Isso se chama trabalho, é isso que você é pago para fazer”.

Foto: Washington Post

Esta decisão da suprema corte garantiu em todo o território americano o direito ao aborto, baseado nas ideias liberais de autonomia e cidadania. Com a decisão do dia 24 não haverá uma proibição ou criminalização imediata dos abortos, mas a decisão será garantida aos estados da federação, que por sua vez terão o poder de definir se garantem ou proíbem aos seus cidadãos esse tipo de procedimento. O temor dos grupos “pro-choice” (a favor da escolha soberana da mulher) é de que metade dos Estados americanos terão normas proibindo ou dificultando ao máximo a realização de abortos, em especial os estados do meio-oeste – o “Bible Belt” (cinturão da Bíblia) – mais conservadores, religiosos e ligados ao partido Republicano.

Diferente da Suprema Corte brasileira (o STF) a Suprema Corte dos EUA é composta por apenas 9 membros. No atual julgamento, seis deles votaram a favor da derrubada da decisão “Roe vs Wade”, enquanto outros 3 permaneceram ao lado do direito das mulheres de disporem livremente sobre seus corpos, inclusive para interromper gestações indesejadas. Os 3 ministros da suprema corte indicados por Donald Trump (Gorsuch, Kavanaugh e Barrett) votaram, como era de se esperar, a favor da derrubada da jurisprudência que garantia o direito ao aborto em nível nacional.

Aqui se pode estabelecer uma linha clara entre a decisão da suprema corte americana e os abusos do STF no que diz respeito à livre expressão, conforme determinado pela Constituição Federal. O fato é que os judiciários americano e brasileiros se tornaram órgãos legisladores. Por incompetência do legislativo de ambos os países, ou pelo furor que o poder desperta nesses personagens, o debate sai do parlamento e adentra as salas dos tribunais constitucionais. No caso do Brasil, pela fragilidade das instituições e pelo oportunismo político, permite-se que ministros – como o famigerado Alexandre de Moraes – use de seu poder para interpretar da sua maneira pessoal a Constituição Federal, inclusive indo de forma despudorada contra o que está explicito em seu texto. Assim, uma instância decisória não eleita tem mais poderes do que o executivo e o legislativo. A ditadura jurídica que se instala no Brasil é muito mais dramática e trágica do que o desastre do bolsonarismo, tendo em vista o fato de que podemos trocar o presidente em menos de 100 dias, mas o ministro – inobstante as agressões que fizer à Constituição – só poderá ser retirado em 2043 (dentro de 21 anos) quando for pego pela aposentadoria compulsória.

Suas atitudes impondo censura à imprensa do PCO e contra as críticas realizadas à sua atuação como ministro sequer merecem ser chamados de “censura”, pois que esta se aplica à ação prévia à publicação de uma notícia ou opinião que desagrade aos poderosos. Não, é pior do que isso: ele impede que a imprensa funcione dentro do preceito constitucional de livre e irrestrita expressão, o que configura uma ação ditatorial digna das ditaduras mais fechadas do mundo.

Um país que se pensa democrático jamais poderia tolerar que sua constituição fosse usada de forma arbitrária por juízes que, no caso de Alexandre de Moraes, só entrou para o STF após um golpe de estado claro e inquestionável, com a retirada da presidente Dilma e o surgimento da figura nefasta de Michel Temer, patrocinado pelos grupos mais reacionários e golpistas deste país.

Desta forma faz-se urgente uma reforma na Suprema Corte do Brasil, que limite os abusos de ministros e que diminua a poder desmedido que estes personagens tem nos destinos do país. Caso contrário, as eleições serão tão somente encenações patéticas para ludibriar o povo, que continuará governado por um judiciário venal, acovardado, anti democrático e ditatorial.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Causa Operária, Política

Pautas e Lutas

Na reunião político-partidária de esquerda em que estive envolvido ontem em São Paulo escolhi fazer parte do grupo temático que debateria as questões das mulheres. Por certo que acabei chamando a atenção por ser o único homem em um círculo composto por duas dezenas de mulheres, de várias partes do Brasil, de diferentes etnias e de distintas classes sociais. Mas, como acho que todos temos o direito de cultivar e expor nossas perspectivas sobre qualquer problema social, permaneci sentado aguardando humildemente a oportunidade de me manifestar.

Eu temia o que estava para ocorrer, e por isso mesmo estava preparado para desafiar o padrão dos debates. A coordenadora listou, como sugestão, que fossem debatidos três temas essenciais, os quais eu já sabia que estariam presentes.

1. Trabalho doméstico
2. Descriminalização do aborto
3. Violência contra a mulher

Fácil adivinhar, não? Estes são os três temas mais comuns em todos os debates feministas, e não há como negar sua importância ou relevância. O trabalho doméstico é um ponto nevrálgico da sociedade capitalista ao manter a mulher atrelada a uma rotina de trabalho estafante e não remunerado, condenando-a à dependência econômica e/ou à dupla jornada, sacrificando sua saúde e seu lazer. O debate sobre a dinâmica desse labor é essencial para a emancipação da mulher, a qual jamais ocorrerá sem a sua independência financeira.

Já o aborto é uma questão de saúde pública mas, anterior a isso, está o direito das mulheres de disporem livremente sobre seus corpos e seus destinos. É, portanto, um tema relacionado aos mais básicos direitos humanos reprodutivos e sexuais, pois tem repercussão na saúde e na proteção das mulheres. A luta pelo aborto livre e seguro não pode faltar em nenhum debate que se proponha a proteger socialmente as mulheres e seus filhos.

Por último, a violência doméstica contra a mulher. Triste perceber que esta drama social teve um aumento de 26%, nos últimos meses, em função da pandemia e da crise que a antecedeu. Todavia, a única resposta que temos oferecido a este problema nos últimos anos tem o caráter punitivista da Lei Maria da Penha que jamais solucionou o problema da violência de gênero porque ataca apenas a ponta do iceberg: o resultado social das frustrações acumuladas transformadas em violência. Como todas as ações que apontam para a punição, esta é mais uma medida de resultados pífios; a causa, como sabemos, é o capitalismo, porém nos parece mais fácil encarcerar pretos e pobres do que sanar nossa ferida social crônica.

Finda a apresentação eu sabia que a mesma lacuna desses grupos se repetiria e, por isso mesmo, pedi a palavra em primeiro lugar para que as pessoas que se manifestassem depois de mim pudessem pautar suas falas com o que eu tinha para lhes dizer.

Olhei para minhas colegas de causa socialista e disse:

“É provável que a maioria de vocês nunca passem por um aborto. Algumas, espero, nunca serão vítimas de violência de gênero, ao menos as agressões mais grosseiras. Algumas de vocês talvez tenham companheiros dispostos a dividir tarefas no lar. Entretanto, TODAS vocês estarão marcadas pelo parto, sem exceção. Sim, porque se não tiveram a oportunidade de parir, ou sequer desejam passar por esta experiência, certamente chegaram a este mundo através de um parto. Não é exagero dizer que o nascimento é um dos eventos mais marcantes na vida de homens e mulheres e nele podemos ver claras as marcas do capitalismo e do patriarcado, quando seus valores serão impostos e reforçados.

O nascimento de uma criança é o momento onde mais ocorre violência contra a mulher, que vai se manifestar na visão diminutiva e defectiva sobre ela, nas práticas desnecessárias, nos procedimentos anacrônicos, na perda dos seus direitos, na mudez da sua voz e na visão depreciativa que a sociedade lança sobre suas capacidades de gestar, parir e maternar com segurança.

Não haverá nenhum avanço nas lutas das mulheres sem que o parto e o nascimento livres tenham um lugar de destaque nas lutas pela dignificação feminina. É preciso que a esquerda se dê conta da importância do parto no discurso de emancipação. Como dizia Máximo Gorky “só as mães podem pensar no futuro, porque dão a luz à ele em suas crianças”, mas, digo eu, elas também vão parir e educar os reacionários, e por isso estas mulheres precisam encontrar no parto o momento de revolução de sua autoimagem, tornando clara sua nova trilha de autonomia, valor, coragem e liberdade – na direção do socialismo”.

Surpreendentemente todas as mulheres presentes concordaram que esse deveria ser um tópico que não poderia faltar, e muitas deixaram em suas falas depoimentos pessoais de maus tratos obstétricos, inclusive citando a epidemia de cesarianas como um aspecto dessa violência, que se mascara como cuidado tecnológico, limpo e asséptico, mas é dominado por uma perspectiva autoritária e alienante.

Mais tarde o trabalho do grupo temático foi lido na plenária e fiquei muito orgulhoso de ver a violência obstétrica levada a todos como um tema que não deve jamais ser esquecido nas pautas de luta das mulheres.

Não há porque naufragarmos no mar do pessimismo, pois sempre haverá motivos para manter a esperança.

Deixe um comentário

Arquivado em Política

Três pontos sobre espiritismo e aborto

Coloco aqui três pontos simples que explicam as razões pelas quais ser espírita não invalida um posição favorável à descriminalização do aborto:

1- É possível ser espírita e ser também a favor da legalização do aborto por razões de saúde pública. Não há mais como aceitar mulheres morrendo porque o aborto é criminalizado e estigmatizado. Chega. Ninguém é “a favor do aborto”, mas muitos consideram que esta ação está dentro das opções que uma mulher pode fazer sobre seu próprio corpo.

2- Espiritismo, como sempre afirmou Kardec, não é uma religião e nunca pretendeu sê-lo. A “religião espírita” é uma construção que ganhou estímulo – em especial no Brasil – fruto do sincretismo religioso com o cristianismo, o qual foi um legado deixado pelo próprio Kardec.

3- Espiritismo fala de leis naturais, e não há nada de sobrenatural em seus postulados. Qualquer extrapolação moral está inserida em seu tempo e tem valor limitado. Reencarnação, comunicabilidade entre planos e sobrevivência da alma não são pautas morais. A descriminalização do aborto é uma escolha pela vida. Ponto.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos, Religião

À Esquerda

Estas são as “acusações” que a direita faz à esquerda: aborto, drogas e soltura de presos…….. mas qual a dúvida de que estas são três pautas que devemos MESMO apoiar?

A descriminalização do aborto é uma pauta de URGÊNCIA para salvar vidas de mulheres (pobres, claro) que recorrem aos abortos clandestinos, arriscando suas vidas. Sabemos como as mulheres ricas têm acesso a clínicas caras e sofisticadas, mas esta é a razão pela qual os abortos na parcela menos favorecida da sociedade são um grave problema de saúde pública.

O garantismo e o desencarceramento da mesma forma, pois prender jovens (negros e pobres, que surpresa) de NADA adianta e não diminuiu em nenhum lugar do mundo as taxas de criminalidade. Prisões são lugares infectos e fábricas de criminalidade. Abolicionismo penal é uma necessidade social e um avanço civilizatório. Abrir as prisões – e só manter lá quem atenta contra vidas – é um passo fundamental para produzir avanço social e justiça.

Por último, o que dizer da descriminalização das drogas??? E não precisa sequer ser comunista como eu para se entusiasmar, basta ser capitalista como os americanos, onde maconha não é crime e se tornou negócio rentável. Essa é uma atitude simples para acabar com a mortandade de jovens nas periferias, e não tem nada a ver com a esquerda, mas com direitos humanos básicos – uma pauta bem liberal.

Liberação das drogas, sim;
Abolicionismo penal, por certo e
Aborto livre pelo SUS…. mas é claro que os moralistas, os anacrônicos e os fascistas não estão prontos para esta conversa.

Deixe um comentário

Arquivado em Política

Duas vidas

“Ahhh, mas são duas vidas, e cabe proteger ambas. Para evitar basta se cuidar”.

Não é simples assim no mundo concreto. Vai depender do seu conceito de aborto e da época da gravidez em que ele foi realizado. No mais, é por haver vida – mesmo em potencialidade – que sou contra o aborto; prefiro preservá-la sempre. Porém, todas as vidas, e encarando sua manifestação concreta.

Portanto, a REALIDADE é outra, diferente das visões idealistas. No mundo REAL as mulheres vão acabar procurando métodos ilegais – portanto, perigosos – para interromper as gestações e vão correr sérios riscos; muitas delas vão terminar morrendo no auge da sua juventude.

Ser a favor da descriminalização do aborto e permitir que seja incorporado pelo sistema de saúde significa encarar o mundo como ele é, sem visões idealistas e aprendendo com as experiências REAIS de sua aplicação. As mortes evitáveis de mulheres em abortos clandestinos não nos permitem mais perder tempo debatendo aspectos metafísicos da vida e seu valor; é preciso agir com a ideia de “menor dano”, tirando milhares de mulheres do destino terrível da morte por abortos insalubres.

Em todos os países onde o aborto seguro foi instituído pelo sistema público houve diminuição da mortalidade materna e são essas vidas de mães e mulheres que nos cabe proteger, acima de qualquer outra consideração. Isso não invalida a ideia de manter e incentivar a educação de meninos e meninas sobre a anticoncepção e gestação conscientes, mas sim interromper o massacre sobre mulheres pobres que se submetem a métodos cruéis de interrupção da gravidez.

Aceitar a REALIDADE acima de nossas crenças e ideais é um passo importante para produzir uma sociedade de paz, onde as gestações sejam uma benção e não um peso ou uma sentença de morte.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Medicina

Corporação

Sobre brigas na corporação…

Uma coisa sempre me chamou a atenção no comportamento dos médicos: nunca encontrei neles qualquer superioridade (ou inferioridade) moral ou intelectual quando comparados a qualquer outra profissão, mesmo as mais “humildes”. Médicos são humanamente imperfeitos como qualquer sujeito.

Isso me marcou desde o tempo de faculdade quando vi famosos professores da minha área fazendo fofocas mordazes para grupinhos de residentes atacando seus colegas de cátedra. Eu pensava: “mas… a vida na Academia é assim mesmo, como um recreio de escola?

Sim, sem tirar nem por. Esses personagens podem ser tão violentos e agressivos nas críticas quanto os piores políticos do baixo clero. Não havia nenhuma sofisticação neste grupo, o que foi um choque de realidade que agradeço por me alertar para a natureza humana.

Entretanto, apesar de achar natural que haja lados e perspectivas distintas a defender, eu acho curioso esse ataque à legalização do aborto por parte de setores da corporação. Sério que existem facções na AMB, no CFM e até na FEBRASGO contrárias à legalização do aborto? Agora a moda é atacar candidatos por serem favoráveis ao aborto seguro, “lenientes” com a “invasão” das doulas e por reconhecerem a existência de violência obstétrica. Mesmo?

Pois vejamos; ser contra as doulas é uma bobagem. Elas já ganharam o jogo, estão presentes em todo os lugares. Legislações municipais e estaduais se multiplicam. Lutar contra elas é perda de tempo, e a atitude correta é essa mesma: adaptar-se a essa nova realidade, firmar parcerias, regulamentar e assimilar. As doulas representam um avanço com embasamento científico e aceitação popular, uma viagem que não tem volta.

Quanto à violência obstétrica, o mesmo. Fingir que não existe é estupidez. Uma atitude sábia é reconhecer e, pelo menos, se comprometer em combatê-la. Negar é suicídio, tolice, burrice.

Ser a favor da descriminalização e posterior legalização do aborto não é uma questão moral, mas de saúde pública. Ponto. Os médicos deveriam estar na linha de frente da defesa desse DIREITO.

É triste ver como as organizações médicas frequentemente andam a reboque da história. Há alguns anos apoiaram descaradamente a candidatura de Aécio. Depois disso foram parceiros no golpe de 2016 e ainda agora associam-se ao bolsonarismo, assumem posturas anacrônicas como o combate à liberalização do aborto, a exaltação da Cloroquina, o desmonte do SUS e o apoio à um genocida na presidência.

Não acredito que a saúde do Brasil pode se fortalecer sem a presença de médicos comprometidos com o oposto destas posturas, que alguns integrantes de relevância nas suas entidades abraçam. Por enquanto a medicina brasileira está tristemente parecida com o pior de sua política.

Deixe um comentário

Arquivado em Medicina

Os limites da razão

Para os lacradores

Apesar de saudar o contraditório e as racionalidades explicitadas sobre a importância da liberação do aborto é fácil perceber que o aborto não será descriminalizado por uma súbita “lacração” de uma ativista. Não será através de um discurso, uma ideia, uma metáfora ou uma sacada genial. Não é assim que funciona em um mundo imerso no oceano das emoções e que mantém apenas o nariz de fora para, eventualmente, respirar o ar da razão.

Não foi preciso nenhum discurso que a homossexualidade foi descriminalizada – nos livros, ao menos – e nem por uma postagem brilhante, citando Freud ou Butler. Não foi por uma palestra maravilhosa na Academia que os livros pararam de exaltar a fórmula láctea. As ideias pavimentam o chão, mas são imóveis. Nossos pés é que produzem transformação e mudança.

Se a razão tivesse esse poder Lula estaria livre e a humanização do nascimento seria a regra em todos os hospitais. Não haveria violência de gênero e ninguém abusaria de drogas. Mas não somos governados pelo entendimento; somos presas de nossas emoções.

A solução passa necessariamente pela mobilização popular. É o que se fala de Lula, do aborto, da democracia e o que se tem como experiência sobre câmbios sociais profundos.

Nosso problema é de culinária: falta ainda “massa crítica“. Olhem para baixo, para o Chile e a Argentina, e entendam que essa é a única forma de avançar na questão do aborto.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo

Repercussões sobre o debate

Legalizar o aborto significa apenas que a gente combina com a mãe que ela não vai morrer. Entretanto, lembrem que é plenamente possível apoiar a humanização do nascimento e ser contra ou a favor da legalização do aborto. Estes são dois assuntos diferentes que possuem suas interfaces, mas podem ser analisados separadamente.

É claro que a humanização e a legalização são temas progressistas e que apontam na mesma direção: protagonismo da mulher e autonomia em suas decisões. Todavia, não existe nenhum problema lógico ou incompatibilidade em ser a favor de um e contra o outro. A minha posição, por exemplo, não é compartilhada por muita gente que debate humanização no Brasil e no mundo: sou a favor da legalização mas jamais atenderia um aborto, por uma questão de “isenção de consciência”. Entretanto, isso não me torna menos “humanizado” pois continuaria a honrar os princípios fundamentais da humanização do nascimento: protagonismo garantido à mulher, interdisciplinaridade e MBE.

Palavras bonitas, cheias de amor à vida, carregadas de paixão por fetos e nenhuma consideração pelas mulheres que morrem todos os dias em abortos clandestinos. Torquemadas e Savonarolas ainda queimam, em nome de conceitos abstratos, bruxas e hereges que ousam se preocupar com seu semelhante.

Ser contra a legalização é permitir que tudo se mantenha como agora, quando milhares de mulheres jovens perdem a vida em abortos clandestinos, a despeito de muitas delas terem orientação e educação. Ser contra a legalização é ser a favor do “Apartheid da morte”, onde ricas abortam e pobres morrem tentando.

A propósito da isenção de consciência, e a aparente contradição do “sou a favor mas jamais faria”, posso dizer que sou a favor de que as mulheres tenham esse direito mas eu não aceitaria fazer isso porque trabalhei a vida inteira com a vida, enquanto um aborto é a interrupção de um projeto de vida. É uma questão eminentemente pessoal. Mais ou menos como “Sou carnívoro mas não mataria uma vaca para comer“. Ou, “respeito as prostitutas e dou apoio às suas reivindicações, mas não uso seus serviços“. Existem muitos exemplos de fatos que lhe atingem pessoalmente, mas que você aceita em um nível social.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Parto

Vento

Passam-se os anos e os ventos não mudam. O mesmo disco quebrado repete o enfadonho réquiem de uma alma que se foi, condenada pelo desejo. “Assassina, assassina”, vociferam as consciências silenciosas da turba em êxtase ao ver o cortejo. Enquanto isso, na procissão macabra a jovem mulher canta sozinha a marcha fúnebre em seu esquife, calada, pálida e impedida de oferecer seu testemunho. “Fez-se a vontade de Deus”, diz a moça branca, enquanto do outro lado da rua, de dentro de um carro a voz rouca de um homem apressado grita “Saiam da frente”. Pobre anjo, diz a senhora idosa ao seu lado, mas engana-se quem pensou na falecida. Era para o embrião que se escondia em seu ventre o lamento da velha. Para ele as homenagens; para sua mãe o inferno.

Kathy McGuire-Daniels, “The Hell of Ourselves”, Ed. Printemps, pag 135

Kathy McGuire-Daniels é uma escritora estadunidense nascida em Bayard, Novo México. Estudou letras e literatura na Universidade do Novo México e passou a lecionar inglês em escolas de sua cidade natal. Em seu romance “The Hell of Ourselves” ela descreve o drama de Cynthia, uma mulher que mora em um acampamento de trailers junto com sua irmã Sylvia. Esta, se envolve com Gregory, um jovem bonito e inescrupuloso que trabalhava numa lanchonete próxima ao acampamento. Desse encontro ela engravida, mas vem a falecer em decorrência de uma tentativa frustrada de produzir um aborto em si mesma. A falta de empatia de seus companheiros de comunidade com a morte da irmã, e a solidão que lhe é imposta pela sua partida abrupta, a fazem abandonar a comunidade e cruzar os Estados Unidos – de baixo para cima – para reencontrar a mãe em Cleveland-Ohio, a quem não vê a mais de 20 anos e que está à beira da morte. Sua viagem de retorno, e a verdade terrível que precisará contar sobre a ausência da irmã, fazem desta trajetória uma intensa experiência de resgate, dor e renascimento. Kathy Daniels é casada com o advogado especializado em defesa de minorias e imigração Albert Lavalle, mora em Albuquerque e tem dois filhos Jessica e Rolland.

Deixe um comentário

Arquivado em Citações, Contos