Exames e Vexames
Nadine sempre se vestia com elegância sóbria. Apesar de ser uma mulher linda e chamar a atenção pela beleza, nunca a vi usando uma roupa provocante. “Elegância é contenção”, dizia Max, provavelmente repetindo algum guru da moda. Ela sabia das coisas. Tinha consciência de que sua postura comedida era parte integrante do seu especial charme. Maximilian chamava isso de “nobreza sexy”. Quando ela atendeu ao telefone celular para falar com uma paciente, veio-me à mente uma cena em flashback, em que estávamos os três, almoçando no refeitório do hospital durante a residência. Max estava ao meu lado e balançava a cabeça acompanhando o ritmo de uma música, enquanto eu fazia um dos meus discursos enfadonhos. Foi quando, repentinamente, Max me cutucou de forma insistente. Diante da obstinação de Max, eu me virei em sua direção, e ele, com os olhos arregalados, apontava com o queixo em direção à Nadine, sentada à nossa frente. Ainda sem entender, olhei para minha colega que, sentada de lado, conversava distraidamente com uma colega. Não entendi o que falavam, mas prendi meu olhar nos seus belos olhos azuis. Novamente voltei-me para Max, que com a mão apontava para o próprio peito.
Foi quando entendi do que se tratava. Ele tentava me mostrar que Nadine estava com o último botão da blusa inadvertidamente desabotoado. Max queria dividir comigo um desses raros momentos de arrebatamento estético, em que o acaso produz a beleza. A borda de renda branca do sutiã de Nadine aparecia para nós como um presente da deusa Álea, a preferida de Max. Álea, da mitologia própria de Max, é a deusa das coisas circunstanciais, imprevisíveis e aleatórias. Pois a divindade nos brindara, naquele almoço, com um presente magnífico. Os contornos perfeitos, emoldurados pela renda alva, nos mostravam que, muitas vezes, a beleza se esconde em um átimo, em um instante, na fissura de um momento, em um piscar de olhos.
Nadine parou sua conversa e percebeu nosso olhar. Imediatamente levou a mão ao peito e, percebendo o botão inadvertidamente aberto, apressou-se a fechar a blusa, mas não se conteve em nos lançar um sorriso, entre envergonhado e crítico. “Seus tarados”, disse ela. Max soltou uma sonora gargalhada, enquanto eu, vítima inocente da trama, ficava vermelho como um pimentão. Essa lembrança voltou à minha cabeça enquanto Nadine falava ao telefone. Ela continuava linda como há 15 anos. Por que continuava sozinha? Fixei-me em suas mãos, onde o telefone celular mostrava o contraste marcante entre a médica e a mulher. Enquanto ela vestia um indefectível tailleur de linho azul, seu telefone celular tinha um adesivo da Minnie, como a dizer que, por mais que ela aparentasse uma austera sobriedade, ainda lhe restava feminilidade suficiente para agir como uma adolescente.
Nosso reencontro fora combinado por mim e por havia alguns dias. Encontramo-nos na formatura de sua filha, que concluíra, como nós, o curso de medicina. Max perguntou-me onde Nadine estava trabalhando, e eu lhe respondi que ela trabalhava no hospital da universidade, na emergência obstétrica, e que seria maravilhoso se pudéssemos fazer-lhe uma visita. Formáramos um trio inseparável de residentes, e Nadine sempre funcionou para nós como uma mistura de colega e musa inspiradora. Ele concordou na hora e alguns poucos telefonemas foram necessários para que nosso encontro fosse combinado. Assim foi feito. Em uma tarde de outono, lá estávamos nós três de novo, mais de 15 anos passados do nosso período de residência. As caras mais velhas, algumas rugas a mais e — no meu caso — alguns cabelos a menos na cabeça. Max mantinha seu penteado desgrenhado e comprido, e Nadine agora portava a sensualidade superior das mulheres maduras.
Ela ainda estava ao telefone e pude escutar um fragmento da sua conversa:
— Nesse período da gestação, ele é muito pequeno, e frequentemente não é percebido naquele emaranhado de riscos e pontos. Uma ultrassonografia requer aparelhos calibrados e profissionais experientes para interpretar as imagens. A ausência de uma estrutura não significa necessariamente um problema. Muitas variáveis podem estar atuando. Imagens borradas, estruturas adjacentes complicando a visão e a própria inexperiência do examinador. Calma, minha flor. Tente ficar tranquila. Eu sei que é difícil, mas é importante.
Max me sussurrou que a conversa de Nadine só poderia ser relativa a problemas com ecografias no início da gravidez.
— Já vi esse filme — disse ele. — “Querida, encolhi o embrião”. Você já viu, Ric?
Certamente que muitas vezes, pensei eu. As ecografias tornaram-se uma febre no mundo tecnológico. Depois da derrocada dos raios-X como método diagnóstico na gravidez, as ecografias assumiram no imaginário popular, assim como nos círculos médicos, o papel do “exame que ajuda muito e não causa nenhum problema”.
Max odiava essa ideia.
— Ric — continuou Max —, a biblioteca Cochrane deixa muito claro que não existe nenhuma vantagem no uso rotineiro de ecografias nas gestações de baixo risco. Além disso, quantos problemas advindos de interpretações equivocadas, de falsos positivos e de erros humanos ainda teremos de suportar antes que essa prática cara e de efeitos pouco conhecidos seja efetivamente questionada?
Max tinha razão. Esperei Nadine terminar a conversa e falei para ela algo que me viera à cabeça. Uma lembrança sobre a questão de ultrassonografias e exames complementares.
— Posso lhe contar uma história? — perguntei eu. Nadine apenas sorriu e revirou seus belos olhos. Ela nunca me confessara abertamente, mas gostava de escutar minhas histórias, principalmente as divertidas. Sei disso porque alguns amigos em comum às vezes me diziam: “Nadine me contou uma história muito engraçada, e disse que aconteceu com você. É verdade?”
Aprumei-me no banco do bar e limpei a voz com um pigarro.
* * *
Uma vez, muitos anos atrás, quando eu trabalhava em um hospital militar, recebi no ambulatório uma paciente proveniente do interior. Vinha com a face típica das pacientes interioranas que vêm ao “doutor da capital”. Tinha por volta de 50 anos; menopáusica, três filhos de parto normal. Trazia a tiracolo o marido, a cunhada, uma malinha surrada e a indefectível sacolinha com radiografias e exames variados. Vestia um semblante preocupado e cumprimentou-me sem sorrir. O marido igualmente me estendeu a mão sem nada dizer. A cunhada, coitadinha, parecia uma mudinha. Ajudou a paciente a sentar-se na cadeira e colocou-se de pé, imóvel, no canto da pequena sala de entrevistas. Seus olhinhos estalados e sua posição de estátua me fizeram sorrir, imaginando ser ela um colorido abajur. Finalmente, a sisuda senhora falou:
— Vim aqui para me operar, doutor.
A sentença já vinha com uma indelével marca de determinação. O marido me olhou firme, mostrando convicção e propósito. Ela estava querendo dizer: “Não adianta vir com papo de que não tem vaga. Vim do interior com meu marido e só saio daqui se for atendida”.
Pacientes morrem de medo de que sejam desconsiderados ou desrespeitados. Ficam sempre entre a cruz e a espada. Por um lado, pensam que, caso se comportem “bem”, respeitando o doutor e mostrando submissão às suas ordens, poderão receber um tratamento digno como recompensa. Por outro lado, dependendo do paciente e das circunstâncias, a tática é a da truculência. “Quero ver quem vai me mandar embora daqui antes de falar com o doutor” é uma frase típica dos corredores de hospitais públicos. Submissão ou porrada? Qual funciona? Normalmente, os pacientes chegam na arena de combate sondando o terreno. Têm um semblante desconfiado. Ficam testando o doutor, avaliando qual a melhor estratégia a seguir. Uma consulta médica é, acima de tudo, um encontro entre pessoas. Esse encontro sempre será tenso, quanto mais quando a saúde for a questão em jogo. Pacientes querem ser bem tratados, e que seus desejos (muitas vezes absurdos) sejam atendidos. Como conseguir isso? Eu, como bom aspirante a humanista, entendi a ansiedade e a angústia pela qual eles estavam passando e resolvi não “pegar pesado”. Médicos não são ensinados a receber ordens de pacientes. Maximilian costumava me dizer que “médicos não obedecem às leis; eles as criam”. A tentação naquele momento seria dizer: “Só operarei se eu achar que você deve ser operado. Seus papéis de nada valem aqui. Sou o responsável pela indicação da cirurgia, já que serei eu o provável cirurgião”.
Essa frase está ao mesmo tempo certa e errada. Certa por mostrar que a responsabilidade pelo resultado de uma cirurgia não pode ser transferida para quem a indicou, e deve ser de quem efetivamente a realizará. Por outro lado, está errada porque é um “tapa na cara”, uma falta de sensibilidade com as peculiaridades do momento; um choque prematuro de forças, uma “pororoca extemporânea”. Falar isso seria fechar um monte de portas. Fiquei com coceira na língua, mas apenas sorri em resposta. Ela me olhava firme. Queria ver minha reação. Eu podia ver o que significava sua vinda de tão longe, a espera na rodoviária, a escolha da cunhada como “doula”, a distância dos filhos menores, as fantasias de morte que rondam os que serão operados. Tudo isso em turbilhão. Na minha frente.
— Ok — disse eu. — Vamos ver seus exames. Quem a encaminhou para cá?
Peguei os exames e examinei-os com atenção enquanto ela me falava de um doutor desconhecido do interior do estado. Sua voz transmitia a tensão em que se encontravam todos. Exames normais, hemogramas, VSG, KTTP, plaquetas, raio-X de tórax, etc… O último exame foi, claro, a ecografia.
Quando a peguei na mão, vi, pelo tipo de impressão do exame, que fora realizada em um aparelho mais antigo ainda que o velho aparelho que tínhamos no hospital. Mostrava um cisto ovariano de 14 cm de diâmetro na sua maior extensão. Convenhamos, um belo cisto. Deve ser um adenoma mucinoso ovariano. Benigno, bem provável. Por outro lado, pode ser um adenocarcinoma de ovário, muito mais raro, mas na sua idade seria possível. A cirurgia, afinal, se justificava pelos achados ecográficos. Fiquei aliviado. Detesto quando frustro as pessoas nas suas expectativas. Como convencer as pessoas mais simples de que não operar é bem melhor? Muitas vezes, diante de uma negativa em operar, fiquei com certeza de que as pessoas achavam que eu estava com preguiça, ou simplesmente queria alguma compensação financeira “por fora”. Já escutei familiares de pacientes humildes, calçando chinelos de dedo, me dizendo (após receberem a notícia de que uma cirurgia não era necessária) que “se o problema é dinheiro, doutor, a gente dá um jeito”. Eu ficava com um nó na garganta. Olhei para a paciente e disse:
— Seus exames mostram um grande cisto. Acho que uma cirurgia seria necessária, porque é importante sabermos que tipo de cisto é esse.
Eles pareceram aliviados.
— A senhora vai internar hoje mesmo, mas antes eu preciso fazer um exame clínico para saber mais detalhes do tum… digo, do cisto.
Aprendi nos primeiros anos como “aprendiz de feiticeiro” a nunca dizer “tumor” na frente de um paciente, mesmo que seja uma verruga. Nem mesmo se pudesse completar com “benigno”. Isso assusta demais as pessoas, e elas às vezes ficam aterrorizadas. Conheci muita gente do interior que jamais fala a palavra “câncer”; sempre diz “aquela doença”. Pedi que ela se erguesse e me acompanhasse à sala de exames. Era uma mulher alta e magra. Uma italiana fosfórica, em uma interpretação homeopática. Perguntei ao marido se ela havia emagrecido nos últimos tempos e ele foi enfático:
— Sim, doutor. Ela secou. Desde que descobriu esse problema, não come direito. Sente muitas dores na barriga. Tem uma bola que sobe e desce que quase vem à garganta. Pode ser o tal do cisto que aparece?
Expliquei que achava pouco provável, mas que o exame ginecológico me daria algumas informações extras.
Deitada na mesa de exames, a paciente parecia ainda mais esquálida. Melhor, pensei eu, assim fica fácil palpar o cisto. A cunhada estava junto na sala, como uma perfeita doula. Fiz o exame bidigital. Colo ok; vagina sem problemas. Abdômen encovado. Girei a cabeça e olhei o ultrassom sobre a mesa. Não referia em qual anexo o cisto se encontrava, se no ovário esquerdo ou direito. Hmmm, onde está o danado? Mexi, revirei, apertei a barriga da pobre senhora.
Frustração. Nada. Não consegui palpar o cisto. Mas com 14 centímetros (bem mais de meio palmo), ele deveria ser visível no abdômen, quanto mais ser atingido pelo exame de toque. Pedi que se vestisse logo após ter examinado as mamas, que estavam normais. Voltamos à sala e eu expliquei à família que estava com dúvidas e que seria necessário fazer outra avaliação ecográfica.
— Outra? — exclamou ela, fazendo uma cara de decepção.
— Ela não gosta de ficar sem mi… sem fazer xixi. Diz que o exame é chato por causa disso — falou pela primeira vez a cunhada-abajur.
Reafirmei a necessidade do exame e ela concordou. Encaminhei-a à sala de ecografias e falei com meu colega Jefferson. Expliquei que não encontrara um cisto de 14 centímetros que estava descrito na ecografia que acompanhava a paciente. Ele me devolveu um sorriso e um xacomigo. Voltei para a minha sala deixando o trio aguardando o ultrassom. Fiquei pensando se minhas mãos eram incapazes de “ver” as coisas escondidas no lúgubre e escuro interior das pelves. Estava também decepcionado.
Por volta de uma hora depois, o doutor Jefferson me liga e pede que venha até a sua sala.
— Ric. Olha só que enorme cisto você deixou de apalpar! — disse ele com um sorriso triunfante. — E lhe digo mais, não tem 14 centímetros de diâmetro: tem 17, absolutamente repletos de líquido. Impressionante!
Putz.. Olhando para baixo pude ver a minha própria cara estatelada no chão. Como posso ser tão incompetente? Como não percebi um enorme cisto desses? Burro, burro…
— Bem — disse eu. — Só me resta operar então. Vou solicitar a sala cirúrgica, e pedir que…
— Calma lá, meu jovem doutor — continuou meu colega. — Olhe bem para o cisto. Tente senti-lo aqui na ecografia. Apalpe-o, acaricie-o.
Passei os dedos pelo filme ecográfico. Isso apenas aumentava minha vergonha.
— Meu caro e apressado doutor — continuou Jefferson —, estou lhe mostrando um enorme cisto de 17 centímetros de diâmetro, mas que não existe mais.
Minha face ficou ainda mais patética. Cirurgia astral? Magia? Olhei de novo o filme e vi o nome da minha paciente escrito nele, ao lado da data. Eu estava vendo o cisto, as medidas, as dimensões, as paredes, o nome correto de minha paciente e a data de hoje.
— Meu amigo, o nome desse cisto é “Vésica”. Já foram apresentados um ao outro?
Meu mundo caiu. Desabei. Captei a mensagem, meu caríssimo guru radioultrassônico. É por isso que ele disse que o cisto não mais existia. Meu Deus, como não percebi antes?
Vésica é o nome “chique” da bexiga. O médico do interior deixou minha paciente com a bexiga cheia para fazer o exame, o que é a conduta padrão em uma ultrassonografia, mas não se deu conta de que o “enorme cisto” que a paciente possuía nada mais era que uma bexiga cheia de urina! E por isso meu jocoso colega afirmara que ele “não mais existia”. Foi esvaziado na toalete, logo após o exame. Olhei para cara do Jefferson e caí na gargalhada. Tudo estava explicado. Ele me deu um abraço e disse:
— Na próxima vez, confie mais no seu taco. Quando você fez o exame, ela estava com a bexiga vazia e realmente tem um abdômen absolutamente normal. Quando eu fiz a ecografia aqui, fiquei intrigado com a ausência de lesão ovariana, mas, comparando com a realizada no interior, pude perceber qual foi a confusão do colega de lá. Incrível, não é?
Agora vinha a pior parte. Explicar para a paciente que ela não tinha nada cirúrgico, e que toda a angústia, o medo, a tensão, a viagem, a distância da família e o sofrimento físico, espiritual e emocional que passara foram ocasionados por um equívoco. Nunca houve nenhum cisto, e não seria necessário operar. Para minha surpresa, eles receberam minhas explicações com satisfação, nem sequer tocaram na ideia de culpar o ecografista do interior. Ela mesma me disse: “Vai ver que ele estava muito cansado e não percebeu direito, não é?”
Ok…Final feliz para uma história de um exame. Mas nunca mais me esqueci das possíveis angústias que os exames podem produzir. Quem sabe até um verdadeiro tumor poderia se criar pela força imagética de uma paciente impressionável. Quem pode afirmar que não? Não existem exames “não invasivos”; existem os que invadem menos, mas todos os exames, e seus possíveis resultados, podem produzir profundos estragos emocionais e levar um médico menos atento a realizar outro procedimento desnecessário e até mesmo abrir o abdômen de uma paciente sem necessidade. Qualquer semelhança com as histórias de “embriões escondidos” não é mera coincidência.
* * *
Nadine me olhou com aquela cara de quem não engoliu tudo, mas que preferia ficar quieta a discutir com dois brigões empedernidos. Max, por sua vez, limitou-se a dizer Patu Saleh, erguendo o indicador para o alto, o que foi confundido pelo garçom com o pedido de outra cerveja. Ele não se importou com a confusão.
