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Memórias do Homem de Vidro – 09

Madalena e os Mistérios do Nascer

— Boa tarde, doutor.

Assim ela se apresentou para mim naquela tarde. Seu cumprimento despojado trazia algo de uma profunda simpatia. Seu sorriso era suave como um toque de criança; difícil descrever sua leveza e doçura. Os olhos transmitiam uma segu­rança altiva, e a voz era melodiosa e calma.

Minha secretária havia avisado que se tratava de uma primeira consulta, e quando trouxe a ficha me alertou que a paciente estava “bem grávida”. Pensei que essa poderia ser mais uma das pacientes “troca de última hora”, que é uma classe de pacientes que me acostumei a atender nos últimos anos e que mudam de médico algumas poucas semanas antes do parto. Normalmente são aquelas que percebe­ram em tempo que seu médico não estava realmente interessado em levar adiante um parto normal. De maneira dissimulada, ou às vezes de forma clara e explícita, o antigo médico acabava demonstrando que não esperaria muito para realizar uma cesariana, complementando com uma série de argumentos previsíveis na tentativa de provar que um parto normal era cheio de possíveis intempéries e que a cesariana poderia ser programada e realizada dentro de padrões de razoável segurança. Normalmente, as pacientes fragilizadas pelo próprio estado gravídico acabavam aceitando as explicações dadas pelo profissional e recolhiam-se à sua posição de dependência e subserviência. Por outro lado, existe um grupo de mu­lheres carregadas com uma carga explosiva de autoestima. Não sei exatamente onde elas se armam dessa coragem e dessa determinação (suspeito que isso ve­nha da primeira infância), mas quando as vejo fico impressionado. Lutam pelo que acreditam, e acreditam em si mesmas. Confiam na sua inata capacidade de ges­tar, parir e ser mulheres de verdade, sem os artifícios masculinizantes da contem­poraneidade. Possuem uma imagem de mulher poderosa, e, quando sua feminili­dade mais profunda é ameaçada ou posta à prova, as bases constitutivas dessa estrutura feminina se mostram suficientemente fortes para suportar o desafio.

Entretanto, como acabei observando mais tarde, Madalena (esse era o nome es­crito na ficha) não fazia parte do grupo de mulheres desse perfil. Não trazia con­sigo a indefectível “sacolinha de ecografias”, tradicional no grupo das “decepcio­nadas”, nem sequer colocou uma montanha de exames na minha frente. Em com­pensação, lançou-me mais um sorriso e, depois de um suspiro, uma frase estarre­cedora:

— Doutor, o meu nome é Madalena. Eu vou ter meu bebê em casa. O senhor po­deria me ajudar?

Disse de maneira firme, sem titubear. Seu olhar parecia pressentir minha estupe­fação.

— Parto em casa? De onde você tirou esta ideia? Por que gostaria de ter seu parto fora de um hospital? Pense bem… Imagine as coisas que podem ocorrer quando uma mulher está longe da tecnologia sofisticada do ambiente hospitalar. Não poderíamos considerar essa conduta uma irresponsabilidade sua? Por que então se arriscar dessa forma, abrindo mão da segurança que a modernidade nos oferece?

Ela continuava sorrindo. Parecia saber de antemão todos os meus argumentos. O parto domiciliar é um tabu, algo que sequer é pronunciado nas escolas médicas. Na minha residência de obstetrícia, isso nunca foi citado, falado, comentado, quanto mais estudado ou debatido. Falar desse evento é tratar de falhas e erros. No contexto ocidental e contemporâneo, um parto em casa só poderia ocorrer em um cenário de desassistência ou na falha do sistema em providenciar atendimento ou transporte para um hospital. Um equívoco, um erro. A imagem transmitida durante minha formação médica foi de uma sujeira social. Algo que deveria ser limpo. Quando vemos análises de assistência pública ao nascimento, frequentemente observamos os administradores falando da erradica­ção do parto domiciliar como sendo um avanço da medicina contemporânea. Por­tanto, um nascimento em casa é entendido como uma mácula, uma mancha.

Certa vez, no Rio de Janeiro, Robbie me perguntou:

— O que deixa uma camisa suja?

Diante do meu silêncio, complementou:

— O que faz uma piada ter graça?

Perguntas tão simples quanto complexas são suas respostas. Que elementos pro­duzem o estranhamento em uma determinada situação, permitindo que o choque estético produza uma modificação conceitual?

O que deixa uma camisa suja é a sujeira, terra, pó, areia, tinta, gordura. Mas nem tinta, nem pó, nem terra são “sujeira”, a não ser que estejam na camisa. Ou na mão, ou em outro lugar que determinemos como limpo. A sujeira é determinada pela justaposição de estruturas, que se supõe estarem, em essência, separadas. A graça, por sua vez, está na justaposição de situações não convencionais. Uma piada sempre vai enfocar o deslocamento, o choque, o que “não devia estar lá”. A piada é a elegia dos avessos e tortos. Uma ode à luxação das coisas. Trecos fora do lugar. Ectopias. Distopias conceituais.

Um parto é contaminado e perigoso se está fora do lugar. O lugar de um nasci­mento seria no hospital, portanto os partos domiciliares se inserem em um espaço de afronta e de perigo para o sistema de crenças contemporâneo. Tornam-se ameaçadoramente “imundos”. Falar em parto domiciliar é falar de um incômodo social. Experimente falar isso em uma roda de mulheres e notará que elas pró­prias encaram o parto em casa como algo inaceitável nos nossos dias. O mundo da tecnocracia criou uma estética própria, cibernética e asséptica, em que a volú­pia dos sons, a sexualidade imanente e o aconchego de uma casa não têm lugar. É falar de algo deslocado no espaço; dizer de uma coisa que está onde não devia. Um choque estético e sensorial amplo, para quem o sente, vê e percebe.

Para bloquear a energia advinda desse choque, apenas com a contraposição de uma outra, de igual ou maior intensidade, em sentido oposto. Energia que brota da feminilidade indignada. Apesar de estarmos em uma sociedade que criminaliza o nascimento fora dos hospitais, podemos encontrar mulheres que preferem parir assim, tendo seus filhos no seu domínio, no “seu” lugar. Divinamente sujas, hu­manamente imundas, escancarando sua sujidade a quem quiser ver, a quem tiver coragem de olhar. Mostrando seu desejo e sua vida, com a sensualidade transpa­recendo em cada vinco de seu sorriso. Mas, quando Madalena se sentou à minha frente e sorriu, eu ainda percebia o parto domiciliar como um risco que deveria ser evitado.

— Porque você quer fazer isso — continuei eu. — Não acha que é um perigo des­necessário para você e seu bebê?

Ela continuava sentada segurando sua bolsa sobre o colo. Não se percebia nela um ar provocativo, nem uma postura de enfrentamento. Parecia não querer me convencer de nada, apenas solicitava minha atenção e, talvez, minha compreen­são.

— Eu não farei meu parto em casa porque quero, doutor. Farei porque é imprová­vel que seja de outra maneira.

— Como assim? — disse eu, sem compreender o que ela estava querendo me dizer.

Madalena respirou fundo e voltou sua cabeça levemente para o lado. Sorriu para mim e começou a me contar sua incrível história de nascimentos.

— Doutor, este é meu terceiro filho. Meus outros dois nasceram de parto natural. No primeiro, logo que eu percebi algumas leves dores em casa, pedi ao meu ma­rido que fosse buscar um táxi, porque achei que o nascimento estava próximo. Pura intuição. Nunca havia passado por essa experiência, então resolvi seguir para o hospital assim que percebi a presença das primeiras cólicas.

Quando meu marido retornou para me buscar, minha filha já estava nos meus braços. Eu a tive sozinha no banheiro, embaixo do chuveiro. Foi rápido demais, intenso demais, fácil demais. Assim nasceu Raquel, minha primeira filha. Meu se­gundo filho seguiu o mesmo roteiro. Percebi uma leve contração no baixo ventre e pedi ao meu marido que fosse buscar um copo d’água na cozinha. Quando ele retornou, segurando o copo d’água com as mãos, pôde me ver abraçada ao meu filho recém-nascido, ainda molhado com o líquido da bolsa. Meus filhos nascem como mágica, doutor; como um mistério divino. Madalena sorria docemente ao descrever seus partos. Notei que repousou a bolsa na cadeira ao lado. Sinalizava estar “baixando a guarda”. Sua intuição talvez esti­vesse avisando que eu seria alguém de confiança, alguém em quem poderia con­fiar suas angústias e temores.

— Tenho os partos muito rápidos, doutor — prosseguiu ela. — Não acho que seja culpa minha. Eu realmente não recebo avisos, não tenho sensações premonitó­rias. Não creio que serei capaz de ir para um hospital; não terei tempo. Procuro na verdade alguém que possa me atender em casa, para que não seja necessário passar novamente por tudo aquilo que eu passei.

— O que aconteceu? — perguntei.

Pela primeira vez, Madalena desfazia o sorriso que trazia no rosto. Colocou as mãos sobre a mesa do consultório e liberou outro suspiro, desta vez mais longo e pesado. Seus olhos baixaram e sua voz tornou-se mais grave.

— Isso aconteceu no meu segundo parto. Quando meu marido me viu com meu filho André nos braços, ficou preocupado e fomos direto procurar o auxílio de um médico. Nos dirigimos ao posto de saúde, mas a médica que nos atendeu achou por bem ir até um hospital. O táxi ficara nos aguardando e acabamos indo para lá, mas meu marido teve que voltar para casa para cuidar de nossa filha Raquel. Em lá chegando, o médico de plantão me disse que, por ter nascido em casa, era ne­cessário que o menino ficasse em “observação”. Olhei para o meu filho e não con­segui entender porque era necessário que uma criança absolutamente normal ficasse internada. Voltei para casa para falar com meu marido sobre a indicação surpreendente de internar nosso filho e, como já estava tarde, resolvi ficar com meus filhos em casa. Para minha surpresa, no outro dia uma representante do Conselho Tutelar apareceu na minha porta, dizendo que eu deveria levar imedia­tamente meu filho recém-nascido ao hospital. Assustada com a visita inesperada e ameaçadora, resolvi concordar e voltar com o pequeno André ao hospital.

Fui recebida e tratada como uma criminosa. As pessoas de lá me acusavam de não ser responsável, de não me preocupar com meu filho. Diziam que eu tive muita sorte, porque ambos poderíamos ter morrido por falta de assistência. Eu não tive nenhuma laceração, portanto não precisei levar pontos, mas meu filho teve que ficar internado por sete dias apenas porque disseram que ele nasceu em um “lugar contaminado”. Minha casa, um lugar contaminado? Por quê, doutor? Fiquei sete dias tendo que pedir licença para ver meu menino e poder pegá-lo nos bra­ços. Fomos afastados ao nascer; não pudemos ficar juntos porque não nos permi­tiram. Não pude amamentá-lo do jeito que eu queria. Isso me magoou demais, e me deixou muito triste e deprimida; humilhada e envergonhada. No parto da minha filha Raquel, consegui, com muito esforço, convencer os médicos a me liberarem junto com ela do hospital depois de 24 horas. Por que no meu segundo parto, com uma criança absolutamente normal, eu deveria passar por tanto sofrimento? Não gostaria de sofrer tudo isso de novo. Não quero novamente essa vergonha.

Estava chorando. Um choro triste, antigo, de uma ferida que não havia cicatrizado. Lembrei-me do meu atendimento na sala de emergência do hospital, há alguns anos, quando me dei conta de como inconscientemente tratamos mulheres como se fossem seres incompetentes e incapazes, e pude entender a dor da qual Ma­dalena se recordava com tanto pesar. Ela havia sentido o gosto amargo de uma medicina mitológica, arrogante, preconceituosa e dissociada das evidências cien­tíficas. Com o tempo, aprendi a perceber o quanto esses momentos são marcantes na vida de uma mulher. Como a medicina e a obstetrícia contemporâneas são deter­minadas por pressupostos filosóficos essencialmente masculinos, esses fenôme­nos afetivos, emocionais, espirituais e claramente femininos facilmente fogem à percepção daqueles que controlam o nascimento humano. Madalena tinha uma dor que ainda não havia parado de doer. Tinha sofrido o preconceito do sistema médico em entender os diferentes e as opções individuais. Foi tratada como uma “delinquente”, como uma ameaça a um sistema que se sustenta sobre a ideia da supremacia da instituição sobre a natureza, que se ergue sobre o conceito da de­fectividade feminina e sobre a visão mecanicista do mundo, e que transforma or­ganismos em máquinas ilusoriamente controláveis. Olhei para minha paciente de forma compreensiva, tentando imaginar verdadeiramente o que ela passou para ter seus filhos.

— Madalena, eu não tenho experiência com partos domiciliares, mas entendo o seu problema. Nós, médicos, não fomos treinados para entender e assistir o nas­cimento humano de forma livre e natural. Há muito que perdemos o contato com esse fenômeno da forma como ele se mostra naturalmente. Conhecemos apenas o nascimento humano controlado, cerceado, medicalizado. O parto, artificializado pela cultura, não é mais entendido como algo ligado à natureza. Hoje em dia, é praticamente impossível entrar em um centro obstétrico de um grande hospital e encontrar um parto que não seja medicamentosamente assistido. Mesmo assim vou ajudar. Estarei contigo quando seu filho nascer. Pode contar comigo.

Conversamos sobre algumas trivialidades do pré-natal, que seria reduzido a algu­mas poucas consultas pelo adiantado da gravidez, e nos despedimos. Madalena agradeceu minhas palavras, e quando saiu da sala ainda secava as últimas lágri­mas. Percebi que ela havia sofrido uma discriminação violenta por não se portar em consonância com os padrões que esta sociedade determina. Sua natural faci­lidade para ter filhos era vista como uma anomalia e uma ameaça e, portanto, não podia ser bem vista pelo sistema. Estranhamente aquilo que seria visto como uma benção pela grande maioria das mulheres, Madalena vivenciava como um fardo. Mulheres foram ao longo dos últimos séculos reduzidas a contêineres fetais, ma­nipuladas pela medicina e sem que fosse respeitada a sua capacidade de realizar aquilo para o que a natureza lhe proveu de recursos. Nós, médicos, apenas repro­duzimos um paradigma, um modelo que ritualiza as condutas hospitalares para perpetuar os valores centrais do nosso código de crenças.

A conduta de manter André, o filho de Madalena, internado por sete dias apenas por ter nascido em casa é típica dessa visão preconceituosa. A criança, na ver­dade, ao ser internada após um parto domiciliar absolutamente normal e eutócico, passou por um “ritual de purificação” para ser aceita como um membro da socie­dade tecnocrática. Quando eu assistia a partos humanizados — sem drogas, de cócoras, com o companheiro na sala, com doula e em um ambiente mais tranquilo — em um tradicional hospital da cidade, alguns pediatras internavam rotineira­mente os bebês nascidos dessa forma, para que ficassem em “observação”, pois tinham nascido de parto “não convencional” e, portanto, tinham que ser avaliados de forma intensiva. Evidentemente que muitas dessas crianças desenvolviam “Síndrome de Angústia de Separação” — por ficarem longe de suas mães —, mas alguns pediatras afirmavam para a família que se tratava de “dispneia transitória”. O propósito do ritual de colocar a criança em observação era de que apenas se­riam aceitos como membros da “comunidade de crianças normais” aquelas que tivessem passado pelo ritual iniciático da internação, e o seu bem-estar só poderia ser determinado por aqueles que detêm o saber autoritativo sobre a saúde de ne­onatos. Nosso modelo tecnocrático e biomédico nos condiciona a entender uma mulher como essencialmente incapaz de saber se seu filho está bem, e isso é o que se percebe por detrás das inúmeras rotinas/rituais hospitalares.

Madalena sequer tinha escolha. A natureza havia lhe fornecido um mecanismo de parto tão suave que ocorria despercebido. O que levava em média 12 horas para uma mulher comum, para ela ocorria em segundos. Depois de tomar conheci­mento do seu caso, aprofundei meus estudos sobre a importância do tempo de espera para o nascimento entre os humanos, e percebi que o massageamento produzido pelas contrações uterinas e pela passagem no canal de parto é impor­tante para o amadurecimento do sistema respiratório e digestivo do recém-nas­cido. Esta é uma das razões pelas quais entre os seres humanos não existe o costume de “lamber as crias”, a exemplo do que fazem outros mamíferos superio­res, como cães, cabras, cavalos e gatos. A explicação para isso seria a de que esse procedimento instintivo não seria necessário, porque o trabalho de parto mais prolongado teria essa função de preparar esses sistemas para a vida ex­trauterina. Então, o que seria dos filhos de Madalena, que praticamente não apre­sentam esse período preparatório? Talvez a alternativa fosse “lamber” manual­mente o bebê, assim que se desprendesse do ventre materno, para auxiliá-lo na adaptação. Guardei essa reflexão comigo, para quando fosse chamado.

Madalena compareceu acompanhada de seu sorriso e sua doçura em mais algu­mas consultas. Percebi que sempre se mostrava confiante em si mesma, mas guardava medo em relação ao que poderia acontecer. Temia que se repetissem os fatos do seu segundo parto. Não suportava a ideia de separar-se de seu filho recém-nascido. Notei, entretanto, que parecia confiar em mim. Senti-me respon­sável por essa confiança, e tentei de todas as formas passar para ela esse com­promisso de ajudar no que fosse possível, respeitando a sua singularidade como pessoa e mãe. Solicitei os exames necessários para uma avaliação laboratorial básica, que se mostraram todos normais. Por outro lado, a ideia de assistir um parto em casa ainda me deixava confuso. E se desse algo errado? E se alguma coisa ocorresse fora do esperado? E se hou­vesse um descolamento placentário, um prolapso de cordão, um bebê com distúr­bios respiratórios graves? Que fazer? Aceitar essa incumbência seria arriscar-se, colocar-se como responsável pelos acontecimentos. Valeria a pena correr esse risco em nome do respeito à minha paciente e aos seus desejos?

Auxiliar uma paciente a ter um parto de acordo com seus desejos e aspirações é algo extremamente complicado na sociedade paranoica e oportunista em que vi­vemos. Muitos anos mais tarde, acabei entendendo isso da pior maneira possível, quando atendi mulheres que clamavam por respeito e dignidade no parto. As acu­sações mais leves que escutei de profissionais da medicina foram as de que uma mulher, por ser “leiga”, não poderia tomar decisões sobre o seu parto; caberia apenas aos médicos a tomada de decisões sobre o destino do nascimento hu­mano. Mulheres continuam sendo objeto de troca entre os homens, sem autono­mia, dignidade ou autodeterminação. Parto, para esses colegas, é um ato médico, e não um evento humano.

Nessa época, os textos de Robbie, que desvendavam o sentido oculto nos discur­sos médicos a respeito da “segurança no parto”, recém estavam vindo à tona nos Estados Unidos, através da publicação de sua tese de doutorado. Levaria mais de um lustro para que chegassem às minhas mãos. Compreensíveis, então, as mi­nhas indagações e temores sobre as eventualidades negativas em um parto.

Minha única experiência anterior com o parto domiciliar havia sido com Rosa, em 1993. Casada com Ronald, meu amigo de infância, era uma mulher que já havia tido seu primeiro filho em casa, sozinha com o marido. Dessa vez, me procuraram para conversar a respeito dos seus anseios e seu projeto de ter um filho nova­mente da forma mais natural possível. A ideia de irem para uma maternidade, se­rem submetidos às rotinas hospitalares e serem desrespeitados nos seus valores lhes era insuportável. Por outro lado, a idade de Rosa, 39 anos, era um entrave que até eles consideravam digno de preocupação. Conversamos algumas vezes no meu consultório e percebi que a decisão para eles seria difícil. Se, por um lado, reconheciam que Rosa mereceria uma atenção um pouco maior por causa da sua idade, por outro rejeitavam a ideia de “comer comida de hospital”, que represen­tava toda a recusa que tinham em relação às rotinas despersonalizantes das ma­ternidades. O tempo passou e nenhuma decisão foi por eles tomada, até que em uma certa tarde recebo um chamado pelo bip (naquele tempo, início dos anos 90, não havia telefones celulares) com o seguinte aviso. “Rosa está ganhando nenê”. Ponto. Só isso, nada mais.

E agora? Onde ela está? Foi ao hospital? Ficou em casa? Eles não tinham tele­fone, mas eu sabia onde moravam. Cancelei minhas últimas consultas, botei al­gumas luvas esterilizadas no bolso e me dirigi imediatamente à casa de Ronald e Rosa. Era uma tarde quente de maio. Cheguei à casa deles, cuja porta de entrada era mantida aberta para permitir a entrada de uma aragem fresca. A casa simples, praticamente sem móveis, guardava um silêncio misterioso. Não podem estar aqui, pensei eu. Nada se ouve. Entrei sala adentro e resolvi me anunciar batendo palmas. “Ó de casa. Tem alguém aí?” Ouvi passos se aproximando e avistei meu amigo se achegando à porta.

— Olha só quem apareceu! — disse Ronald sorridente e apressando-se em me cumprimentar. — Você veio!

— Bem, imaginei que Rosa estava precisando de auxílio. Recebi sua mensagem no bip. Ela ainda está aqui?

— Claro que está. Venha até o quarto comigo.

Segui meu amigo até o quarto simples e despojado, onde Rosa estava ajoelhada sobre um colchão colocado diretamente sobre o chão e forrado com um plástico escuro. Olhou para mim com o sorriso sereno e dócil das parturientes. Estava em pleno trabalho de parto, mas isso apenas se podia dizer pela leve contração de seu rosto durante as contrações e pela alteração do seu padrão respiratório. Nem um som, nem um gemido. Ao me ver, sorriu um sorriso de quem acorda, e depois me perguntou:

— Não queres tomar um chá? Ronald acabou de preparar um chá de flor de lótus que é uma delícia.

Rosa parecia absolutamente tranquila. Ajeitou-se em uma posição que os iogues usam e manteve-se assim.

— Rosa, antes de tomar chá, eu acho que seria interessante que a gente reali­zasse um exame de toque para saber quanto de dilatação você tem. Que acha?

Ela aquiesceu, e eu tirei minhas luvas esterilizadas do bolso. Pedi que ficasse de joelhos e realizei o exame. Colo apagado, bolsa íntegra, apresentação cefálica e com oito centímetros de dilatação. Puxa, falta pouco mesmo!, pensei eu. Aviso os dois da provável proximidade do nascimento. Rosa esboça um sorriso, interrom­pido pelo início de uma nova contração. Ronald faz um gesto com a cabeça e pede que eu o acompanhe até a cozinha para tomar um chá. No meio do caminho, eu penso que seria importante escutar os batimentos do bebê, mas lembro que na pressa de sair do hospital nem lembrei de pegar um fetoscópio de Pinard. Que fazer?

Ronald serve o chá e tomamos conversando sobre banalidades. Escuto com aten­ção as explicações que Ronald me dá sobre os efeitos terapêuticos do chá de ló­tus. Falamos de velhos conhecidos que nunca mais encontramos e demos algu­mas boas risadas. A cozinha era simples como o resto da casa, mas em um canto havia um rolo de alumínio que Ronald usa para enrolar o pão caseiro que vende na feira de sábados no Parque da Redenção. Olhei para o objeto e sorri.

— Ronald, achei o nosso Pinard!

Tirei todo o resto de alumínio e fiquei com um tubo grosso de papelão nas mãos. Voltamos ao quarto onde Rosa estava e pedi-lhe que ficasse novamente de joe­lhos para que eu pudesse escutar seu bebê. Toc, toc, toc. O coraçãozinho dele pulsava maravilhosamente sereno. Havia uma cumplicidade entre as serenidades; uma sintonia entre mútuas confianças. Rosa novamente sorriu, um momento antes apenas de franzir novamente a testa e apertar os olhos. Mas dessa vez foi um pouco diferente. Um som grave se ouviu. Algo mais profundo. Um som que conecta o colo uterino com a traqueia, fazendo um ruído intenso e longo. Era um puxo. Somente muitos anos depois, eu escutei a explicação, entre fisiológica e poética, da conexão entre a tonalidade da voz e a abertura do colo uterino.

— Ronald. Vai nascer em alguns minutos — disse eu. — Precisamos de mais al­gumas coisas. Água fervendo, uma tesoura esterilizada e algo para amarrar o cor­dão.

Ronald levantou-se e foi ferver a água em uma panela de alumínio, deixando a tesoura repousando aberta no fundo. Para clampear o cordão, me trouxe o bar­bante que usa para embrulhar o pão. Pronto. Tínhamos tudo que precisávamos. Restava apenas esperar. Enquanto aguardávamos as contrações, continuávamos nossa “busca pelo tempo perdido”, contando histórias da nossa infância. Velhos amigos, antigas namora­das, ninguém foi perdoado. Ronald, além de músico e poeta, era dotado de um senso de humor fino. Rosa apenas sorria de nossas besteiras. Mais alguns minu­tos apenas foram necessários para que os primeiros fios de cabelo aparecessem no introito vaginal. Pude perceber claramente a profunda inutilidade dos “coman­dos verbais” que nós, obstetras, produzimos nos hospitais, iludindo-nos de que orientamos os esforços expulsivos das grávidas. Rosa era pura instintualidade, e seus movimentos estavam coordenados por uma ordem muito aquém da raciona­lidade. Mantive-me atento e estático, mas para mim ainda era complicada a “lenti­dão que tende à imobilidade” apregoada por Leboyer.

Rosa gritou. Ergueu o rosto para o alto e abriu sua voz. De sua voz surgiu seu fi­lho. Ele veio direto da úmida e cálida obscuridade do ventre para os braços do pai, e desse espetáculo de vida eu fui um espectador privilegiado. Guardei um silêncio respeitoso e uma postura de reverência. A penumbra do quarto contrastava com a luminosidade que emanava do rosto de Rosa. Ela continuava olhando vivamente para o rosto do seu bebê, e mantinha um sorriso doce nos lábios. Sua atitude era de ternura e calma.

A imagem de suavidade no nascimento do filho de Rosa até hoje me impressiona. Nada foi rápido. Praticamente nenhuma pressa. Nenhuma laceração vaginal se fez, e o sangramento foi absolutamente normal. Essa suavidade do nascimento não intervencionista me deixou marcas importantes na memória, mas naquele momento eu tinha muito mais perguntas do que respostas. A mais importante de­las era: O parto de Rosa foi calmo e sereno porque ocorreu na tranquilidade e na paz da sua casa ou as características específicas de Rosa e do seu bebê é que permitiram esse resultado? Provavelmente as duas afirmações estavam corretas, mas a noção clara dessa verdade eu ainda estava por receber.

Ronald era só orgulho. Suas mãos de artista vaidosamente acarinhavam seu filho, com a mesma delicadeza com que desenham no papel a fina harmonia de uma poesia. Sorria para Rosa um sorriso silente, pleno de significados escondidos, histórias antigas, segredos compartilhados. Cortamos o cordão umbilical com a tesoura que tiramos da água fervente. O barbante que Ronald usa para embrulhar o pão foi usado logo após, para manter a hemostasia do coto umbilical. Enquanto Ronald estava com o filho nos braços, tracionei gentilmente o cordão que pendia para fora da vagina, para avaliar se a placenta ainda se encontrava aderida ao fundo uterino. Ronald me encarou com um olhar de censura, e com um sorriso me repreendeu:

— Não vai puxar a placenta, vai?

— Não, doutor — respondi eu, devolvendo-lhe o sorriso. — Não se preocupe. Va­mos esperar que ela saia no momento adequado.

Foi o que ocorreu. Alguns minutos apenas e o disco carnoso e vermelho despren­deu-se suavemente do útero, que por tanto tempo o abrigara. Foi analisado por mim e constatei que estava perfeito. A última cena de que me recordo é ver Ro­nald e Rosa no chão do quarto, enquanto eu sorrateiramente me retirava, para não atrapalhar a alegria e invadir a intimidade do casal em um momento tão belo.

Apesar de ter sido um parto bonito e tranquilo, com pessoas suaves e conscien­tes, o parto de Rosa não havia sido suficiente para me despertar da minha letargia tecnocrática. Mesmo com um tamanho exemplo de normalidade e brandura, eu ainda continuei preso aos sedutores conceitos de segurança do manejo hospitalar do nascimento. Ainda não havia lido Robbie Davis-Floyd, nem tinha a clara noção, despertada por ela, de que, em obstetrícia, a “segurança é o disfarce que oculta o verdadeiro valor subjacente, qual seja, o poder”.

O parto de Madalena colocava para mim outro tipo de desafio. Não se trata mais de convencer uma paciente (ou um médico) das conveniências ou não de um parto fora do ambiente de um hospital. Ela teria seu parto em casa, quer eu qui­sesse ou não. Cabia a mim aceitar a imposição da natureza e auxiliar minha cli­ente da melhor forma possível, ou recusar-me a ajudá-la, alegando que um mé­dico não pode prestar ajuda contra seus princípios ou colocando em risco a segu­rança de seus pacientes. A segunda opção pareceu-me covardia, essencialmente porque não havia para mim nenhuma prova de que ter um filho em casa signifi­cava aumentar risco, mesmo que a ideia me causasse medo e apreensão. Assim foi. Algumas poucas semanas apenas haviam se passado após nosso pri­meiro encontro e recebo o telefonema do seu marido. Passava da meia-noite, e estava sozinho em casa com meus filhos. Zeza estava de plantão.

— Doutor, a Madalena acabou de ter o bebê.

— Já? — gritei eu. — Não deu tempo de me ligar antes?

— Não deu tempo para nada, doutor — continuou ele.

— Ok. Estou indo aí.

Antes de chegar à casa de Madalena, passei no hospital onde Zeza estava de plantão e pedi que me acompanhasse até lá. Achei que alguns pontos poderiam ser necessários, e queria que ela me auxiliasse com o atendimento ao bebê. Ela solicitou uma troca de horários com sua colega e me acompanhou até a casa da minha cliente.

Madalena morava na parte sul da cidade, próximo ao rio. Lá chegando encontra­mos um ambiente de completo silêncio. As peças simples do apartamento térreo eram rabiscadas de cima a baixo, com desenhos feitos pelas crianças com lápis de cera. Uma música celta tocava em um aparelho de CD colocado no canto da sala de estar. Uma gata grávida vagava pela escuridão do ambiente, encostando o pelo sedoso contra a parede, e nos cumprimentou com um preguiçoso ronronar. As luzes estavam apagadas, com exceção da luz que vinha da cozinha, onde o marido de Madalena preparava um chá. Os dois filhos de Madalena dormiam no quarto, cuidados pela amiga Janaína, alheios ao que ocorria na casa. Entramos mais um pouco no pequeno apartamento, e quando estava me preparando para entrar no quarto escutei um “psiu” vindo do banheiro.

Lá estava ela, embaixo do chuveiro. A luz do pequeno aposento também estava apagada, mas pude perceber na penumbra que ela estava abraçada ao seu filho, formando com ele uma unidade indivisível. Era impossível saber onde terminava Madalena e onde começava seu bebê. Uma união que apenas se iniciava a rom­per, mas que ainda mantinha uma coesão perceptível, simbolizada pelo cordão umbilical que pendia até o joelho.

Aproximamo-nos de ambos e logo pudemos perceber que, em razão da escassa luz do ambiente, o bebê estava com os olhos arregalados, como querendo absor­ver toda a informação que lhe fosse possível. O cordão umbilical já não pulsava, e os batimentos cardíacos do menino estavam absolutamente normais. Havia nas­cido há menos de 20 minutos, mas estava em estado de plena tranquilidade. Cor­tei o cordão com o material esterilizado que trouxera e pedi a Zeza que segurasse o pequenino, para permitir que Madalena terminasse seu banho. Enquanto isso acontecia, fomos examinar o recém-nascido, que se mostrou perfeito em todos os aspectos. Nesse momento, lembrei-me da ativação neurossensorial produzida pelo massageamento do trabalho de parto e resolvi oferecer àquele bebê o que ele não recebera pela rapidez de seu nascimento. Recordei de meus estudos an­teriores e de uma observação do famoso antropólogo britânico Ashley Montagu:

“As contrações do útero proporcionam uma intensa estimulação na pele do feto. Estes estímulos são imensamente intensificados durante o trabalho de parto, para que os sistemas de sustentação sejam pre­parados para um funcionamento pós-natal, que é diferente daquele utilizado no ambiente aquático. (…) Ainda não entendemos que o to­que de uma mão pode fazer toda a diferença para outro ser humano; algumas vezes literalmente a diferença entre a vida e a morte. Médi­cos não tocam seus paciente o quanto deviam, e a ideia de afastar re­cém-nascidos de suas mães é absurda por mais uma centena de pontos de vista.”

No seu livro pioneiro Touching, Ashley Montagu nos deixa claro que a pele é, em verdade, o “sistema nervoso externo”, e que inicia seu funcionamento cedo ainda na gravidez. Por essa razão, o toque é nossa primeira linguagem e um importan­tíssimo meio de comunicação para os bebês, dentro e fora do útero. Negligenciar essas evidências poderia colocar todo o amadurecimento dessa criança em risco. Realizei uma massagem instintiva, baseada apenas na minha sensibilidade. Nunca havia aprendido nada sobre técnicas específicas, e do assunto apenas co­nhecia Shantala, a mulher indiana que, massageando seu filho, impressionou Fre­derick Leboyer. Não cumpri nenhuma técnica especial, mas tive a nítida sensação que o pequenino gostou de ser acarinhado. Quando Madalena retornou do banho avaliei seu períneo, que também não mostrou nenhuma anormalidade ou lacera­ção. Tudo perfeito, tranquilo, normal.

No dia seguinte, voltamos à casa de Madalena. Com o bebê no colo e os filhos pequenos embaixo da asa, recebeu-nos com seu sorriso angelical de costume. O bebê, batizado de Rafael, estava tão tranquilo quanto ao nascer. O peso, as medi­das, a análise do bem-estar — tudo estava adequado. Madalena irradiava alegria e confiança. Zeza ficou encantada com o parto. Mesmo que não estivéssemos lá no momento exato do nascimento, pudemos perceber a paz e o clima positivo que reinava na casa. Mesmo assim, a impressão positiva criada não conseguiu ainda me fazer acreditar na possibilidade de um modelo alternativo de parto e nasci­mento. Eu ainda não havia cursado minha trilha completa. Entretanto, minha mais importante lição acabou vindo alguns anos depois, através da mesma mulher.

Quando minha secretária a anunciou, eu não imaginava que ela estivesse com uma gravidez tão adiantada. Sua barriga denunciava a quarta gravidez. Veio ao consultório já com oito meses de gestação. Madalena continuava com o mesmo sorriso, apesar de terem passados três anos daquele nosso último encontro.

— Madalena, como vai? Tem alguma novidade para me contar? — disse-lhe eu de forma zombeteira.

Ela sorriu carinhosamente do meu gracejo e respondeu:

— Como pode ver, doutor, estou aqui novamente a precisar de sua ajuda. Gosta­ria que tudo ocorresse como da última vez. Seria possível?

— E por que não? — respondi. — Creio que temos todas as condições para que esse parto seja tão fácil e tranquilo como os demais. Como estão as crianças?

Madalena então falou de seus filhos como quem fala de seu maior tesouro. Disse como eles ficaram felizes da última vez, pois, quando acordaram, foram apresen­tados ao irmãozinho menor que havia nascido na madrugada. Combinamos os detalhes de praxe e nos despedimos. Houve apenas mais uma ou duas consultas de pré-natal, onde foram realizadas avaliações de praxe e solicitados exames de rotina. Feito isso, ficamos à espera do momento do parto.

O telefone tocou enquanto eu dirigia meu carro. Estava indo para o ambulatório de ginecologia de um hospital da cidade em que eu trabalhava. A voz, a entonação e a própria frase eram familiares.

— Doutor, o nenê da Madalena acabou de nascer.

Eram por volta das 15 horas e lá fui eu mais uma vez para o apartamento de Ma­dalena. Girei os pneus do meu caro para a direita e troquei meu itinerário. Minhas pacientes teriam que aguardar um pouco mais a minha chegada. O ambiente na casa estava praticamente intocado. Os mesmos móveis, as mes­mas músicas, os mesmos rabiscos nas paredes, o mesmo clima. Apenas a escu­ridão da noite não estava presente, mas para compensar as persianas da sala estavam completamente fechadas, deixando apenas uma réstia de luz passar por entre as tiras de madeira. Não esperei que me chamassem, e instintivamente es­piei para dentro do pequeno banheiro à procura de Madalena.

Lá estava ela, na mesma posição que a minha memória mostrava, e com a mesma amálgama de corpos da vez anterior. Seu filho nos braços igualmente não chorava, e a penumbra do local o deixava a vontade para abrir despudoradamente suas pálpebras. Repeti o ritual da vez anterior, desta vez sem o auxílio de Zeza. A placenta saiu sem dificuldades enquanto ainda se mantinha em pé debaixo do chuveiro. Logo após cortar o cordão, pedi que Madalena me alcançasse o bebê, que eu trataria de secar e vestir enquanto ela terminava de se arrumar. Enrolei o pequenino em uma toalha e cruzei o corredor para entrar no seu quarto logo em frente.

Foi aí que tive a minha primeira grande surpresa.

Ao entrar no quarto de Madalena, deparei-me com uma das mais belas cenas que já havia presenciado. Até então não havia me apercebido da ausência dos seus filhos no cenário, até porque da vez anterior eu não os encontrei por ser muito tarde e estarem dormindo. Mas desta vez eles estavam presentes.

Quando transpus o marco da porta e olhei para o lado direito, vi os três pequenos perfilados, por ordem de idade, ao lado da cama. O menor, de três anos, foi o que nasceu naquela madrugada em que vim pela primeira vez à casa de Madalena. Estavam absolutamente excitados com o nascimento do caçula. A maior, Raquel, era muito parecida com a mãe. Quando me viram carregando o bebê enrolado em uma toalha, começaram a pular e gritar de emoção. A mais velha falou primeiro: “Eu é que vou vestir o bebê!”. Ao que o do meio, André, emendou: “Mas quem vai escolher o nome sou eu!”. O menorzinho, Rafael, para não ficar atrás nas reivindi­cações, completou: “Mas eu também quero segurar no meu colo, porque eu sou forte!”.

— Calma! Vamos combinar o que a gente vai fazer. Eu proponho que todos nós juntos arrumemos o bebê enquanto a mamãe não vem, ok? Alguém aí já separou a roupinha dele?

A mais velha rapidamente abriu uma porta de armário e trouxe uma roupa de bebê dobradinha, que provavelmente já tinha sido vestida por todas as crianças da casa. Agora seria a vez do recém-chegado.

— Ok — disse eu. — Façamos o seguinte. Eu coloco o casaco e vocês colocam o tip-top, certo? E você, meu amiguinho, vai me ajudar a botar as meias, está bem?

Rafael, o menor dos três, sorriu um sorriso de juntar orelhas e aproximou-se de mim. Assim acertados, terminamos rapidamente de vestir o bebê, e ainda deu tempo pra cada um deles segurar o bebê no colo por alguns segundos. Tão logo o bebê estava arrumado, Madalena entrou no quarto. Estava usando um robe branco e surrado, mas parecia um anjo. Não parecia caminhar; volitava sobre o chão do quarto. Sem dizer palavra, abriu os braços e eu lhe passei seu filho, quase com vergonha de ter ficado com ele por alguns momentos. Na sala, o marido de Madalena terminava de colocar as xícaras sobre a mesa. As crianças, ainda eufóricas, correram para tomar o café da tarde, enquanto eu dava as últimas orientações para Madalena. Quando saímos do quarto, Madalena sen­tou-se ao lado dos filhos na mesa e me perguntou:

— Doutor, íamos tomar café agora, mas nos atrasamos um pouco porque o bebê nasceu. Gostaria de nos acompanhar?

Os olhares todos se concentraram em mim. A cena acabaria se tornando inesque­cível.

— Infelizmente, meus amigos, não tenho como ficar. Estava indo para o hospital para atender minhas clientes, e não posso deixar de ir. Talvez elas ainda estejam me aguardando por lá. De qualquer forma, amanhã virei aqui com a Zeza e vamos pesar o bebê e completar a avaliação. Vocês têm meu telefone, qualquer coisa me avisem, ok?

Pedi que todos continuassem sentados, pois eu sabia como fechar a porta ao sair. As crianças me lançaram acenos efusivos, e Madalena apenas me sorriu com do­çura.

Aconteceu quando escutei o barulho da tranca da porta estalar. Voltei-me para a porta do edifício que dava para a rua, mas notei que, ao meu lado, os azulejos mostravam mais uma vez um semblante distorcido. Olhei para a minha figura grotescamente reproduzida na parede e minha memória deu um salto para o pas­sado. Cada pequeno quadrilátero ao meu lado mostrava uma cena em que a mi­nha atitude como médico estivera desafiada. O olhar da paciente na sala de emergência, o grito da bela Glamour Girl, o sorriso de Rosa amparada por Ronald, meu escárnio quando Zeza pela primeira vez me falou nos “partos de cócoras”. Todas as imagens se reuniram na parede, tentando me mostrar que meu caminho poderia ser outro. Viro o rosto para o lado e vejo a porta envidraçada do edifico que me leva à rua, ao mundo. Pelo vidro posso ver a tarde se esvair.

Vidro. Um cristal…

A música de Vitor Ramil atravessava meus ouvidos. A porta do edifício permitia que a luz passasse, mesmo estando fechada, porque era feita de… vidro. A me­táfora me atropelou e me deixou estatelado, caído. Indefeso.

O homem de vidro encontrava a sua essência, finalmente.

A transparência presente; a ausência em carne e sílica. A possibilidade de afastar o medo, mas permitir a passagem da luz. A ideia de que aquele que cuida do nas­cimento deve ser o que reflete, e não o que brilha. Estar, sem estar. Ir-se, mas manter-se ao lado. Diáfano e translúcido, mas atento e presente como Faramir, para lançar a flecha certeira quando o Názgul doentio e ameaçador se aproximar.

Novamente me vi transportado para a sala de emergência do hospital, dando or­dens, gritando, esbravejando. Revivo as distorções e os vícios de uma atitude pro­fissional distante dos pacientes. A mesma sensação de vergonha me invadiu, mas dessa vez não havia tantas dúvidas. Eu já sabia a razão.

A farpa na mente, corrosiva e dolorida. A velha cicatriz que voltava a doer, pul­sando insistentemente, não deixando que eu ultrapassasse o portal do velho edifí­cio. Agora eu sabia que havia ido longe demais, e que minha caminhada não per­mitia retorno. Eu estava só, e a passagem atrás de mim havia se fechado. À mi­nha frente uma realidade difícil e dura, porque poucos me entenderiam. Final­mente o destino havia brindado o pequenino peixe com a visão do mundo fora do oceano da tecnocracia. Deslumbrado com o ar, a visão das nuvens e a imensidão azul dos céus, ele experimenta desconforto por voltar à água. Percebe que nunca havia se apercebido do mundo que o rodeava porque jamais fora exposto a outra realidade. Agora era impossível negar o que os seus sentidos denunciavam.

Olhei mais uma última vez para trás e encarei a porta do apartamento de Mada­lena. Pude então me aperceber da dura realidade do que ocorrera ali. Tantos anos estudando e atendendo grávidas e nascimentos e só agora havia me apercebido do que era um parto de verdade. Finalmente eu havia entendido como poderia ser um nascimento inserido na natureza e na cultura, respeitando a famí­lia, o convívio, a alegria e a esperança. Tamanha foi a intoxicação que eu rece­bera na minha formação obstétrica através da medicalização do nascimento que ficara cego ao que um nascimento realmente poderia ser quando conduzido em outro modelo.

“Chegando em casa ele chorou, e pro inferno ele foi pela segunda vez”.

Os versos de Renato Russo me vieram à mente quando pensava nos significados profundos da experiência. O parto de Madalena havia me conduzido novamente ao inferno da minha arrogância, assim como o parto na sala de emergência havia me levado pela primeira vez, havia muitos anos. Já não era mais possível ignorar o impacto que um nascimento desmedicalizado é capaz de produzir na família e nas pessoas que dele tomam parte. O nascimento hospitalar medicalizado, a que eu me acostumara nos tantos anos de prática obstétrica, a partir daquele dia pas­sou a ser motivo de uma crítica cada vez mais intensa. A lição que Madalena me ofereceu foi inestimável. A sensação de ter participado da festa do nascimento de seus filhos é uma emoção que jamais poderei esque­cer. A epifania trazida à tona pela participação nesse nascimento ficou marcada no mural das minhas lembranças de uma forma por demais intensa.

Seu bebê chamou-se Miguel, aquele que é como Deus. Como seus irmãos, tinha um nome bíblico, uma tradição que Madalena e seu marido utilizavam para em­prestar um simbolismo religioso aos seus filhos.

Alguns anos mais tarde, Madalena novamente engravidou, talvez pela última vez. Novamente eu e Zeza fomos auxiliá-la, agora no seu quinto filho. O cenário e os personagens mudaram muito pouco. As crianças, um pouquinho maiores, volta­ram a se divertir com a chegada da irmãzinha. O chamado no meio da noite, a cena no pequeno e cálido banheiro, a amálgama de corpos entrelaçados, tudo se repetia com a mesma intensidade e a mesma energia. Enquanto Zeza cuidava da menina recém-nascida, batizada de Sara, sentei-me com Madalena na acanhada sala de seu apartamento e lhe perguntei:

— Esse é o último Madalena?

Ela sorriu e disse:

— Não sei. Gosto tanto de ter filhos que não seria justo dizer que não mais os te­rei.

— Madalena — disse-lhe eu fitando doces olhos castanhos —, você é uma mulher abençoada. Tem o dom da maternidade e a dádiva de ser mãe de tantos filhos e todos saudáveis. Seus partos são rápidos, indolores e belos. Você devia doar seu corpo para a ciência, para que no futuro descubram qual o gene responsável por ter filhos com tamanha facilidade e tanta paz.

Madalena me encarou com aquele olhar maravilhosamente doce e me respondeu com um sorriso:

— Doutor, não vai adiantar procurarem no meu corpo. Aqui não vão encontrar nada. Melhor procurarem na minha alma.

Abençoada seja para sempre, Madalena.

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