Eu sempre fui muito fã do Tintim e, por causa disso, assistir o longa metragem sobre suas aventuras foi a derradeira vez que fui ao cinema com meu pai. Passei a infância e a juventude lendo as histórias escritas por Hergé. Meu pai comprava os “gibis” repletos de viagens a lugares estranhos e lutas contra bandidos de outras terras e eu viajava longe junto com os personagens. Aliás, o nome “gibi”, que deve estar em desuso, se devia às letras GB no alto da capa da revista que indicavam a editora – GuanaBara.
Meu pai cresceu apaixonado por estes gibis e se alfabetizou com eles. Ele descrevia a chegada do meu avô, vindo da cidade (meu pai morava no interior, Três Cachoeiras) com uma pilha de revistas, com a mesma excitação da criança burguesa que ganha um smartphone novo no seu aniversário. Na época dele (e também na minha) gibis valiam ouro. Era comum a gente visitar uma outra família e minha mãe dizer “levem os gibis de vocês para trocar”. As histórias preferidas do meu pai eram Tex, Anjo, Popeye, Capitão Midnight, Reis do Western, todas as revistas de caubói e o indefectível Tintim.
Ser um jornalista internacional, um menino prodígio, visitar todos os lugares exóticos do planeta era o sonho dourado compartilhado pela gurizada da minha geração. Sim, bem diferente do sonho de ser YouTuber, influencer ou jogador de Free Fire. Tintim era tudo isso, além das qualidades morais que acrescentava à sua inteligência e tenacidade. Tinha uma relação paternal com seu cãozinho Milu (Milou, em francês, Snowy em inglês – um gracioso Fox Terrier) e cuidava do capitão Haddock – sua figura paterna – como um filho cuida de seu velho pai doente, alcoolista, com síndrome pós traumática e problemático.
Aqui é que se estabelece a minha grande dor. Enquanto adorava os dramas e as intrigas internacionais nas quais Tintim e o Capitão Haddock estavam envolvidos, eu não percebia que, por trás de todas essas narrativas maravilhosas, se escondia a brutalidade do colonialismo europeu em África. Ou seja: para adorar o herói que despertava em mim o fervor revolucionário e investigativo era preciso fechar os olhos para a barbárie genocida da invasão europeia da África, regada com o sangue da exploração de seus recursos naturais. Entre os maiores “investidores” na África estava o Rei Leopoldo, rei belga que dominou o Congo, lugar onde ocorriam muitas das histórias de Tintim. Leopoldo, com 10 milhões de mortes na sua ficha corrida macabra, é provavelmente o sujeito mais brutal que já passou pelo Planeta. Talvez não exista no inferno ninguém mais conhecido e celebrado que ele. Mas, à época, essa não era uma história contada nos jornais.
As aventuras de Tintim retratam exatamente o olhar colonialista, a desumanização dos povos da África, a ganância da exploração e o desrespeito com as culturas nativas, mas os quadrinhos que meu pai e eu devorávamos eram envoltos em uma bruma de heroísmo, coragem, inteligência superior, determinação e força moral. Esta, por certo, é a receita básica dos colonizadores, que precisam glamurizar a conquista dos nativos tornando-a uma sequência de episódios épicos da necessária luta da “luz contra as trevas”. Algo parecido com a perspectiva que Israel apresenta sobre as chacinas e os massacres contra os palestinos na “conquista da Terra Santa” – a Nakba, na perspectiva dos palestinos. É preciso forçar a narrativa, torturar os fatos, até o ponto em que os próprios colonizados acreditem que a servidão lhes ofereceu benefícios.
Hoje Tintim é uma lembrança apenas, mas muito de sua personalidade e temperamento apareceram em outro “desbravador” contemporâneo. À maneira de Tintim, tratam como herói um ladrão de relíquias de povos da África e Oriente Médio como Indiana Jones. Desta vez o colonizador é americano, não belga, mas a forma de tratar os nativos como “inferiores” e incapazes de cuidar de suas próprias riquezas é essencialmente a mesma. Isso me faz pensar que o colonialismo usa de criativas metamorfoses para continuar impondo uma perspectiva etnocêntrica ao mundo, fugindo enquanto pode da incômoda multipolaridade cultural.




