Extrema unção

Entre as atividades dos estudantes de Medicina estava fazer a constatação de morte quando algum velhinho partia para o mundo espiritual no meio da madrugada. É claro que a maioria dessas atividades seriam vistas com outros olhos hoje em dia, mas esta é uma história do início dos anos 80, com várias décadas a nos separar.

Em uma oportunidade fui chamado no meio da madrugada para fazer a constatação de óbito de uma senhora de quase 100 anos que estava no hospital só para fazer esta passagem. Acordei assustado com o telefone do quarto e saí caminhando ainda com os olhos fechados. Não havia tempo para dormir, e no dia seguinte ainda teria que pegar um ônibus intermunicipal para chegar à minha cidade e voltar às aulas. Caminhei a passos trôpegos até o andar de cima, onde ficava a enfermaria de clínica médica. Atravessei o corredor às escuras e me deparei com três enfermeiras postadas à porta do único quarto com as luzes acesas. Elas apontaram para dentro do aposento e eu adentrei nele com uma certa solenidade, mas ainda incomodado pela iluminação do ambiente.

Reinava o silêncio. Entrei no recinto e pude ver as 5 ou 6 camas ocupadas com senhoras muito velhas que dormiam em sono profundo. Na minha frente, na primeira cama à esquerda, uma senhora tinhas os olhos fundos e a boca aberta. O rosto pálido denunciava emagrecimento pronunciado e a degenerescência do corpo. Ainda no umbral da consciência, tentando me desvencilhar do sono mórbido, segurei sua mão e resolvi cumprir o ritual que me acostumei a realizar nestas situações. A morte é uma passagem, penso eu. Mais do que o abandono da carne, o espírito que dela se desprende passa por um rito, um fenômeno energético a conduzir o desligamento do invólucro material. Tinha eu, na época, a ideia de que este momento deveria ser ritualizado para que pudesse ser marcado, não apenas para o benefício da alma que partia, mas também para as almas que ficam, nós mesmos. Para entender a vida, sempre repetia Max, é necessário buscar compreender a morte.

Segurei sua mão e disse algumas poucas palavras, que se perdem na brisa gelada das memórias distantes, mas que certamente seriam algo como “Espero que neste momento em que sua alma se separa do corpo estejam contigo os amores que cultivou por sua passagem terrena, e que seja recebida como uma filha que volta ao convívio dos seus. Espero que, do lado de lá, a recepção seja calorosa e afetiva, para que os que aqui ficam não se sintam tão tristes ao saberem do reencontro feliz com as pessoas amadas que te esperam”.

É possível que fossem estas as palavras que eu diria, mas a verdade é que não pude dize-las como desejava. Segurei a mão da pálida paciente e, mal terminando de dizer a primeira frase, a “defunta” abriu os olhos e gritou, um grito estridente, que me deixou em pânico absoluto. Ainda com os olhos arregalados ela me olha fixamente e pergunta:

– Doutor, o que o senhor faz aqui? O que houve comigo? Alguém me ajude!!

Sem entender nada olho para a porta e encontro três enfermeiras dobrando-se em gargalhadas silenciosas. Seguravam as panças tentando se conter e uma delas, acocorada ao solo, ria e se contorcia sem parar. Uma outra, mais caridosa, apontou o dedo para outra cama, onde a verdadeira falecida se encontrava deitada, já fria pela morte que havia ocorrido alguns minutos antes da minha chegada.

Sem saber o que dizer, e tentando tranquilizar a paciente, eu apenas continuei falando como se estivesse ali para uma “ronda de bem aventuranças” na madrugada. Permaneci segurando sua mão e disse que minha presença ali era apenas para me assegurar que as “mocinhas” estavam bem e dormiam tranquilas. Sua boca repleta de vazios sorriu para mim, fechou os olhos e voltou a dormir, enquanto eu me dirigia à verdadeira paciente para constatar o óbito.

Enfermeiras sacanas. Elas me pagam, nesta ou em outra vida…

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Arquivado em Histórias Pessoais

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