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O Cristal Trincado

Uma amiga minha me disse, há mais de 30 anos, que o amor é um cristal de delicada estrutura; uma vez trincado não há forma de consertá-lo. Ela me contou que teve seu primeiro filho na sua cidade natal, 200 km da capital onde morava, quando sozinha foi visitar sua família no interior. Tão logo a criança nasceu, conseguiu contatar seu marido por telefone (não havia celulares na época) e lhe contou a novidade, pedindo que ele viesse imediatamente conhecer o bebê. Ele respondeu que estava “atolado de serviço” mas que no fim de semana, “sem falta”, iria até o interior conhecer seu filho. Veio a conhecê-lo com 5 dias de vida.

Segundo ela, naquele exato instante, ao desligar o telefone e fechar os olhos pôde escutar a rachadura percorrendo a pele transparente do cristal, e os anos que se seguiram foram gastos na vã tentativa de remendar o que não tinha mais conserto. Entre os professores da obstetrícia havia um que se destacava dos demais por sua juventude e seu interesse na medicina baseada em evidências. Fazia contraste com a velharia da faculdade, que agia e pensava na base do “assim que eu faço há mais de 30 anos”, sem se preocupar com evidências bem embasadas. Este jovem catedrático era o que Marsden Wagner chamava de “liberal”, e avisava ser um dos profissionais mais perigosos. Parece ser aberto às novidades, mas apenas para aquelas que não ameacem sua autoridade e seu poder.

Durante uma aula eu fui, por certo, o único estudante que se deixou impressionar com um fragmento de frase que ele proferiu, dita de passagem entre uma e outra explicação. O resto da turma apenas concordou como se fosse algo tão somente óbvio. Disse ele: “Quando nós determinamos a via de parto para a paciente, ela deve ser preparada para….“. Para mim ficou claro, como nunca até então, que a forma como um bebê vai nascer é algo determinado por uma autoridade alheia ao binômio mãebebê. Algo de fora, um saber externo que transforma gestantes em objetos inertes e silenciosos, à mercê das ordens e comandos dos médicos. Por isso era possível determinar a forma como seu bebê seria trazido à luz. Foi nesse instante que percebi que as mulheres eram alijadas das decisões sobre o parto. Também ficou claro, a partir desse momento, que qualquer mudança na atenção ao parto seria bem vinda, desde que jamais atingisse o centro nevrálgico do paradigma médico: a posição objetual da gestante como condição essencial para a prática de sua arte.

Quando ouvi múltiplas vezes o eco de suas palavras reverberando pelos anos seguintes percebi que um projeto de reforma profunda na atenção ao nascimento só poderia emergir se subvertesse essa lógica. Por isso a frase “Humanização do nascimento é garantir o protagonismo à mulher”, pois enquanto não houver a mudança dessa narrativa – e o médico continuar “determinando” vias de parto a despeito do desejo das mulheres – manteremos a mesma tutela secular do patriarcado sobre o corpo e o desejo de gestantes. Essa aula foi o meu “trincar do cristal”, e depois dela eu nunca mais pude olhar a atenção ao parto se não fosse por uma perspectiva libertária.

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Herói

Herói médico

“A causa essencial dos problemas relacionados com a atenção médica ao parto é o próprio paradigma médico incidindo sobre a fisiologia deste evento. Vejam bem: encarceramos estudantes por 6 a 9 anos numa universidade ensinando-lhes patologia e intervenção, o combate às doenças e os tratamentos – cirúrgicos e medicamentosos. Depois de formados oferecemos a eles a fisiologia e os ciclos vitais normais, que requerem atenção e cuidado, e não intervenções tecnológicas e heroicas, as quais só deveriam existir como exceção. Diante desta encruzilhada, o que fazem os médicos em pânico, a quem oferecemos algo que não sabem fazer, não conhecem a fundo, não querem entender e sentem-se impotentes para lidar?

O que se vê e que estes profissionais transformam a gestação em doença e o parto em processo cirúrgico para assim, aliviados, poderem fazer uso de sua arte. Os médicos, portanto, também são vítimas de um modelo onde se sentem deslocados. Melhor seria que a eles fosse reservada a condição de “heróis”, prontos para agir apenas quando sua arte é necessária. Precisamos de mesmo de personagens de coragem e fibra, prontos a agir diante das ameaças que um parto pode apresentar, e não profissionais que transformam um importante rito de passagem feminino em um evento operatório, frio, asséptico e arriscado.”

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