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Os Canais

Com a delicadeza do movimento das mãos que sempre me encantou, ela me explicou sobre uma das características mais conhecidas da sua cidade. Era a primeira vez que visitava o Black Lake District, de quem só conhecia histórias curiosas sobre peixes estranhos, uma cidade invadida pelo rio e os seus canais que mais pareciam Veneza.

– Quando você está na água do rio, basta você bater as mãos e os peixes pulam. Eles são grandes e fortes, mas também são ágeis e graciosos. Parece que, ao escutarem o som das palmas, eles saltam à nossa frente, como se fossem pequenos cães amestrados. É um espetáculo maravilhoso. Venha, vou lhe mostrar.

Segurou minha mão com força e me puxou para dentro do rio. Ficamos imersos até os joelhos enquanto ela olhava com atenção para a água cristalina que nos envolvia. Em alguns poucos instantes ela apontou para um peixe à distância que se aproximava.

– Vamos, bata palmas!! – disse-me ela. Veja como eles vão se aproximar.

Resisti um pouco, com medo de fazer um papelão e nada acontecer. Fiquei com medo do ridículo da situação, mas uma senhora à distância também batia palmas enquanto olhava com atenção para o leito do rio, já com a água batendo em sua cintura. Criei coragem e comecei a fazer o mesmo e percebi que o peixe que estava distante voltou a se aproximar de nossas pernas.

– Isso, continue, mais forte!!

Continuei a bater palmas com mais intensidade até o momento em que o peixe, excitado pelo som das palmas, saltou bem à nossa frente e começou a bater suas asas. Sim, ele tinha asas pequenas que batiam freneticamente como um colibri. Fez um círculo por sobre nossas cabeças com graça e charme, deixando um arco-íris em suas asas cada vez que seu corpo se interpunha entre nossa vista e a luz do sol. Depois disso, com toda a majestade, ele mergulhou nas águas translúcidas e desapareceu de nossa vista

– São peixes-voadores – gritei eu. Que espetáculo!!

– Eu disse que bastava ter confiança que eles vinham – disse ela com um sorriso encantador.

Olhei ao redor e pude vislumbrar o teto dos edifícios mais altos ao alcance de nossa visão

– Vejo a cidade daqui. Deve ser ótimo ter um rio tão próximo – disse eu.

– Pelo visto você não conhece onde moro mesmo. Aqui o rio avança cidade adentro, invadindo as ruas e as calçadas. O rio está na estrutura mais íntima da comunidade e faz parte do dia a dia de todos; ele é a energia que nos anima. Venha, vou lhe mostrar.

Segurou minha mão e passou a caminhar comigo por dentro do rio de águas refrescantes e transparentes. Aos poucos as casas foram ficando mais próximas e fomos nos aproximando da cidade e o que era um braço de rio passou a ser um canal que se misturava com as calçadas, se intrometendo entre as casas. Percebi que a cidade era uma mistura de ruas e canais aquáticos. A água agora batia no peito, mas tamanha era a clareza que ainda era possível ver meus pés enquanto caminhava. Continuamos a andar pelas calçadas aquáticas até chegar próximo de uma rua onde vi carros pela primeira vez, ainda que distantes de nós. Paramos finalmente em frente a uma cafeteria, e foi quando Ethel perguntou se eu gostaria de tomar um café.

– Molhados assim? Eu teria que me secar primeiro…

Ela riu da minha ingenuidade.

– Aqui eles servem na calçada mesmo, basta pedir. Deixa que eu pago.

Fez um gesto com o braço e prontamente um garçom se aproximou da borda do canal. Ajoelhado, anotou o pedido que Ethel lhe fez. Recostado à borda do canal, e com o corpo submerso até o peito, eu me ocupei em decifrar os detalhes do rosto enigmático de Ethel. Seu olhar tímido, seus dentes incisivos superiores levemente assíncronos, que lhe ofereciam um charme que só ocorre diante das pequenas imperfeições. Seu olhar era sempre vivo e brilhante. Sem perceber, toquei o pé direito de Ethel que se apoiava no fundo do canal e senti seus dedos miúdos e sua pele macia. Ela não interrompeu o relato que fazia, mas abriu levemente seus lábios e misturou suas palavras com o mais lindo dos sorrisos.

Marjorie Barnes, “Gates of Illusion” Ed. Parnasso, pág. 135

Marjorie Helen Barnes é uma jornalista americana nascida em 1951 na cidade de Richfield, Utah. Fez seus primeiros estudos na escola local, mas na adolescência mudou-se para a capital do Estado, Salt Lake City. Fez seus estudos no Westminster College e depois estudou jornalismo na instituição. Aos 20 anos abandonou temporariamente a faculdade e com uma colega de curso empreendeu uma viagem de um ano pela América Central. Esta colega era Amelia Duchamps, que mais tarde se tornou igualmente escritora e descreveu essa aventura em seu livro “Amigas”. Retornou dessa viagem para terminar o curso de jornalismo e logo após iniciou uma carreira como repórter no Salt Lake City Tribune. Desde muito cedo posicionou-se à esquerda no espectro político e começou a militar no partido Democrata de seu Estado. “Portões da Ilusão” é um livro de contos onde aborda o mundo a partir de realidades alternativas. Descreve mundos lisérgicos, cores absurdas, sonoridades inauditas e conexões afetivas acima de qualquer tipo de classificação conhecida. Segundo suas próprias palavras, “Usei da ferramenta dos contos para fazer um ensaio sobre um mundo alternativo, tendo à frente uma prancheta em branco nas mãos de arquiteto criativo e sem compromissos com a coerência”. Suas histórias são ricas e criativas, mas por vezes perturbadoras, ao questionarem nossos valores mais profundos em relação à vida, morte, nascimento e sexualidade.

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Ethel

A pesar de estarmos procurando há vários minutos parecia se apequenar a chance de encontrarmos a rua. Com nosso carrinho pequeno alugado, parecia difícil achar no labirinto de ruas de São Paulo aquela pequena Alameda com árvores de flores roxas que conhecíamos de nossas visitas anteriores. Olhei para Ethel mais uma vez e disse:

– Erramos de novo. Eu falei que não era na primeira, mas na segunda à direita.

O carro minúsculo agora estava parado olhando impávido para o muro de uma obra, enquanto seus pneus, quais sapatinhos pretos de usar na escola, pisavam sobre velhas telhas de amianto que restaram de um desmanche anterior.

– Pode dar ré e começar de novo. Não temos tempo. Estão todos nos aguardando para o aniversário de Nora. E o jogo deve começar em alguns minutos. Apure!!

Só me restava concordar e engrenar a ré. O carrinho fez um guincho curioso e partiu de costas em direção à rua de onde viera, antes da má escolha de entrar no beco. Quando lá chegou manobrei para seguir com o plano traçado por minha vaga memória do lugar. Entrar na segunda, e não na primeira rua, exatamente como me lembrava. Mas bastou engrenar a marcha do carro e um fato me fez frear. À nossa frente estava um gigantesco ônibus de excursão, esses de dois andares, bloqueando a rua e na contramão. Sua face quadrada olhava para nosso pejôzinho de forma ameaçadora. Por instantes ficamos parados olhando um para o outro, sem saber o que fazer.

– Como esse sujeito ousa ficar na nossa frente desse jeito, e ainda na contramão? Quem ele pensa que é? Faça você alguma coisa, não fique parado!!

– Infelizmente aluguei um carro sem asas, disse eu. Carros voadores estavam muito caros. Preferi um modelito terrestre mesmo.

Ela sorriu do meu sarcasmo e voltou a olhar para a cara braba do ônibus. Senti que algo ia acontecer quando, depois de alguns segundos, o motorista pisou duas vezes no acelerador fazendo um ruidoso “Vrummm – Vrummm”. Milagrosamente vi o ônibus gigante emitir um apito conhecido e começar a andar para trás. Vagarosamente andou de ré enquanto eu o seguia, como se uma força milagrosa fizesse nosso carrinho alugado empurrar o monstro de dois andares. Mais alguns instantes e ele deixou passagem para a segunda rua, aquela que eu acreditava ser a correta para chegar na casa de Carlos. Tão logo houve passagem buzinei para a gentileza do motorista e entrei na rua de árvores com flores roxas. Liguei o rádio e começou a tocar “Soy pán, soy paz, soy más” de Mercedes Sosa, uma música que sempre me carrega à adolescência. Mais ao fundo eu vi o final da Alameda e uma placa, mas as casas eram antigas e cinzas, completamente diferentes do que eu trazia na memória. Fiquei mais uma vez desnorteado e pedi a Ethel que me dissesse o que lia na placa.

– Calle 25 de Mayo, disse ela. Com “ípsilone” mesmo, completou.

Fiquei confuso, mas minha confusão só aumentou quando percebi ao fundo o que parecia ser um estandarte azul e branco que eu bem conhecia, o qual tremulava com a brisa salobra do Rio da Prata. À minha frente vários cupês pretos de capota amarela cruzavam ruidosamente as faixas da avenida. As casas antigas e o estilo inglês agora faziam sentido.

– Estamos em Buenos Aires, Ethel. Aconteceu alguma coisa, mas creio que só existe uma explicação. Temo dizer, mas creio que você já sabe.

Ethel sorriu conformada. De seus olhos marejados surgiram dois tênues córregos cristalinos de lágrimas.

– Eu sei, eu sei, disse ela com a voz embargada, e você pode fazer o que precisa ser feito. Estarei aqui quando você voltar. Vá, não se demore. Pode ir.

Ainda relutante, olhei fundo em seus olhos verdes enquanto suas mãos frágeis e frias juntavam as palmas das minhas junto ao meu peito.

– Você sabe como fazer.

Afastei-as e bati uma vez. Repeti o gesto e parei. Olhei para Ethel enquanto meus olhos diziam “Não posso ficar mais um pouco aqui com você?”, mas ela apenas sorriu e balançou a cabeça dizendo para bater as mãos uma derradeira vez. Na terceira batida as imagens foram se apagando, tornando-se emaranhadas e confusas. Abri os olhos e pude ver, ainda buscando o foco, a porta do armário de madeira escura, pintada pelos primeiros raios de sol da manhã. O barulho dos passarinhos já era estridente, enquanto os sons desconexos da rua se misturavam com o ar do quarto. Fiquei por instantes olhando a porta, mas depois de girar meu corpo na cama encontro os olhos fechados de Ethel que ainda aguardava o seu momento de voltar. Quem sabe preferiu ficar na solidão do nosso carro alugado esperando o término da música de Mercedes.

Maurício Rosenfeld, “Delírios e blues”, ed. Brasilianense, pág 135

Maurício Rosenfeld é escritor e advogado. Nasceu em 1959 em Campo Grande – MS e desde cedo escreve para jornais e coletâneas literárias de sua cidade. Na advocacia dedicou-se à defesa das comunidades quilombolas e dos trabalhadores sem terra. Escreveu vários artigos para os jornais locais e “Delírios e Blues” é seu primeiro livro de crônicas, onde aborda seu trabalho com as populações excluídas, contos eróticos, ficção e sua paixão pelo “blues”, em especial o trabalho de Riley Ben King, mais conhecido como “B. B. King”. Mora em Campo Grande.

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