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Labotois

Sonhei essa noite que estava carregando um grupo de amigos na caçamba de uma caminhonete. Esta caminhonete havia sido assaltada e o banco do carona foi roubado. Ou seja: não havia “banco”, mas ainda assim era possível dirigir o veículo e dar carona aos meus parças. Dirigi pelas ruas tortuosas até que precisei entrar na rua Independência, mas para isso precisaria acessar primeiro a rua “Labotois”. Perguntei a alguém na rua como seria possível subir por esta rua, mas não obtive resposta. Acordei com esse nome na cabeça – uma rua que eu bem sei que não existe – e anotei no celular. Pela manhã voltei a pensar no que esta palavra poderia querer me dizer.

Labotois (Labotoá)??? Essa palavra, aparentemente não existe em nenhum idioma. Vejamos onde ela pode se situar…

* La Bote (restaurante antigo da cidade). Pizza, com meus amigos…
* La Boîte (a caixa, a lata). “Alors j’ai commencé à chercher à l’extérieur de la boîte.”Então comecei a pensar fora da caixa…
* La Boîte aux Lettres (a Caixa de Correio, restaurante em Paris). Tudo a ver com minha estrutura sofisticada, que curte “haute cuisine française”, só que não. Ou será que estou para receber uma correspondência importante? I bet that’s the best choice.
* La Boétie (Étienne de La Boétie, cuja obra mais famosa é seu Discurso da Servidão Voluntária, escrita em 1548, após a derrota do povo francês contra o exército e fiscais do Rei, que determinaram um novo imposto para a cobrança do sal. A obra se estabeleceu como um hino à liberdade, com análises muito pertinentes sobre as origens do autoritarismo e da dominação de grandes grupos por alguns poucos poderosos. Também trata da necessária indignação pela violência da opressão e as formas como enfrentá-la. Morreu com apenas 32 anos de idade e foi o grande amigo de Montaigne, que jamais se recuperou de sua perda).

Lígia Víctora, onde estás?

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O Alçapão

Sonhei que estava em Nova York, participando de um congresso em um edifício cheio de brilhos e espelhos. Sonhar com essa cidade é algo recorrente; ela desempenha para mim um espaço curioso desde a experiência inesperada que tive ao conhecê-la, recém saído da adolescência, há 40 anos. Sei que isso é clichê, mas esta cidade tem um significado bem pessoal para mim.

Neste sonho eu estava visitando a cidade com Zeza e Bebel quando acabei encontrando uma querida amiga aqui do Brasil que havia se mudado há pouco para lá. Fui visitar a sua casa e percebi que havia um alçapão dentro da cozinha que levava para um porão lúgubre e úmido, o qual não me atrevi a explorar. Cheguei a comentar com ela “O que seria do cinema americano sem esses aposentos carregados de suspense e mistério, não?”. Na tampa do alçapão estava presa uma corda e, ao puxá-la, pude ver que acionava uma roldana que fez subir um balde escuro de um poço no canto da peça, de onde se retirava água. Fechei o alçapão e fui para os fundos da casa, onde havia um quintal com patos, cachorros e um córrego de água fria e translúcida.

Depois de conversar demoradamente com minha amiga e sua mãe eu lembrei que precisava me despedir para reencontrar Zeza. Todavia, meus pés estavam desnudos e eu não conseguia achar meus sapatos. Enquanto os procurava para voltar ao hotel, as pessoas, no afã de ajudar, traziam outros pares de sapatos, achando que poderiam ser os meus. Depois de experimentar vários, finalmente trouxeram o verdadeiro, mas então começou um novo drama: encontrar os cadarços corretos. No final, achei cadarços pretos para um pé, diferentes do outro, que eram marrons.

Havia brasileiros moradores de Nova York na casa e quando perguntei a eles se haveria um programa para me indicarem um deles me respondeu: “Veja, os bons programas, aqueles imperdíveis, você não teria como comprar hoje, pois estão esgotados há semanas. Além disso seriam tão caros que você não conseguiria pagar.”

Minha resposta foi resignada: “Bem, é melhor aceitar as coisas que minha condição permite do que desejar algo além do razoável. Se não tenho condições para pagar estes programas, melhor me divertir com as alegrias possíveis.”

Quando questionei minha amiga pela sua decisão súbita de se transferir para Nova York, ela me disse algo como “ahh, foram tantas coisas, tantos fatos, demoraria muito a explicar. Mas resolvemos em conjunto mudar para cá”.

Fim

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Sonho

Tive um sonho com meu pai. Nele eu estava muito deprimido e pensei que ele podia aparecer para me dar alguns conselhos ou aclarar minhas ideias sobre os dilemas que terei que enfrentar. Pois, por ser sonho, ele apareceu, do jeito que sempre me lembro dele. Suas sandálias, a camisa alinhada, os óculos e o cabelo branco. Quando me viu, no meio de um lugar movimentado que parecia ser um restaurante, pareceu surpreso.

– Oi meu filho, como vai? Que saudade!!

Emocionado o abracei.

– Obrigado pai, eu tinha muita coisa pra lhe dizer. Como você está bem!!! Como está a mãe?

Ele riu de forma tímida e respondeu.

– Pois achei que tua mãe viria junto. A gente estava conversando sobre a viagem quando ficou tudo enevoado e eu apareci aqui. Não a viu?

Respondi que não vi mais ninguém além dele, mas perguntei de qual viagem estava falando.

– Ah, uma viagem longa. Vamos a vários lugares, mas primeiro tua mãe quer passar em Paris. Sabe a paixão que ela tem por essa cidade.

– Fico feliz que vocês possam fazer estes programas. Na verdade sempre imaginei que estariam fazendo coisas assim.

– Ah, tua mãe sempre teve essas ideias. Ele adora esses programas. Pois foi um prazer lhe ver filho. Bom mesmo. Cuide o peso, caminhe bastante. Dá aqui um abraço.

Só então percebi sua inquietude.

– Está com pressa? Recém chegou!!

– Não é exatamente pressa, mas nós estávamos fazendo as malas. Imagine uma viagem que mistura Jericoacoara, Paris e o pico do Himalaia no mesmo pacote. Sabe como tua mãe gosta de levar tudo e não esquecer nenhum detalhe. Eu estava exatamente escolhendo umas camisas quentes quando você chamou. Mas veja, podemos conversar mais um pouco, se quiser.

– Na verdade eu tinha tanta coisa pra contar. Queria perguntar sua opinião sobre algumas decisões a tomar e algumas curiosidades. Por exemplo, no céu tem pão?

Ri sozinho e meu pai pareceu não entender a piada, pois ficou explicando sobre as padarias que tem na rua onde ele mora. Enquanto falava olhou para o seu relógio.

– Olha, podemos marcar pra outro dia? Sabe como é tua mãe, deve estar preocupada me procurando. Se eu estivesse com meu celular ligava pra ela, mas deixei em cima da mesa da cozinha junto com os documentos e o passaporte.

– Mas eu tenho algumas coisas a perguntar, e eu…

Sua resposta foi um abraço e mais poucas palavras.

– Em breve vamos nos encontrar, não se preocupe. Voltarei com mais tempo para conversar. Saiu caminhando em direção à saída, e quando estava próximo da porta se virou para mim e perguntou de longe:

– E o Grêmio? Lá de cima a gente não tem acompanhado.

Acordei em lágrimas…

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Sonho

Sonhei que uma amiga havia me deixado um aviso no WhatsApp dizendo que precisava de mim em São Paulo para…. (durante o sonho eu sabia do que se tratava, mas bastou acordar para que o conteúdo do pedido fosse apagado).

Próxima cena eu estava numa sala de espera aguardando essa amiga terminar um atendimento, em um lugar que me pareceu uma clínica bem movimentada. Nisso entra uma moça muito magrinha, com uma espécie de camisola hospitalar como se estivesse internada, amparada por sua família e com uma barriguinha muito pequena. Ela e a família falavam apenas inglês e eu presumi que ela tinha chegado do exterior para uma consulta.

Resolvi aguardar mais um tempo o momento de conversar com a amiga, já que aquela consulta parecia ser de emergência. Enquanto isso, fiquei conversando com a secretária da clínica até perceber que era uma antiga paciente minha que – por acaso – havia escrito para mim uma carta emocionada há alguns dias. Ela me contava detalhes da sua vida, inclusive que teve que se separar por conflitos com o seu enteado, filho do seu ex marido. Durante um tempo ficou me contando as agruras da vida de separada até que resolvi dar uma caminhada para conhecer o local, não sem antes me despedir dela, pedindo que me chamasse pelo celular tão logo a consulta tivesse terminado.

Saí caminhando pelo redondezas até cansar. Resolvi entrar numa sala que parecia um quarto de hotel onde havia uma geladeira, um banheiro, uma mesa e um sofá. Deitei no sofá para descansar um pouco, mas antes de me recostar peguei um picolé que achei na geladeira. Tive a impressão de ter cochilado um pouco (um cochilo dentro de um sonho…) e acordei sobressaltado quando alguém entrou pela porta. Só então percebi que estava em uma mistura de quarto de hotel e sala de consultas. A mesa do “quarto” na verdade era uma escrivaninha e o sofá uma mesa de exames. Quem entrou na sala foi uma conhecida médica da humanização. Ficou surpresa ao me ver, e foi logo dizendo que a partir de então passaria a atender ali exclusivamente. Explicou que em seu antigo emprego era obrigada a atender 200 consultas durante a tarde (não ficou claro se era um número correto ou uma hipérbole) e que o administrador era rude, grosseiro é só pensava em dinheiro. “Bastava eu sair da sala para tomar um café e ele gritava ‘Trabalhe, doutora, levante-se daí!!!’, sem qualquer consideração ou respeito”, disse-me ela referindo-se ao seu ex-chefe crápula.

No sonho cheguei a lembrar que no auge do meu consultório eu atendia 12 a 14 consultas por dia, mas nada falei para ela. Apenas a cumprimentei pela mudança e pela nova ocupação.

“E você, o que faz aqui em São Paulo?”. Comecei a explicar a ela que tinha sido convidado por uma colega para lhe auxiliar em algo, mas não cheguei a lhe dizer do que se tratava. Foi só nesse momento percebi que minha viagem até São Paulo não tinha nenhum registro na memória. “Putz, será que eu vim dirigindo? Não me lembro de ter pego um avião”. Abracei minha colega e me despedi dela, pensando em voltar para a clínica para ver se minha colega já havia terminado a consulta com a menina americana. Quando me encaminhava para lá fui parado por uma senhora simples que carregava uma sacola cheia de radiografias, que me perguntou se ali era o “hospital de fraturas”, ao que eu respondi:

“Não, aqui é a Casa de Parto”.

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Borboletas

Sonhei que estava em uma aula com várias moças muito jovens e alegres, que conversavam entre si alegremente enquanto eu me mantinha quieto. Um certo momento entra uma senhora mais velha, mas muito “faceira”. Apresenta-se, fala algumas poucas palavras, apresenta-se como a professora e diante da turma abre uma caixa de onde saem inúmeras borboletas multicoloridas.

“Será nossa aula de “borboletologia“, disse ela. Tirei do bolso um papel-sonho e anotei “Confirmar o nome ao acordar”. Foi o que fiz, e descobri que o nome da ciência que estuda as borboletas é a “lepidopterologia“, um ramo da entomologia.

Uma das borboletas, que mais parecia uma planta de jardim disfarçada, pousou bem à minha frente. Enquanto observava os detalhes curiosos de suas asas de matizes multicores a professora se aproximou de mim.

“Por que está cara tão fechada?”, disse ela, olhando bem em meus olhos com sua reprovação amorosa. “Veja quantas borboletas!!”. Só então me dei conta da tensão do meu rosto e da minha incapacidade de sorrir diante da surpresa que nos foi oferecida. Olhei ao redor e pude ver todas as minhas colegas alegremente correndo atrás delas com seus smartphones engatilhados e suas risadas fáceis.

Notei que as borboletas eram “camaleônicas” e se transmutavam, mudando o formato das asas e suas cores na medida em que falávamos com elas, isso tudo diante de nossos olhos incrédulos.

A professora tinha razão; não fazia sentido algum ser rabugento diante de tanta e tão efusiva beleza.

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Ethel

A pesar de estarmos procurando há vários minutos parecia se apequenar a chance de encontrarmos a rua. Com nosso carrinho pequeno alugado, parecia difícil achar no labirinto de ruas de São Paulo aquela pequena Alameda com árvores de flores roxas que conhecíamos de nossas visitas anteriores. Olhei para Ethel mais uma vez e disse:

– Erramos de novo. Eu falei que não era na primeira, mas na segunda à direita.

O carro minúsculo agora estava parado olhando impávido para o muro de uma obra, enquanto seus pneus, quais sapatinhos pretos de usar na escola, pisavam sobre velhas telhas de amianto que restaram de um desmanche anterior.

– Pode dar ré e começar de novo. Não temos tempo. Estão todos nos aguardando para o aniversário de Nora. E o jogo deve começar em alguns minutos. Apure!!

Só me restava concordar e engrenar a ré. O carrinho fez um guincho curioso e partiu de costas em direção à rua de onde viera, antes da má escolha de entrar no beco.

Quando lá chegou manobrei para seguir com o plano traçado por minha vaga memória do lugar. Entrar na segunda, e não na primeira rua, exatamente como me lembrava.

Mas bastou engrenar a marcha do carro e um fato me fez frear. À nossa frente estava um gigantesco ônibus de excursão, esses de dois andares, bloqueando a rua e na contramão. Sua face quadrada olhava para nosso pejôzinho de forma ameaçadora. Por instantes ficamos parados olhando um para o outro, sem saber o que fazer.

– Como esse sujeito ousa ficar na nossa frente desse jeito, e ainda na contramão? Quem ele pensa que é? Faça você alguma coisa, não fique parado!!

– Infelizmente aluguei um carro sem asas, disse eu. Carros voadores estavam muito caros. Preferi um modelito terrestre mesmo.

Ela sorriu do meu sarcasmo e voltou a olhar para a cara braba do ônibus.

Senti que algo ia acontecer quando, depois de alguns segundos, o motorista pisou duas vezes no acelerador fazendo um ruidoso “Vrummm – Vrummm”. Milagrosamente vi o ônibus gigante emitir um apito conhecido e começar a andar para trás. Vagarosamente andou de ré enquanto eu o seguia, como se uma força milagrosa fizesse nosso carrinho alugado empurrar o monstro de dois andares.

Mais alguns instantes e ele deixou passagem para a segunda rua, aquela que eu acreditava ser a correta para chegar na casa de Carlos. Tão logo houve passagem buzinei para a gentileza do motorista e entrei na rua de árvores com flores roxas.

Liguei o rádio e começou a tocar “Soy pán, soy paz, soy más” de Mercedes Sosa, uma música que sempre me carrega à adolescência. Mais ao fundo eu vi o final da Alameda e uma placa, mas as casas eram antigas e cinzas, completamente diferentes do que eu trazia na memória. Fiquei mais uma vez desnorteado e pedi a Ethel que me dissesse o que lia na placa.

– Calle 25 de Mayo, disse ela. Com “ípsilone” mesmo, completou.

Fiquei confuso, mas minha confusão só aumentou quando percebi ao fundo o que parecia ser um estandarte azul e branco que eu bem conhecia, o qual tremulava com a brisa salobra do Rio da Prata. À minha frente vários cupês pretos de capota amarela cruzavam ruidosamente as faixas da avenida. As casas antigas e o estilo inglês agora faziam sentido.

– Estamos em Buenos Aires, Ethel. Aconteceu alguma coisa, mas creio que só existe uma explicação. Temo dizer, mas creio que você já sabe.

Ethel sorriu conformada. De seus olhos marejados surgiram dois tênues córregos cristalinos de lágrimas.

– Eu sei, eu sei, disse ela com a voz embargada, e você pode fazer o que precisa ser feito. Estarei aqui quando você voltar. Vá, não se demore. Pode ir.

Ainda relutante, olhei fundo em seus olhos verdes enquanto suas mãos frágeis e frias juntavam as palmas das minhas junto ao meu peito.

– Você sabe como fazer.

Afastei-as e bati uma vez. Repeti o gesto e parei. Olhei para Ethel enquanto meus olhos diziam “Não posso ficar mais um pouco aqui com você?”, mas ela apenas sorriu e balançou a cabeça dizendo para bater as mãos uma derradeira vez.

Na terceira batida as imagens foram se apagando, tornando-se emaranhadas e confusas. Abri os olhos e pude ver, ainda buscando o foco, a porta do armário de madeira escura, pintada pelos primeiros raios de sol da manhã. O barulho dos passarinhos já era estridente, enquanto os sons desconexos da rua se misturavam com o ar do quarto.

Fiquei por instantes olhando a porta, mas depois de girar meu corpo na cama encontro os olhos fechados de Ethel que ainda aguardava o seu momento de voltar. Quem sabe preferiu ficar na solidão do nosso carro alugado esperando o término da música de Mercedes.

Maurício Rosenfeld, “Delírios e blues”, ed. Brasilianense, pág 135

Maurício Rosenfeld é escritor e advogado. Nasceu em 1959 em Campo Grande – MS e desde cedo escreve para jornais e coletâneas literárias de sua cidade. Na advocacia dedicou-se à defesa das comunidades quilombolas e dos trabalhadores sem terra. Escreveu vários artigos para os jornais locais e “Delírios e Blues” é seu primeiro livro de crônicas, onde aborda seu trabalho com as populações excluídas, contos eróticos, ficção e sua paixão pelo “blues”, em especial o trabalho de Riley Ben King, mais conhecido como “B. B. King”. Mora em Campo Grande.

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Despertar

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Afinal, será que eu existo mesmo?

Ou será que eu sou apenas o produto de uma incubadora num campo de cultivo de gente que vive um mundo virtual pensando ser real? … ah, desculpe, já fizeram esse filme…

Mas e se eu for tão somente o sonho bizarro de um mago de outro planeta, que está prestes a acordar, e quando ele acordar eu mesmo desapareço, torno-me poeira, viro memória fugaz, algo que ele contará em fragmentos dispersos para o seu analista, que igualmente não entenderá e apenas dirá “muito bem continuamos na próxima terça-feira”.

E quando ele acordar estarei em suspenso, olhando minha falsa existência evaporar enquanto encaro os olhos esbugalhados de uma fictícia paciente que faz força na minha frente.

Escuto um som ao longe. Parece um trinado, um som de passarinho. É, na verdade… um alarme de celular!!! Não atenda mago da outra galáxia!!! Não me tire daqui, pois este bebê já vai chegar. Não acorde, não acorde…

Espere ao menos o beijo que guardei para os meus nos derradeiros instantes de minha rápida existência. Se você tiver um resquício de amor em seu coração não permita que…

Puff…

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Matilda

Festa 1900

Sonhei que tinha reencontrado uma antiga namorada que mora no interior de São Paulo, mais especificamente em Bauru. O detalhe é que nunca na vida namorei uma moça com este nome, muito menos nessa cidade.

O sonho é bem curioso e rico em detalhes. Depois de passar o domingo na piscina com minha família lembrei que à noite eu teria aulas no curso de “Combate à Violência contra a Mulher“. Um dos tópicos inovadores do curso era Violência Obstétrica, o que me fez desejar assistir as aulas. Esse assunto está cada dia mais em voga na atualidade, e ainda estamos na fase de quebrar o preconceito em reconhecer as múltiplas violências que acometem as mulheres no processo de gestar e parir. Nada mais justo que eu participasse de um curso que poderia ajudar a fechar um dos “furos” da humanização: a incompetência do sistema jurídico em reconhecer a humanização do nascimento como um elemento importante para a justiça social. Sem o necessário respeito aos direitos básicos reprodutivos e sexuais das mulheres estes objetivos jamais seriam alcançados.

O Estágio

Pensando que seria uma aula apenas expositiva e por estarmos em pleno verão, eu me dirigi ao prédio muito grande e portentoso da “Procuradoria da Polícia” vestindo camiseta, bermudas e tênis. “Ah, ninguém me conhece aqui. Fico quietinho no fundo, assisto minha aula e não passo calor“.

Ledo engano, do qual me arrependeria amargamente. Chegando no prédio e me identificando na portaria logo fui surpreendido pelo rapaz da recepção que disse: “Ah. Ricardo? Você é o estagiário do curso? Está atrasado e o comissário Edgar o está aguardando.”

Fiquei perplexo. Estagiário? Este curso tem estágio? Comissário Edgar?

Fui levado a uma sala onde um policial vestia um uniforme parecido com a polícia americana. Calças azuis escuras, camisa azul celeste e quepe da mesma cor da calça. Ele se ergueu da cadeira onde estava acomodado e me esticou a mão.

“Sou comissário Edgar, e você deve ser Ricardo, o estagiário que vai me acompanhar. Você está atrasado e colocarei isso no meu relatório. Precisamos fazer um atendimento agora. Trata-se de um “145”. Prepare-se, pois já vamos sair”.

Vamos sair? Como assim? Para onde vamos? E como vou trabalhar de bermuda “camiseta de banda” (pior, The Smiths) e tênis? E o que diabos é um “145”.

Dois minutos depois Edgar reaparece com suas armas, uma pasta e um molho de chaves na mão. “Está pronto?”

“Sim”, respondo de forma titubeante. Ele me olha de cima à baixo. Analisa minha camiseta branca com as figuras bizarras, olha para meus pés sem meias e o tênis velho e responde: “Muito bem, me encontre na viatura”.

Viatura? Como assim? Vamos dar uma batida? Vamos prender um marido espancador? Afinal, o que é essa porra de “145”?

Desço um lance de escadas até o estacionamento ladeado pelo comissário Edgar. Ele teria idade para ser meu filho, mas isso não o impedia de me tratar como o mais desimportante de todos os mortais. Praticamente nem me olhou, a não ser para analisar minhas roupas. Entretanto, nenhuma crítica fez a elas, e parecia mais preocupado com o tempo do que qualquer outra coisa.

Chegamos na viatura que era, sem surpresa, um Opala preto com a capota branca, de onde sobressaia o giroscópio, um quadrilátero que emitia intermitentemente luzes brancas, vermelhas e azuis. Apesar do visual retrô do carro, o interior era modernoso, e cheio das “baitolagens eletrônicas” contemporâneas. Computador, sonar, vidro a prova de balas, luzes piscantes, rádio da polícia, etc.

Imediatamente me senti dentro de um seriado “COPS” versão tupiniquim. Ligamos a sirene ao sair do prédio da “Procuradoria” e tomamos a pista da direita em direção à perimetral. Neste momento, após colocar o cinto a pedido do Edgar, perguntei a ele onde estávamos indo e o que significava o “145” que ele tinha dito.

Edgar foi econômico com as palavras. “Não gostamos de revelar nossos códigos. Para isso eles são feitos: para que os cachorrões não saibam o que eles significam. Mas você é estagiário, portanto pode saber. Afinal, vou precisar de sua ajuda com o relatório. Um “145” é o código para constatação de que o companheiro efetivamente se afastou da casa de sua esposa depois de uma queixa de abuso. Vamos lá pedir o testemunho dos dois. Isso é importante para a formalização do divórcio”.

Dessa história eu entendi que os “cachorrões” éramos todos nós, os que não são da polícia. Mas não conseguia entender bem qual a razão de sermos chamados a confirmar a execução de uma ordem judicial. Quanto aos jargões eu os entendia muito bem. Os nomes que damos às doenças, suas siglas (AVC, DBPOC, ITU, CA, BCP, etc) e seus epônimos cumprem a função de todos os jargões profissionais, assim como os latinismos jurídicos. Funcionam como um código secreto (ma non troppo) de conversação entre iguais, isolando os outros de nossos saberes exclusivos. A medicina sempre foi mestra nisso.

“Aqui nessa pasta podes ver os detalhes do caso. Precisamos chegar a tempo. Todos nos aguardam. Vamos para Bauru”

Bauru

Edgar me entrega a pasta enquanto se dirige para o que deve ser, acredito eu, um portal espaço-tempo, pois minutos depois de passarmos pelo largo Zumbi dos Palmares na minha cidade, estávamos dirigindo na cidade de Bauru.

A pasta do caso em questão, o “145”, jazia sobre o meu colo. Abri com cuidado e lentamente a cartolina que lhe servia de capa e li a primeira página até chegar no nome dos envolvidos.

Nesse instante eu constatei a brutal coincidência, que apenas as confluências de significados oníricos são capazes de produzir. Estávamos nos dirigindo à casa de Matilda Malamud, uma antiga namorada, com quem tive um breve romance há décadas.

É importante salientar que Matilda também é um produto do sonho, assim como a cidade onde estávamos, o que deixa o sonho ainda mais enigmático e simbólico.

Matilda era uma das herdeiras da fortuna de um advogado famoso dos anos de chumbo, que ganhou notoriedade libertando presos políticos e lutando em prol das liberdades democráticas. Matilda era linda, jovem e moça muito rica. Por essas razões sempre foi cobiçada pelo “jet set” interiorano. Nosso romance havia sido breve, mas intenso. Foi sério a ponto de fazermos planos, de pensarmos em filhos e, por isso, tive oportunidade de conhecer suas irmãs e sua mãe, esta última há muitos anos viúva. Não deu certo: seu estilo de vida sofisticado e perdulário jamais se acomodaria a um estudante de medicina pobre e filho de funcionário público. Resolvi terminar com tudo antes que nossa vida se tornasse insuportável e atormentada. Como a de Adélia, outra mulher impressionante, mas Adélia é outra história.

A coincidência se tornou ainda mais aterradora quando me dei conta que estaria visitando uma ex-namorada milionária vestindo bermudas, tênis velho sem meias e camiseta de uma banda gay dos anos 90. O que poderia ser mais humilhante que isso?

Aos poucos íamos nos aproximando da mansão que ocupava uma quadra inteira próxima do centro da cidade. Quando namorei Matilda (em sonho) imaginava que seria necessário um ano inteiro de trabalho como médico apenas para pagar o IPTU dessa propriedade. Jamais um proletário como eu poderia participar do seu círculo de amizades. E o que faria eu das minhas ideias socialistas? Colocaria no lixo meus sonhos de igualdade e fraternidade em nome de conforto, luxo, facilidades e uma paixão?

Finalmente chegamos à sua casa onde um empregado de uniforme nos recebeu na imensa porta de entrada. Edgar informou de nossa missão oficial e entregou um documento. O empregado olhou para o papel e depois me analisou de cima a baixo, com olhar de desprezo e desconfiança.

“Os senhores estão sendo aguardados. Por favor, me acompanhem”.

A Mansão

Que situação! Por alguns instantes nutri a esperança de que Edgar me deixaria aguardando no carro enquanto ele pegava as assinaturas necessárias, mas não foi o que ocorreu. Lá estava eu, reencontrando a mansão que já havia visitado na juventude. Confesso que pensei que aquilo tudo poderia ser meu. Os móveis finos, as luminárias, os móveis de época…

Depois de caminhar longamente por um corredor interminável Edgar e eu, acompanhados pelo empregado impecavelmente vestido com uniforme, finalmente chegamos a uma porta de mogno maciço. Por trás da porta sons e conversas alegres. Quando ela se abriu fomos banhados pela luz radiante do ambiente e pelo aroma de vinho.

Bem tinha razão o mestre ao dizer que os sonhos não o são como os sonhamos. Um sonho é como um emaranhado de fios que correm dispersos para qualquer lado. Seus significados são quebrados, partidos, inconstantes. Somente ao contá-lo é que podemos enrolar os fios disparatados e criar um novelo de coerência. Contar um sonho é revivê-lo, descobri-lo, entendê-lo em suas filigranas e minúcias. Os esquecimentos, bem… estes são os melhores e mais importantes momentos, mas que – por obra do inconsciente – ficam escondidos de nós mesmos.

Edgar e eu entramos na sala iluminada enquanto vozes silenciavam e olhares se voltavam para nós. Ao que tudo indica, nossa presença era esperada como algo que iniciaria os procedimentos, sejam lá quais fossem. A primeira pessoa que se aproxima de mim é Helga, a irmã mais velha de Matilda.

Helga

“Eu não acredito! Ricardo, é você? Você está bem apesar de….” Ela olha para minha cabeça que reflete a luz que vem do majestoso candelabro de cristais checos cintilando acima de minha lustrosa testa.

“Maduro”, respondi para ela. “Sim, Helga. Faz muito tempo que não nos vemos. Como está? E os negócios, indo bem?”

Eu não parava de pensar nas minhas roupas absurdas, mas os passantes pareciam não se importar ou mesmo se dar conta disso, e Helga menos ainda. Perguntei a Helga dos “negócios” porque é isso que se pergunta para uma mulher solteira e sem filhos. Helga nunca havia se casado, apesar de ser uma bela mulher, dotada de inteligência e humor refinados. Era outra cerejinha no bolo das solteiras desejadas da cidade, mas aparentemente ninguém era capaz de passar pelo seu crivo. Problemática? Exigente? Não haveria ninguém nesse mundo para ocupar o lugar do comendador Faustino no coração dessa mulher?

O comendador Faustino, aliás, era uma presença ilustre na sala, apesar de ter morrido há 3 décadas. Havia no ambiente pelo menos três imagens suas. Em uma delas está vestido com um traje aparentemente militar; em outra andando a cavalo na fazenda, e em uma terceira fotografia está ao lado da mulher e das três filhas pequenas. Uma quarta, descobri depois, era uma foto de corpo inteiro com uma beca especial usada para uma cerimônia da Maçonaria. O comendador ainda era citado na cidade como benfeitor, humanitário e “homem de princípios”.

Helga perguntou da minha vida, do que fazia, mas o “chit-chat” não se aprofundou em tema algum. Ao meu lado passavam pessoas distintas, homens de negócios, senhoras muito bem vestidas, com longos vestidos de tafetá. Consegui vislumbrar em um canto da sala um homem trajando um uniforme azul com encordoamento trançado no peito e uma gola vermelho sangue reluzente, com chapéu pontiagudo, bigodes apontando para cima, a lá Salvador Dali. Ele se ergueu e cumprimentou uma senhora com toda a pompa e circunstância. Parecia ser um oficial da Prússia no tempo de Frederico. Os senhores eram verdadeiros fidalgos, isto é, “filhos-de-algo“, gente bem-nascida, com posses, “burgeois” de estirpe. Gente com “pedigree“.

Depois de palavras que ficaram perdidas na conversa com Helga, pequenos nós no novelo que eu montava a partir dos fios emaranhados de lembranças, acerquei-me de um ponto mais à esquerda, onde estava Sophia, a irmã mais nova de Matilda.

Sophia

A sala era uma obra de arte escondida dos olhares invejosos dos cidadãos comuns da cidade. Por todo o lado que eu olhasse percebia luxo, requinte, sofisticação e bom gosto. As cortinas de um vermelho escuro aveludado eram adornadas com detalhes dourados. As janelas enormes enfeitavam as paredes, em salas cujo pé direito era majestoso, diminuindo ainda mais a minha figura vestida pateticamente com bermudas de “surfista calhorda”.

Quando avistei Sophia minha memória imediatamente me ligou à cunhada com quem brevemente convivi. Era a mais moça das irmãs e a mais geniosa, por certo. Alegre, esfuziante, intensa, porém ciumenta, birrenta e geniosa. Era a mais esperta de todas, mas carregava a cruz de ser a mais novinha, a caçula. Como era de se esperar, era a mais ligada na mãe. Além disso, Sophia era sedutora e provocante, e adorava provocar ciúmes nas irmãs com comportamento, digamos, abusado, quando seus cunhados (ou pretendentes a tal honraria) apareciam na sua casa.

Ela continuava bonita e igualmente sedutora, sem dúvida. Apesar dos meus trajes inusitados facilmente me reconheceu, mas – ao contrário do que seria esperado – não me tratou como uma figura bisonha incrustada em uma espécie de “baile de gala”. Não, ela me tratou como um convidado qualquer que apareceu de surpresa na festa de sua casa.

“Ricardino, como vai? Parece que os anos lhe fizeram bem. Ficou bem melhor sem a barba, apesar de que eu gostava dela. Lembro de pedir para você cortar, mas era apenas para fazer birra com Matilda. Sua mãe como está?”

Respondi às suas perguntas de forma breve e sucinta, mas a maior parte da conversa que tivemos depois dessa breve apresentação se perdeu no novelo das memórias, ou eram ideias desconexas demais, feitas de assuntos diversos e sem ligação óbvia com o contexto. Assim são os sonhos, que se revelam muito mais pelo que não dizem do que pelo que é expresso.

Minha atenção agora se dirigia para o centro do salão. Por trás de um grupo de convidados que a cercavam estava a figura central de toda aquela cena: a matriarca, senhora Efigênia Malamud.

Efigênia

Foi necessário um pouco de esforço para afastar as pessoas que rodeavam a “viúva”. Efigênia, a esposa amantíssima do comendador Faustino, era o que sobrara de realeza na burguesia brasileira. Ao seu redor não estavam amigos e parentes; aglomeravam-se súditos para cumprimentar uma dama, a mais nobre das mulheres daquela sociedade. Uma celebridade local.

Com um pouco de esforço, e a ajuda de Edgar, conseguimos nos encontrar com a matriarca. A “viúva” mantinha-se assediada por senhoras, crianças de vestidos rodados e senhores distintos. Estava sentada em uma cadeira enquanto sorvia uma xícara de chá. Tudo naquela mulher inspirava nobreza…. e soberba. Ela parecia perceber claramente sua superioridade. Acostumada a ter criados, serviçais, políticos locais, médicos e juízes sob seu controle, ela vestia uma aura de confiança inabalável.

Para minha surpresa, apesar dos anos passados, ela se lembrou de mim quando me aproximei.

“Ora, ora, ora. Quem é vivo sempre aparece. O estudante sabichão. Ricardino, como vai? Há muitos anos que não apareces em minha casa. Você fica bem sem a barba, mas ninguém pode negar que continua dono de um estilo inconfundível”. Sem surpresa ela foi a única a fazer algum comentário sobre a minha roupa. A câmara onírica sai do enquadramento do seu rosto magro e agudo e volta a focar nas minhas pernas brancas, a bermuda e a camiseta. Fico constrangido mais uma vez, mas permito que o sonho continue com esse descompasso de estilos, na esperança que alguém, no futuro, possa oferecer uma boa interpretação.

“Não diria que sofri quando você se afastou de Matilda, seria um exagero. Entretanto, entendi que eram jovens demais, imaturos e impulsivos. Foi bom assim. Além disso, vocês eram muito diferentes. Digo, você era um rapaz de cidade e Matilda foi criada na fazenda, com regalias e mimos. Seria uma adaptação complexa. E sua mãe como vai?”

Sim, Efigênia. Diferentes demais. Mais do que uma vida cheia de facilidades e mimos, pode ter certeza. Para mim faltava a tonalidade azulada no sangue, coisa que sua filha do meio tinha mais de cinco litros em circulação. A viúva jamais aceitou que o “filho do funcionário público” – que era como secretamente se referia a mim – ousasse namorar a filha do comendador. “As elites não suportam aventureiros”, pensei eu quando me despedi de Matilda pela última vez.

Falei para Efigênia de minha mãe, suas dificuldades, a sua idade e a dedicação de meu pai a ela. Ela sorriu e pediu que me sentisse a vontade. Perguntou a uma amiga próxima onde estava Matilda, mas esta respondeu que não a havia visto desde o início da recepção. Edgar abriu seu envelope e solicitou algumas assinaturas para a “viúva”, e eu fui lentamente me afastando após cumprimentá-la.

A mãe de Matilda sempre representou para mim o ocaso da “Casa Grande”. Sua mansão recheada de empregadas uniformizadas, invariavelmente negras, era como uma volta ao passado mais remoto dos canavieiros de São Paulo, quase uma pintura de Jean-Baptiste Debret. Todavia, seria um exagero dizer que Efigênia era malévola ou de má índole. Não, ela era apenas a herdeira de um mundo de desigualdades, cruel e injusto. Não foi ela quem criou a sociedade em que uma pele escura tira seu valor, e nem um mundo onde o dinheiro compra tudo, até o silêncio.

Nunca tive mágoa ou rancor de Efigênia, mesmo sabendo como ela se referia a mim. Tivesse eu nascido em berço de ouro seria diferente? Tendo eu sido criado em um mundo onde a riqueza é o valor máximo, teria eu permitido que um pé rapado se aproximasse de minha filha? Creio que somente calçando os sapatos Gucci de salto agulha da viúva do comendador e caminhando com ele mil vezes mil quilômetros seria possível saber como agiria eu, se também tivesse nascido em berço de ouro.

Minha atenção agora se voltava para o outro lado da sala, onde um sujeito de terno cinza e sapatos marrons estranhamente desajeitado segurava um copo de vinho.

“É ele”, disse Edgar. “É o marido de Matilda”.

Heitor

“Sim”, disse Edgar com a inexpressividade intacta. “Precisamos falar com ele e conseguir as assinaturas. Além disso temos que acompanhá-lo aos seus aposentos, para garantir que estará só”.

“Certo”, disse eu, mesmo sem ter a menor noção do significado de acompanhar um indivíduo onde ele ia dormir para certificar-se de que ele vai dormir sozinho. Afinal, o que isso nos interessa? Para que a polícia – ou seja lá qual for a verdadeira profissão do Comissário Edgar – precisa de comprovações num caso de separação? Houve alguma nova ameaça de agressão? O acusado pretende fazer algo nessa recepção que demande a nossa intervenção? O que estamos realmente procurando?

Fomos lentamente nos aproximando do grupo de homens maduros até que o sujeito com o vinho na mão se voltou para nós.

“Boa tarde Sr. Heitor. Sou o comissário Edgar e vim fazer a fiscalização de que as determinações judiciais estão sendo cumpridas de forma correta e adequada. Nos perdoe por interromper a sua conversa, mas precisamos de sua assinatura em alguns papéis. Tenha a bondade, por favor”.

O homem de terno cinza e estranhos sapatos marrons levantou-se do braço da poltrona onde estivera recostado e segurou os papéis que Edgar lhe ofereceu. Colocou a mão dentro do casaco e puxou uma caneta Montblanc. Sim, no meu sonho as pessoas não são moderadamente esnobes; elas avançam o quanto podem nesta direção. Só então, quando se preparava para assinar, ele se vira para mim com curiosidade.

Edgar resolve me apresentar.

“Pois este é Ricardo, meu estagiário. Ele veio me acompanhar nas diligências. Desculpe não o ter apresentado antes”.

Heitor sorriu discretamente, mas fixou o olhar em mim. Ele era alto, pelo menos mais alto que eu, e tinha uma vasta cabeleira castanho-clara. Já aqui havia dois pontos suficientemente humilhantes contra mim. Sim, sei o quanto isso pode parecer ridículo, principalmente em se tratando de um sonho, mas fiquei medindo nossas capacidades. Afinal de contas, Matilda havia casado com esse cara e ele deveria ter qualidades que eu não tinha, ou não possuía os múltiplos defeitos que cultivo, tal qual as borboletas na gaveta de Frederick Clegg, esperando o momento para sequestrar a bela Miranda…

Heitor era uma mistura de Stephen Fry e Donald Trump: a cara do primeiro e um pouco do cabelo do segundo. Sei que a mistura fica terrível quando se imagina, mas ele talvez tivesse combinado o melhor dos dois. Era corpulento e um pouco desajeitado. Tinha uma próspera barriga, mas não a ponto de derrubar objetos ou impedir que os casacos se fechem. Mas o terno cinza, definitivamente não combinava com o sapato marrom de bico arrebitado, formando uma curva para cima que mais parecia a sapatilha de um arlequim.

Heitor ficou me olhando fixamente, como a tentar me reconhecer, enquanto sua caneta Montblanc permanecia estática no espaço, apontando para uma taça de Clericot que repousava na mesa em frente.

“Ricardo, não? Eu creio que conheço você.”

Sorri amavelmente. “Não creio, senhor Heitor. Não sou da cidade. Creio que estive aqui há muitos anos. Provavelmente está me confundindo com alguém. Meus irmãos sempre me diziam que eu tinha “cara de balaio”, pois muita gente se parece comigo.”

Heitor continuou a me olhar de forma firme. Suas sobrancelhas se aproximaram e seus olhos se apequenaram.

“Ricardo, você escreve. Eu sei que você escreve. Partos, mulheres parindo, bebês, hospitais. Você é uma espécie de escritor.”

Aparentemente Heitor me conhecia, mas por quê? O que faria com que ele se interessasse pelo assunto?

Fiquei um pouco constrangido, menos por ele saber quem eu sou, e mais por estar falando com alguém que desconhecia por completo, mas que foi casado com minha ex-namorada de faculdade.

“Vou te dizer o que penso da questão. O parto humanizado se constitui em uma espécie de…”

Nesse momento ele foi interrompido por Edgard, que o avisou que deveria se dirigir aos seus aposentos, o que configuraria a última etapa da nossa tarefa de fiscalização. Ele se desculpou com o comissário, assinou os papéis sem lê-los, colocou na pasta de cartolina e pediu que eu o acompanhasse.

Nesse momento é que eu percebi que ele se parecia com outro personagem significante para mim. Ele me lembrava o filho mais novo de Adélia, a mulher fatal com sua cigarrilha dourada. Sim, o filho que testemunhou o ato fatídico e que, em sua inocência, precipitou a tragédia. Mas, lembrei de novo, Adélia é outra história a ser contada.

Heitor segurou o meu braço e nos dirigimos a porta de mogno maciço por onde eu e Edgar entramos. Caminhamos vagarosamente pelo interminável corredor adornado por obras de arte até chegarmos ao jardim interno da mansão. Durante este período Heitor mantivera-se quieto caminhando ao meu lado, mas ao chegarmos ao jardim começou um longo discurso sobre partos, cesarianas, fórceps, direitos da mulher, feminismo, ciência, de uma forma inusitada e curiosa. Ele não parecia um médico falando: falava como se fosse um advogado interessado no assunto, como se pelas suas mãos houvesse passado um grande número de casos, os quais havia defendido com fervor e paixão. Não usava nenhuma linguagem técnica, mas gesticulava com desenvoltura e interesse. Durante a travessia do belíssimo jardim ele me contou que já havia lido muitos livros sobre o assunto, incluindo “Memórias”, mas que tinha algumas críticas a fazer.

“Fique à vontade, disse eu”, mas não foi possível pois a empregada nos comunicou que o Sr. Heitor deveria ficar no quarto 25, pela entrada de fora.

Isso significava que teríamos que sair da mansão, dar a volta no quarteirão, e procurar os apartamentos de casas idênticas que faziam o limite externo direito da propriedade. Imaginei que aqueles pequenos apartamentos foram um dia criados para acomodar viajantes de fora, mercadores de cana de açúcar, negociantes, vendedores de mercadorias. Por uma questão de segurança estes locais não tinham conexão interna com a propriedade, sendo acessados apenas pela rua. Saímos pelo portão principal e dobramos à direita, e novamente, para termos acesso ao flanco onde se encontravam enfileirados os apartamentos.

Eles eram simples, como se fossem casas de operários ingleses. Uma porta que se acessava por quatro lances de escada, e uma janela da mesma cor. A empregada que nos guiava levava consigo as chaves e parou bruscamente quando viu a placa com o número 25 sobre a porta esverdeada. Heitor me convidou a entrar, enquanto outros empregados colocavam a pouca bagagem do convidado na sala estreita. Edgar nos acompanhou, junto com as duas empregadas, que se apressaram a entrar no quarto para ver se a cama estava arrumada e se havia sabonetes e papel higiênico no banheiro.

“O senhor Heitor deveria ter ficado no “23” mas a porta de lá está #^&tiute”.

“Como”, perguntei eu? O que houve com a porta do quarto 23?

“Foi como eu disse. Não há como ir para lá, mesmo que o quarto esteja mais apresentável e seja levemente maior, mas o problema é a contaminação e o #^&tiute”

Percebi que por duas vezes havia tentado entender a explicação que ela dera sobre a porta mas a palavra me fugiu à compreensão. Interpretei, num ato insuspeito de metalinguagem, que se tratava de uma palavra proibida. O “mago dos sonhos” havia determinado que a causa da corrosão – ou contaminação – da porta do quarto 23 não estava ao meu alcance ou acessível à minha compreensão. Fiquei curioso com este fato, mas decidi que seria inútil insistir.

Edgar olhou para mim e exclamou: “Espero que tenhas aprendido a sua função, Ricardo. É para isso mesmo que fazemos este estágio, para que vocês sintam o mundo real, a crueza das ações, suas dificuldades e imprevistos. Um estágio que se preza coloca o aluno em contato direto com a realidade, mesmo que ela pareça dura e pesada”.

“Sim”, pensei eu. “Que dureza conseguir algumas assinaturas em uma festa, filar uns canapés, beber uma taça de Champagne legítimo em uma festa burguesa e acompanhar Sir “Stephen Trump” (Ou seria Donald Fry) até seu quarto, cuidando para que ele consiga se equilibrar em seus sapatos de menestrel loquaz. Ora, se era para me treinar em algo, seria esse o melhor exercício?”

“Bem senhores, agradeço a companhia, mas preciso me recolher. Amanhã será a cerimônia de assinatura do divórcio e preciso estar com a minha cútis em ordem. Rá, rá. Espero que vocês tenham igualmente uma boa noite de repouso.”

Agradeci as palavras de Heitor e o cumprimentei. “Ainda quero fazer aquelas críticas ao “Memórias”, disse ele ao apertar delicadamente a minha mão.

Nesse momento ele olhou para a porta e com um sorriso tímido nos disse: “Bem, vejo que terão companhia até a entrada da mansão. A senhora vai os acompanhar. Boa noite e entrou em seu quarto”.

olhei para a porta do chalé que estava atrás de mime percebi a chegada da “senhora”.

Era Matilda

Matilda

De todas as personagens dessa minha breve visita a um passado de fantasia, a única que realmente me interessava reencontrar era Matilda e, curiosamente, foi a última.

Matilda mantinha os mesmos adereços do passado remoto em que a conheci. O sorriso maroto, a boca carnuda e vermelha, os olhos grandes e castanhos. Os cabelos ainda os mantinha grandes, apesar de ser agora uma mulher madura. Sua roupa era sóbria: um Tailleur de linho vermelho escuro por sobre uma blusa de seda branca, meias, sapatos pretos de salto alto, mas não altos o suficiente para me humilhar ou entristecer. Nas mãos joias, capricho que conservava desde a juventude, e que a riqueza lhe proporcionava. As unhas de um carmim impecável, e na mão esquerda a marca cicatricial de uma aliança ausente.

“Ricardo, jamais imaginei que um dia você voltaria à minha casa. É um prazer recebê-lo. Seja bem-vindo e sinta-se à vontade”.

Olhei para Matilda com carinho, pois a percebi desarmada. Poderia ter se escandalizado com minha presença, ou se sentido ultrajada. Afinal eu viera ali para testemunhar sua infelicidade, o cumprimento de uma determinação que tinha, como cerne, uma tristeza tatuada na carne. Poderia ter se escondido, simulado um mal-estar, fingido uma enxaqueca. Nada disso; foi ao meu encontro e se apresentou com o mesmo sorriso encantador com que a conheci. Não havia nela rancor, nem ódio. Mas inegavelmente Matilda deixava claro um sentimento inequívoco: a tristeza.

Seus olhos não conseguiam dissimular que estava dolorida, sabe-se lá por quais razões. A falência de seu casamento, a vergonha da violência doméstica, o abandono, o remorso, a sensação de fracasso por um projeto de uma vida.

“Como está sua mãe?”, perguntou ela. Parecia que Efigênia e suas filhas haviam combinado esta pergunta antes do dia iniciar, como todos os sorrisos seriam encenados, os cumprimentos, as ordens, as perguntas de praxe e os comentários espirituosos. Acho que a alta classe precisa dessas regras para que as máscaras não caiam e deixem a todos constrangidos.

Respondi a ela de que minha mãe passara por dificuldades, a cirurgia, a lenta recuperação os esquecimentos e todas as agruras previsíveis dos octogenários. Ela sorriu e disse algo como “que bom que melhorou”, mas esta era mais uma das frases ensaiadas e simpáticas que ela havia ensaiado.

“Senhora Matilda”, disse Edgar com a mesma solenidade inexpressiva de sempre, “precisamos partir. Já fizemos nossa parte e nos asseguramos que o Sr. Heitor ficará neste chalé isoladamente até amanhã, quando a cerimônia de divórcio terá lugar aqui mesmo na mansão. Desculpe se causamos algum desconforto ou constrangimento, mas estávamos apenas cumprindo nossa obrigação legal. Peço que a senhora assine estes documentos para que nossa função possa se encerrar”.

Matilda segurou os documentos que Edgar lhe estendia e, como todos os outros, os assinou sem sequer ler. Devolveu-os com um sorriso para Edgar que, em agradecimento, retirou o quepe e fez uma reverência.

“É hora de ir”, emendou o comissário.

Eu achei que poderia ficar mais, para poder entender um pouco a vida de Matilda. Um estranho sentimento de culpa me invadiu ao ver o rosto belo e triste da ex-namorada. Sim, a culpa era toda minha. Eu fui embora, eu desisti. A distância – geográfica e de classes – me impediu de sonhar com Matilda e uma vida com ela compartilhada. Seus desacertos com Heitor talvez tivessem sido evitados se eu tivesse coragem, determinação, força e paixão.

Não, Efigênia tinha razão. Matilda era de Vênus… e eu de Plutão.

Sorri para Matilda e fiquei sem saber o que dizer. “Adeus”? Mas foi assim que me despedi na última vez que nos vimos. “Até mais?”, ora, quanta mentira. Pior que isso apenas um “até breve”.

“Bem, eu vou indo Matilda. Foi bom te ver”, e essa foi a escolha que fiz nos segundos que me cabiam para decidir.

Ela sorriu e se aproximou de mim. Abraçou-me com ternura e tristeza. Chegou-se ao meu ouvido e sussurrou: “Nunca esqueci”.

Seu corpo se distanciou, mas seu braço permaneceu em meu ombro, abrindo levemente o casaco vermelho de linho. Enquanto seu corpo lentamente se afastava pude vislumbrar o drama que se escondia na alma daquela mulher.

Por baixo da blusa de seda branca um volume anunciava o que até então eu não havia percebido.

Matilda estava grávida.

FIM

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