Nascimento em Metamorfose
Deitada no leito, sua face esquálida e suada parece ainda mais branca. Os lençóis revoltos encobrem um corpo inquieto. As sombras dançam na parede, tendo a brisa que entra pela fresta da janela como melodia. O teto, a cama, o lampião — nada parece ser exatamente o que é. A casa simples e rude está em sintonia com os personagens da cena. O olhar da mulher busca avidamente por alguém. Precisa de algo. Seu coração sente a necessidade de ajuda. Nem sabe porquê, mas sua alma reclama uma presença. Sua mão se ergue em direção à porta em cujo batente, encostado, está um menino. Com os olhos arregalados pela falta de luz e pelo medo, o frágil menino lhe estende a mão magra e delicada. Ela espera que uma dor cesse, respira fundo e lhe diz com uma voz fraca, porém firme:
— Chame dona Maria, meu filho. Diga-lhe que chegou a hora. Avise que a bolsa já rompeu e que não demora ele vem. Ah, e avise seu pai também.
O moleque escuta e sai em disparada porta afora. Seu coração pula no peito. Ele é um mensageiro. É Feidípedes em sua maratona. Incorpora a gravidade do momento e coloca o coração nos calcanhares. Está orgulhoso e empolgado com a tarefa. O medo se mistura à excitação. Vira quatro ou cinco esquinas, atravessa algumas ruas sem olhar para o lado e chega à casa de Dona Maria. Seu peito parece pular mais forte do que as batidas que dá na porta da velha casa de madeira. Repete o gesto até escutar movimento na casa. Então, a porta se abre e vê aparecer o vulto de uma velha senhora, nos seus sessenta e muitos.
“Dona Maria… a bolsa… a minha mãe. As dores…”, balbucia. Com fôlego entrecortado, repete as palavras que pareceriam sem sentido, não fosse a velha senhora uma mulher acostumada à cena. Ela sorri um sorriso quase maroto. Olha enternecida para o menino. Pousa a mão calejada em sua cabeça suada. “Calma, moleque! Respire fundo… Já entendi tudo”, diz ela com o mesmo sorriso ainda no rosto. “Corre, avise seu pai. Mas antes tome um copo d’água. Fique tranquilo, vai dar tudo certo. Arrumo minhas coisas e já vou para sua casa.”
As modificações evidentes no entendimento do parto, oportunizadas pelos últimos séculos e principalmente nas últimas cinco décadas, nos obrigam a um questionamento profundo e crítico sobre o respeito dos caminhos que estamos trilhando, assim como da responsabilidade que temos ao tratar de um evento de tamanha magnitude como processo de reprodução. A cena acima descrita faz parte do nosso imenso repertório de histórias de parto, mas talvez estejamos perdendo aos poucos a possibilidade de reviver essas narrativas no mundo real, pela absoluta invasão da tecnologia sobre esse cenário até então dominado pela natureza e seus desígnios.
Somos inexoravelmente seres culturais. Nossa história foi marcadamente cultural depois do processo de encefalização ocorrido há dois milhões de anos passados. Depois de termos conquistado a bipedalidade, o crescimento cerebral foi o grande processo adaptativo que nossa espécie teve de enfrentar. A necessidade de crescimento de massa encefálica foi consequência de uma maior especialização do nosso cérebro pelas crescentes tarefas incorporadas ao nosso dia a dia. Depois disso, a criação do núcleo familiar foi claramente determinada pela altricialidade do recém-nascido. Nossos filhos nasciam cada vez mais dependentes e frágeis, obrigando, por processos adaptativos, a manutenção desse homem primitivo ao lado dessa mulher. Assim, criamos o protonúcleo cultural: a família. Apesar de não ser exclusividade do ser humano (algumas aves a utilizam), ela é única em seus significados e em sua função. A dependência de outros parceiros para a caça, coleta, segurança, manutenção de alimentos e criação de filhos consagrou nossa tendência gregária. Vivemos, sim, amontoados. Esses fatos, encadeados e somados, foram os responsáveis pela nossa sobrevivência como espécie e, mais do que isso, como o grupo dominante na face da terra. Somos seres que procuram proximidade e somos “contadores de histórias”, como diria Stephen Gould. Nesse contexto, construímos o que entendemos hoje por “cultura”, que é a multiplicidade de histórias e maneiras de entender o cotidiano. Aprendemos a usar ferramentas que fazem ferramentas; aprendemos com os erros dos outros; somos os únicos animais que encaram sua finitude e sabem que estão fadados à morte. Temos a capacidade de simbolizar e de articular sons. Criamos a cultura a partir do crescimento de histórias e do significado que a matriz da sociedade deu a elas.
A cultura é necessariamente fundada em pilares muito sólidos. Precisamos de regras, leis e regulamentos que permitam que o nosso natural instinto egoístico seja mantido sob controle, para que a sociedade como um todo possa sobreviver. Mas nossa cultura repousa sobre uma matriz invisível, criada por nós mesmo em nome dos valores que erigimos como sendo os mais adequados para a nossa sobrevivência. Cada local e cada sociedade têm seus próprios valores, com suas características próprias, apesar de que assombra muito mais a semelhança entre esses valores do que as eventuais dissonâncias. Não existem sociedades sem tabus, nem sociedades sem controle sobre a reprodução. Isso nos dá conta de um padrão universal adotado para o ajuste das sociedades crescentes.
Entretanto, o mudar das circunstâncias obriga a reformulação da matriz. Essa mudança sempre é muito lenta e gradual, para não solapar a organização que a muito custo criamos. A tecnologia crescente dos séculos XVII e XVIII, juntamente com o humanismo e o iluminismo, nos fez aos poucos derrocar a religião e a magia como direcionadoras dos nossos sonhos escatológicos, colocando a ciência e a tecnocracia como suas fiéis sucedâneas.
Nesse embate, que perdura até hoje, vimos paulatinamente a ciência conquistando espaços até então apenas ocupados pelo misticismo e pelas explicações sobrenaturais e religiosas. A instituição passou a ser mais importante do que a natureza, porque a instituição é obra do homem, enquanto a natureza é obra do divino; foi-nos dada de presente. O que foi construído e modificado passou a ser mais importante e valorizado do que aquilo que nos foi oferecido graciosamente.
Na saúde, não poderia ser diferente. Fomos doutrinados a acreditar que a natureza é falha e que apenas através de um aporte tecnológico podemos manter nosso equilíbrio orgânico. As crianças ocidentais são, desde a mais tenra idade, bombardeadas de forma incessante por todo o tipo de drogas; dos antitérmicos e antibióticos, passando pelos neurolépticos e até pelos antidepressivos. Somos (enquanto médicos ou pacientes) doutrinados a acreditar em uma visão exógena de doença, cuja solução só pode ser igualmente exógena. O contraponto a essa visão antropológica da doença é, no mundo ocidental, ocupado pela homeopatia e pela psicanálise, que acreditam estar no próprio ser a origem profunda dos seus males. Entretanto, são elas ainda visões minoritárias e contra-hegemônicas na cultura.
A imagem do menino corredor, buscando o auxílio na experiência de uma mulher mais velha, dotada de saber autoritário em uma era pré-tecnológica, parece aos poucos estar desbotando no mural das nossas recordações. Apesar disso, essa cena fez parte do cenário cultural de gerações. Está em nossa memória coletiva, no nosso inconsciente. Ela está nos filmes, nas histórias, nas lendas, nos contos. Está nos estudos de antropologia e nas canções populares. O universo do nascimento confundia-se com o universo do feminino, e a geração de um novo ser no claustro materno inseria-se absoluta e inexoravelmente no mundo das mulheres. Era seu destino, sua sina, sua dívida. Aos homens cabia a contemplação e o encantamento. E a inveja recôndita, mascarada e escondida. Durante os milhares de anos em que a humanidade se desenvolveu, esta era a regra básica para o entendimento do fenômeno: este é um mistério, um mistério divino. Uma coisa de mulher.
Uma série de eventos, entretanto, rompeu esse vínculo do nascimento com a natureza. O surgimento de várias conquistas científicas na área da biologia (como a circulação do sangue, a noção mais exata da anatomia pelas dissecações, os estudos de patologia, etc.), aliadas ao molde conceptual e filosófico trazido pelo mecanicismo de Renée Descartes, produziu o caldo cultural necessário para a entrada do saber médico na obscuridade mágica e úmida do nascimento humano. A tecnologia, enquanto ferramenta, começava a ocupar o lugar outrora ocupado pela intuição e pela experiência.
Os homens, a partir de meados do século XVII, iniciavam na tarefa de atender as gestantes e os partos, deslocando paulatinamente as parteiras, curiosas e “bruxas”, que durante milênios foram as únicas “cuidadoras de mulheres” no momento de parir. Era a “vingança” daqueles que durante milênios estiveram alijados do milagre. Agora os homens também seriam co-criadores. Era a “couvade” (mecanismo pelo qual os homens se “apoderam” do nascimento nas culturas primitivas, como os índios brasileiros, por exemplo) se manifestando de forma triunfante. Mais do que os homens, o “masculino” entrava no mundo das mulheres, trazendo com ele as luzes da razão, na tentativa de iluminar o obscuro e até então impenetrável mistério do nascer. O marco inicial dessa revolução poderia ser materializado no primeiro grande instrumento masculino no atendimento ao parto: o fórceps. Criado pelos irmãos Chamberlain, na Inglaterra, foi mantido escondido dos olhares de curiosos, por ser uma ferramenta tão importante a ponto de tornar-se alvo da cobiça de concorrentes. A entrada dessa ferramenta fálica na história do nascimento determina um divisor de águas na obstetrícia. Nada mais seria como antes.
Com o correr dos anos cada vez mais tecnológica a obstetrícia foi se tornando. Os homens, antes espectadores atônitos e amedrontados, tornavam-se aos poucos condutores do processo. As mulheres passavam de protagonistas a assistentes passivas, seja como auxiliares dos médicos, seja na pele das próprias parturientes. O preço que a ciência cobraria para a sua entrada no cenário do nascimento ficou claramente estabelecido. A partir de então, não seria mais a natureza, com seus mistérios e incertezas, a conduzir o processo: a razão e a ciência assumiriam as rédeas. Com isso, muitas vidas poderiam ser salvas, muitas mulheres deixariam de morrer; muitas crianças seriam retiradas heroicamente do seu destino cruel pelas mãos (ou instrumentos) que os homens traziam.
Poucos séculos nos separam da obstetrícia “feminina”, mas podemos constatar, através das informações que nos chegam, a guinada que produzimos no atendimento às gestantes. Nos dias de hoje, no mundo ocidental contemporâneo, quase todos os partos são realizados em hospitais, estando as mulheres apartadas do seu ambiente e da sua família. O nascimento deixou de ser um evento cultural para se tornar um acontecimento médico. A intervenção passou a ser a regra. Na classe média das grandes cidades, os índices de cesariana chegam a 90%. Nos partos normais, ocorrência cada vez mais rara nos centros médicos do ocidente, cerca de 90% das pacientes usam medicações potencialmente perigosas para os bebês. A analgesia do parto tornou-se quase uma obrigatoriedade nos centros obstétricos. A intolerância com as práticas não-ortodoxas tem aspectos de perseguição religiosa. A jornada tecnológica adentrou e apoderou-se do evento do nascimento, deslocando a própria mulher do papel de protagonista: os médicos e seus instrumentos tornaram-se os atores principais do parto. Às mulheres cabe a tarefa de transportar os “filhos do mundo”, para que no final do trajeto sejam recebidos pelos guardiões da saúde e do bem-estar, em nome da sociedade e das instituições. O apoderamento de um fenômeno humano, como o parto, por uma corporação ainda não foi suficientemente debatido para que entendamos as profundas repercussões de tal mudança para a própria civilização, a cultura e a saúde.
Depois de um investimento pesado nas conquistas da ciência, temos o dever de reavaliar nossas posturas e no que em verdade avançamos. A ninguém parece plausível que o fenômeno do nascimento seja relegado à desassistência, mas o preço pago pela supermecanização parece estar cada dia mais alto. Surge na cabeça de muitas mulheres, bem como de muitos profissionais da área, uma questão: pode um fenômeno tão visceralmente feminino como o nascimento ser conduzido por pressupostos filosóficos tão absolutamente masculinos? Da resposta a essa questão certamente aparecerão novos posicionamentos, novas visões e uma reavaliação do que realmente conquistamos até agora.
Os resultados negativos do tecnicismo nós os vemos todos os dias: epidemia de cesarianas, mortalidade materna alta, morbidade perinatal alta, incidência aumentada de prematuridade iatrogênica, insatisfação das usuárias e custos estratosféricos. Apesar de, no mundo de hoje, uma grande parcela das crianças ainda nascer pelas mãos das parteiras, no ocidente da atualidade a medicalização crescente é uma realidade que nos mostra esses índices alarmantes. Ao lado de oferecer segurança para as mulheres no momento de parir, está na hora de garantirmos a elas aquilo que ancestralmente possuíam e que lhes foi retirado pelo modo de vida contemporâneo: o afeto, a parceria, a feminilidade, o calor, a alegria e a sensação de aconchego que outrora recebiam em seus lares.
Nossa medicina obstétrica iatrocêntrica (centrada na figura do médico), etiocêntrica (centrada na patologia e na doença) e hospitalocêntrica (que entende e privilegia os hospitais como centros disseminadores de saúde) não consegue oferecer a feminilidade que o parto reclama, pela incapacidade de reconhecer as necessidades básicas de uma mulher no momento de parir. É chegada a hora de que esses conceitos masculinos aplicados ao nascimento, que há alguns séculos povoam os nossos dias, sejam revistos.
Para que o parto possa novamente ser uma “coisa de mulher”. Com segurança, com alegria e com afeto.

