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Ajuda?

Lembrei de uma história que eu acho muito emblemática dessa situação e que aconteceu no segundo parto de uma paciente minha que teve 3 filhos, sendo o último um parto em casa (que fez com que ela mudasse totalmente os planos para a sua vida, e decidisse ser doula e, agora, enfermeira obstétrica). Quando se encontrava nos momentos finais de seu segundo parto seu médico a colocou naquela conhecida posição de “litotomia” (também conhecida como posição de frango assado). Além disso, ele fazia coro com a sonorização mântrica habitual de “comandar” o parto, com gritos, frases feitas, etc…

– Força comprida, não para, não para. Prenda a respiração e empurre sem parar !!

O obstetra continuou assim por um bom tempo, enquanto a pequenina coroava lentamente, dentro do seu próprio tempo, apesar de prejudicada pela ambiência, os gritos e a posição desfavorável. Passados alguns poucos minutos ele resolveu escutar os batimentos cardíacos do bebê, o que é uma conduta adequada e baseada em evidências. Entretanto, provavelmente por causa da posição muito baixa de um bebê que já estava coroando, ele não conseguiu escutar os batimentos. Talvez – esta a hipótese mais provável – o coraçãozinho do bebê estivesse atrás do púbis e o meu colega, no afã de se acalmar com o som dos batimentos, não teve paciência para procurar com mais vagar. Diante da ausência de som tranquilizador brotando do sonar ele ficou apavorado, o que é muito comum entre os profissionais que, por formação, desconfiam das mulheres e dos mecanismos de parto, acreditando que toda a mulher é uma bomba relógio prestes a explodir. Com um bebê coroando e sem saber o que fazer, ele falou para a sua paciente, com a voz entrecortada de pânico:

– Bem, seu bebê tem que nascer, agora você vai precisar me ajudar…

Logo depois o bebê nasceu. É claro, um parto com “kit intervenção completo”: Kristeller, episiotomia, etc… O Apgar foi excelente, o bebê logo chorou e foi levado pelos pediatras. Tudo bem, como normalmente acontece, apesar das condutas equivocadas e/ou exageradas. Entretanto nunca esqueci o que minha paciente falou. A frase do seu obstetra é, para mim, emblemática da “couvade” da obstetrícia, a expropriação furiosa da medicina ocidental sobre o fenômeno do parto.

“Bem, seu bebê tem que nascer, agora você vai precisar me ajudar…”Como assim? Para parir uma mulher tem que “ajudar” o médico? Não seria o contrário, o médico ajudar a mulher, principalmente evitando gritos e procedimentos desnecessários e abusivos?  Mas, no mundo contemporâneo o parto não pertence mais às mulheres. O nascimento nos dias atuais é algo que médicos e hospitais fazem, e as mulheres são meras ajudantes. Pior ainda é o fato de elas serem consideradas como um “obstáculo” à boa condução de um procedimento médico, totalmente incapazes de favorecer um nascimento, de forma que ele ocorra com segurança e a “necessária” rapidez. Para transformar esse quadro, só se mudarmos a maneira como as mulheres enxergam a si mesmas.

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