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A liberdade de palpitar

Um dos grandes problemas contemporâneos das redes sociais é oferecer palanque para que um especialista em dinossauros se sinta a vontade para falar do conflito na Palestina, sobre psicanálise ou sobre medicina. O mesmo ocorre quando um astrofísico se acha capaz de fazer críticas ao comunismo, religiões e geopolítica, como se a sua audiência e pervasividade na Internet lhe garantisse autoridade para tratar de assuntos que ignora por completo.

E vejam, eu entendo a pressão que estas pessoas sofrem. Imagine criar um canal para tratar, por exemplo, de humanização do nascimento. Existem muitos temas, várias perspectivas, sem dúvida; há material para muito debate. Todavia, depois de 2, 3, ou mais meses de matérias diárias sendo veiculadas, os temas e seus viéses começam a minguar; os assuntos são muitos mas não são infinitos. Surgem então duas claras alternativas: tornar-se repetitivo, tratando novamente dos mesmos assuntos, ou começar a abordar outros temas, mas sem a mesma profundidade e “expertise” do foco inicial. Boa parte dos influenciadores escolhem a segunda opção e passam a falar de temas que ignoram, mas com a mesma postura professoral com que tratam das matérias das quais são especialistas.

Esse tipo de postura acaba produzindo cenas que se equilibram na fina lamina que separa o ridículo da mais pura irresponsabilidade. Especialistas numa fração minúscula do conhecimento são flagrados falando sobre assuntos muito distantes da sua área, escorados apenas na sua fama, seu carisma, sua inesgotável autoconfiança e na autoridade midiática conquistada. Muitas vezes as opiniões emitidas seriam terriveis até mesmo para uma mesa de bar, mas quando vemos que milhares de pessoas a assistiram isso se torna até perigoso.

Eu costumava dizer que as duas frases mais difíceis de escutar dos médicos eram “eu não sei” e “não faça nada”. Pois dos “coaches” youtubers de hoje o mais difícil de escutar é “eu não sei” ou “sobre este assunto nada falarei”. Falta bom senso e noção de limites para estes que falam sobre coisas das quais conhecem apenas as orelhas do livro.

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Sentimentos feridos

Já pensaram em que etapa do desenvolvimento da humanidade, no que diz respeito ao progresso das ideias, estaríamos se, antes de dizer alguma coisa, levássemos em consideração se o objeto do nosso comentário poderia se ofender? Já imaginaram se isso fosse usado de verdade? Pense apenas: se antes de criticar Bolsonaro ou Trump (ou Lula, ou Mandela, ou Cristo) a gente fosse perguntar se eles se ofenderiam com a nossa observação? Por certo que eles poderiam dizer “Sim, sinto-me ofendido por ser chamado de incompetente e salafrário”, o que nos obrigaria a silenciar imediatamente. Eles, portanto, poderiam impedir qualquer crítica feita a eles apenas por afirmarem-se pessoalmente ofendidos.

Ou seja: teríamos uma sociedade controlada pelos sentimentos, pelas subjetividades, pelas suscetibilidades pessoais. Não esqueça que até chamar alguém de “careca” pode ferir seus sentimentos.

Já pensou que tudo o que dizemos precisasse ser “útil”? Quem decide o que tem utilidade na sociedade? Uma música é útil? Um filme? Uma crítica? Um comentário? Mais ainda: já imaginou se todos os “palpites” fossem considerados inadequados? Palpite vem do verbo “palpitar”, e tem a ver com as batidas do coração. Portanto, os palpites são emissões do “coração”, da intuição, das emoções, dos pressentimentos e das suposições. Oferecer nossas propostas mais emotivas é errado, inadequado ou indelicado? É justo considerar os palpites que damos diariamente sobre tudo e todos como erros, crimes ou ataques?

Duvido que uma sociedade assim organizada conseguisse se libertar do jugo da selva e pudesse alcançar uma organização social mais complexa do que um coletivo de silvícolas, um pequeno grupo de não mais do que meia centena de pessoas. Nenhuma sociedade minimamente organizada poderia sobreviver a este tipo de censura, abdicando de todo o progresso que emana do choque, do conflito e do atrito. A proteção dos sentimentos ocorreria às custas do progresso e da própria paz.

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