
A análise acima do livro “O Doente Imaginado“, de Marco Bobbio, se refere à construção de uma entidade nosológica a partir de sintomas comuns, como constipação. O objetivo é introduzir um medicamento com abrangência gigantesca e com lucros igualmente incalculáveis. Pensem em quantas pessoas conhecidas tem “intestino preso” e imaginem o mercado de drogas para este sintoma.
Entretanto as mesmas regras usadas para transformar transtornos comuns em doenças podem ser utilizadas para fazer a mudança da nossa percepção do parto, de evento fisiológico para uma patologia perigosa e traiçoeira. Toda uma cultura sobre o parto se construiu sobre esta deformação da realidade, que desvia o olhar para a riqueza de fenômenos adaptativos milenarmente construídos por sobre a arquitetura fisiológica do parto e incentiva uma visão demeritória, depreciativa e patologizante da mulher parindo.
O roteiro é o mesmo descrito no texto para a criação de doenças. Basta escutar os especialistas em “patologia obstétrica” para ficar convencido que as mulheres apenas sobrevivem aos horrores dos partos em função das técnicas, drogas, especialistas e os locais altamente tecnológicos elaborados para atender a este evento arriscado.
Os passos são idênticos:
1 – Fornecer números: des-subjetivar o evento e transformar o parto em um fato meramente epidemiológico, longe da subjetividade e da individualidade de cada mulher parindo.
2 – Despertar temores: mostrar cada evento catastrófico como sendo o destino certeiro de toda a mulher que ousar parir de forma natural e fisiológica.
3 – Sugerir exames: ecografias sem embalsamento científico em todas as consultas de pré-natal, uso de vitaminas sem sentido, manipulações exageradas nas consultas e uma postura autoritária dos profissionais.
4 – Banalizar a solução: entregue as decisões na mão de quem “sabe”. Não questione, não pergunte, não desconfie; apenas obedeça. Afinal, eles sabem tudo o que pode acontecer de errado com você.
Quando e por quê tornamos o parto uma patologia que merece ser tratada e medicada?
“A construção da percepção patológica do nascimento na cultura ocidental, e a subsequente aceitação pelas mulheres desta visão, é um dos capítulos mais fascinantes da história da mulher no ocidente, e um dos menos estudados, por razões históricas e contextuais. Entretanto, creio que a plena libertação das mulheres dos entraves da cultura patriarcal não se dará negando seus aspectos mais femininos. Pelo contrário, será pelo reforço de suas especificidades.”