Acabo de ler a nota do governo brasileiro – claramente inspirada pela
corporação médica – que tenta impedir o uso do termo “violência
obstétrica”, curiosamente na mesma semana em que o presidente, usando a
mesma lógica, diz que “racismo é algo raro de ocorrer no Brasil”. A
mesma tentativa tola de tirar o sofá da sala imaginando que assim o
problema deixaria de existir.
O problema não é o termo utilizado,
mas a “misoginia essencial” que permeia a atenção ao parto e
nascimento, resultado de 100 séculos de modelo patriarcal a conduzir
nossas vidas. Violência obstétrica existe sim – e dói.
Creio que
não resta nenhuma dúvida dos interesses por trás dessa manobra; elas
visam, em essência, a mudança de narrativa através da supressão de
expressões consagradas. Estas são atitudes muito coerentes com o modelo
revisionista que se pretende implantar no Brasil de hoje. Assim, não
tivemos golpe em 64, mas “governos militares”. Dilma sofreu um
“Impeachment” e não outro golpe patrocinado por grupos ressentidos, o
que abriu caminho para outras aberrações jurídicas como prender o ex
presidente Lula sem apresentar provas.
Desta forma sorrateira o
Brasil inaugura oficialmente o uso da “novilingua” acreditando que
assim fazendo exterminará como por encanto a violência física e moral a
que são submetidas milhões de mulheres no país, algo que o termo – agora
suprimido – sempre pretendeu denunciar.
Sabemos que tais
iniciativas grosseiras e ofensivas fazem parte da cobrança da dívida que
o bolsonarismo tem com a corporação médica. Esta corporação foi
parceira de primeira hora nas manifestações golpistas de 2013-16, que
culminaram com a queda de Dilma e a prisão de Lula, e posteriormente na
eleição de Bolsonaro. Aqui mesmo no sul o sindicato médico já se
apressou em mandar uma nota e um vídeo parabenizando o governo Bolsonaro
pela proibição. Nenhuma surpresa.
Nada disso deveria nos
espantar: a corporação médica mostra seu caráter reacionário de forma
explícita desde o surgimento de canais na internet como Dignidade
Médica, que disseminam todo o racismo, classismo, preconceitos de cor,
raça e orientação sexual há muitos anos. Antes das redes sociais este
fenômeno ficava restrito às salas acarpetadas de cafezinho dos
hospitais. Agora… os monstros estão todos à solta.
Cabe a nós,
ativistas da humanização, mostrar que o combate à violência obstétrica
não é obra de “hippies”, “radicais comunistas” ou outras promotoras de
“balburdia”, mas de um coletivo de pensadores e ativistas que se
debruçam há muitos anos sobre o tema da violência de gênero no Brasil e
no mundo. É digno de nota que inclusive elementos progressistas da
própria corporação médica reconhecem a justeza do termo – além de sua
consagração pelo uso – e entendem a necessidade de fazer algo a respeito
dentro da prática cotidiana da obstetrícia, num exercício saudável de
autocrítica e visão de futuro..
É importante que os ativistas, que sempre foram a locomotiva a puxar os movimentos articulados pela dignidade no parto e contra a violência obstétrica, se posicionem de forma vigorosa e contundente contra este tipo de iniciativa, denunciando o atraso em conquistas históricas por uma maternidade digna e segura que tal manifestação oficial significa.