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Dilemas

Ex-estrela adolescente da Disney, Hilary Duff, acaba de ganhar o quarto filho em um parto domiciliar

Escrevi um texto há muitos anos chamado “Dilema Médico” que abordava a questão das difíceis escolhas pelas vias de parto. O texto, depois de vários anos, se mantém atual, pois o corpo das mulheres ainda é um território sob disputa. O que lá escrevi contém as mesmas perspectivas que até hoje são relevantes. Entretanto, mesmo que o debate entre os ativistas tenha avançado, o olhar jurídico continua infectado pelo mito da transcendência tecnológica, conforme descrito por Robbie Davis-Floyd há mais de 30 anos. Ou seja: se há um dilema que paira sobre o momento maiOu seja: se há um dilema que paira sobre o momento mais adequado e seguro de intervir na fisiologia do nascimento, objetivando salvaguardar o bem-estar de ambos – mãe e bebê, também é evidente que para os médicos (e também os complexos médico-hospitalares) a intervenção ostensiva se tornou a forma prioritária de atenção por ser a forma mais segura… para quem o assiste.

Há 40 anos eu dizia que a cesariana se tornava a rota de fuga com mais segurança para os obstetras, e as perseguições a quem se opunha à tendência de artificialização do parto ameaçavam a prática do parto normal. A frase que eu escutava à época, por parte dos professores, era: “Uma cesariana permite ao obstetra sair da sala de parto com a cabeça erguida; um parto, nem sempre”. Uma intervenção sobre o corpo das mulheres, necessária ou não, garantiria a honra e a consideração sobre o profissional; uma ação mais moderada ou conservadora acrescentaria riscos inequívocos para os cuidadores. Assim, o lema dos profissionais, de forma consciente ou inconsciente, se tornou: “na dúvida, passe o bisturi e salve a sua pele”. Todavia, quem poderia julgar profissionais que, diante dos dilemas de um nascimento, pensam na sua carreira, fé pública, profissão e filhos?

Desta análise surgiu a convicção que o debate sobre parto nas sociedades ocidentais não pode se esgotar nas questões científicas. “Parto faz parte da vida sexual de toda a mulher”, como dizia Michel Odent, e se a sexualidade é uma questão política, o nascimento também o será. Enquanto a sociedade não pressionar o judiciário para uma visão mais racional e científica – abordando os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres de forma abrangente – as decisões serão mediadas por esse imperativo intervencionista, até porque esta perspectiva interessa à corporação médica. Uma cesariana é sempre a vitória da técnica sobre a natureza e, por conseguinte, terão supremacia e importância social garantidas aqueles que controlam essa técnica.

De uma certa forma a cesariana se mantém alta como tendência porque ela está em consonância com os interesses dos profissionais da medicina e sob o controle do judiciário, inobstante o fato de não existirem estudos que justifiquem sua alta incidência e se avolumam as pesquisas que apontam seus múltiplos problemas, dos riscos cirúrgicos, anestésicos e hemorrágicos até as questões relacionadas ao microbioma dos bebês e seu desenvolvimento intelectivo. Entretanto, tudo isso ocorre porque ainda não há massa crítica sobre o tema em nossas sociedades ocidentais; não existe a suficiente consciência entre as mulheres sobre a expropriação de seus partos, a retirada do nascimento do seu âmbito de decisão e a diminuição da importância da família sobre os valores que cercam um nascimento. Para que não haja revolta, elas são mantidas na ignorância por interesse de quem controla o nascimento e seus significados.

* a partir de uma conversa com Braulio Zorzella

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Super humanas

Quando vejo estas ideias de “medidor de dores” em sempre lembro que a dor não é um processo objetivo como a taxa de glicose no sangue ou a graduação de um hormônio circulante. Dores são percepções e elas são inexoravelmente subjetivas. A sensação de dor vai variar enormemente entre os sujeitos na dependência de inúmeros fatores. Por que, então, ainda insistem nessas “unidades de dor”? Qualquer pessoa percebe que isso é ridículo. “O ser humano só aguenta 45 unidades de dor mas as mulheres durante o parto aguentam 57 dessas unidades”. Isso significa exatamente o quê? Que as mulheres não são humanas? Serão elas sobre-humanas? Isso tem um nome: “desumanização”. Ou seja: as mulheres não precisam ser tratadas ou consideradas como humanas pois são seres divinos – ou, quando assim interessar, diabólicas e bruxas; não fazem parte dessa espécie.

Lembro quando um político populista do meu estado resolveu, durante uma palestra no hospital de clínicas, chamar as enfermeiras de “anjos de branco”. Nem terminou de falar e tomou uma vaia sonora do público, majoritariamente constituído por… enfermeiras. A razão dessa discordância é que chamar enfermeiras de “anjos” sempre cumpriu a função de desprofissionalizar, tratá-las como “religiosas”, espíritos impolutos que cuidam dos enfermos. Pois o que as enfermeiras mais desejavam era perder essa aura de abnegação e serem valorizadas em suas profissões, fugindo do estigma de “seres superiores” ou “luzes a iluminar as trevas da doença”. Não é adequado ou justo desumanizar as enfermeiras quando elas têm necessidades tão humanas quanto reconhecimento, respeito, atenção valorização e pagamento justo. No lugar dessa exaltação, paguem um bom salário, ora…

Com as gestantes o mesmo. Insistem na balela de que as dores do parto são horríveis mas as mulheres, por serem “seres superiores”, são capazes de suportá-las acima dos limites humanos. Pura bobagem!! O parto é tão mais doloroso quanto mais ignorados são seus princípios básicos de segurança, privacidade e intimidade. Todavia, a dor inerente ao processo é suportável por pessoas comuns, por mulheres absolutamente humanas. A ideia de tratar as mulheres de forma diferente não as ajuda e sacraliza a ideia de excepcionalidade.

Lembro da história que um professor de psicanálise me contou durante uma viagem entre Blumenau e Florianópolis que fizemos de carro. Dizia ele da história de uma mãe com problemas para alimentar seu filho com síndrome de Down – o mais novo de 4 filhos e o único com este diagnóstico. Ele costumava brincar com a comida, esmagar com as mãos e jogar longe, o que a irritava profundamente. Logo ao escutar o relato meu amigo já estava se apressando a dizer o quanto é natural esta conduta lúdica com o alimento entre as crianças pequenas quando decidiu perguntar: “Mas me conte, como você agiu com os outros filhos?”, ao que ela respondeu “Ah, com todos eles eu ralhava!!”. Ao escutar essa resposta ele disse: “Pois com este menino faça o mesmo!!”

Diante da minha surpresa, ele respondeu: “Muito pior do que não entender a questão das brincadeiras com a comida é iniciar desde cedo um tratamento diferenciado, excluindo o menor do tratamento que sempre foi dado aos outros irmãos, apenas porque ele é “especial”. Isso reforçaria nele a ideia de que não pertence àquele grupo, que não é tão humano quanto seus irmãos e só por isso não é tratado da mesma forma”.

Com as mulheres penso da mesma forma. Trate-as sempre com a mesma humanidade com que trata os homens, nem mais nem menos. Criar a ideia de que elas suportam mais as dores é tão discriminatório quanto achar que não podem exercer as mesmas funções dos homens. Lembrem apenas que muito do que se sabe sobre o assoalho pélvico feminino foi descoberto por um ginecologista americano chamado James Marion Simms abusando dessa perspectiva. No seculo XIX ele realizou pesquisas com cirurgias para fístulas urinárias sem anestesia e usava mulheres negras em seus experimentos dizendo serem elas “muito fortes para a dor”, portanto capazes de aguentar as dores dos procedimentos cirúrgicos criados por ele.

Ou seja: desumanização, mesmo quando o desejo é exaltar, nunca é algo justo e bom. Trate as mulheres, inclusive e principalmente durante o parto, como gostaria que todo ser humano fosse tratado. Nada mais, nada menos.

Veja o vídeo aqui

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Os Homens e o Cuidado

A primeira grande briga que tive contra o identitarismo na pauta da humanização do nascimento foi quando afirmei que os homens também poderiam atuar como doulas, desde que a gestante assim o quisesse e aceitasse. Por causa dessa simples afirmação, movida por um desejo de equilíbrio entre os gêneros, fui atacado e cancelado sem dó, acusado de “machismo”. Justificavam este cancelamento afirmando que os “homens estavam invadindo um espaço feminino”. Respondi explicando que nos últimos 50 anos tudo o que vi na sociedade foram mulheres invadindo “espaços masculinos” em todas as áreas da atividade humana, desde médicas até juízas de futebol, passando por pilotos de avião e presidentes da República – o que deveria ser saudado por todos. Não seria justo que os homens também pudessem se aventurar na seara do cuidado? A luta contra o essencialismo não deveria ser uma via de duas mãos – ou uma faca de dois “legumes”?

De nada adiantou minha resposta; fui xingado, ofendido e cancelado. “Como ousa?“, diziam algumas mais furiosas. Pois se há algo que me constitui é a ousadia. Não tenho problema algum em regar inimizades em nome da defesa de ideias honestas e sinceras – mesmo correndo o risco de estar errado. Não levo estas coisas para o terreno pessoal, mas já passados quase 20 anos ainda acho que minha proposta continua correta. A tese contrária à minha era de que “as mulheres foram desconsideradas por milênios, impedidas de fazer tarefas reservadas aos homens. Não seria justo que as poucas coisas reservadas a elas – como o cuidado – fossem agora divididas com quem já controlava quase tudo”.

Respeitosamente discordei. Acredito na lei biológica que diz ser o hibridismo uma característica que fortalece as espécies. Da mesma forma, sociedades com diversidade de gênero nas tarefas comuns aprendem com a diferença de perspectivas que homens e mulheres podem oferecer. A paralaxe que se produz aumenta nossa capacidade de entendimento dos fenômenos e auxilia na resolução de dilemas. Uma mulher que atua em áreas outrora dominadas por homens oferece mais qualidade a este trabalho e ao mesmo tempo aprende com esta nova função. Homens que atuam no cuidado – de doentes, crianças, velhos, gestantes – também cooperam com uma maior diversidade de compreensão do trabalho enquanto se nutrem com o aprendizado que recebem em seu labor.

Quando estive na China havia uma propaganda na TV sobre novas iniciativas de saúde governo. Uma delas era a incorporação de obstetras do gênero masculino na atenção pública ao parto. Na propaganda um marido avançava para atacar um médico quando ele se aproximava para examinar sua mulher. Uma enfermeira intervém e explica que ele é um obstetra, e que não teria nada a temer. Para aquela cultura, a ideia de um homem examinando as partes íntimas de uma mulher era tão estranha quanto o era para o ocidente no final do século XIX. Hoje parece estranho e bizarro um “doulo”, mas talvez sejam barreiras que o tempo vai desfazer. Como saber?

Eu sou testemunha direta desse processo. Vivo ao lado de 5 netos que são constantemente cuidados pelos seus pais homens. As tarefas de cuidado na Comuna são divididas de forma muito equânime, excetuando-se a amamentação. Posso constatar a qualidade de amor paterno que os meus netos recebem e o quanto isso é fundamental na formação ética que recebem. Para um velho, como eu, que foi criado em uma divisão sacrossanta de tarefas domésticas esta foi uma grande revelação. Ver a pequena revolução do cuidado foi um grande presente que a vida me deu. Por outro lado, existem resistências muito fortes, como esta da qual fui vítima. A psicanalista Vera Iaconelli, em um recente artigo, fala da dificuldade de garantir aos homens esta posição:

“A tarefa do cuidado é desprestigiada porque é a menos remunerada, a menos valorizada da nossa sociedade, mas ao mesmo tempo ela serve, paradoxalmente, como um lugar de prestígio para as mulheres, já que se supõe que só elas sabem fazer”, diz.(…) Então a gente tem uma contradição, que faz com que elas sofram nessa posição de exclusividade, mas, ao mesmo tempo, tenham medo de abrir mão de um dos poucos lugares de reconhecimento.”

Para que a sociedade esteja legitimamente no caminho da equidade é fundamental reconhecer esta angústia feminina – e por vezes um rechaço explícito – em relação ao cuidado feito pelos homens com a mesma seriedade que entendemos a relutância destes em assumir a posição de cuidadores, onde será necessário muito mais do que habilidades técnicas e força física – que por milênios foram exaltadas como superiores – mas o desenvolvimento de novas aptidões como paciência, delicadeza, afeto, docilidade, compreensão dos limites, carinho e amor incondicional.

Sim, homens podem ser doulas; mais ainda: podem exercer as funções de cuidado com seus filhos, netos e avós; com os doentes, os acamados, os bebês e todo aquele que necessite da “fraternidade instrumentalizada”. Por mais que a ciência tenha adentrado no âmago das células ela jamais foi capaz de afirmar que o gene do amor se situa apenas no cromossomo X.

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Mestre

Uma vez eu estava debatendo com colegas da humanização do nascimento nos “list servers” que existiam na época e chamei um colega médico de “mestre”. Imediatamente uma doula do seu estado me chamou em privado pelo Messenger dizendo “Não o chame de mestre. Ele não é o que parece”.

Achei um pouco duro; afinal não havia qualquer discordância entre o nossas perspectivas. Chamá-lo de “mestre” seria uma sutil deferência, uma forma de mostrar minha adesão aos nossos pressupostos compartilhados. Entretanto, com o passar dos anos, percebi que ela tinha razão. O colega tinha uma retórica humanizada, mas uma prática muito centrada em suas necessidades pessoais, a ponto de sacrificar os desejos de suas pacientes em nome de seus compromissos.

Esta é uma questão bastante prevalente neste debate, e por isso eu costumo citar tanto as palavras de Vladimir: “O critério da verdade é a práxis”, ou seja, não há verdade consistente que não seja estabelecida sobre a realidade da prática. Não há mentira que sobreviva se for desmentida pelos fatos. Esta foi a questão dos partos domiciliares na história da obstetrícia: na teoria eles seriam mais perigosos porque as ferramentas existentes no hospital estariam ausentes no domicílio. Desta forma, a distância do centro obstétrico, moderno e tecnológico, aumentaria os riscos e os resultados inevitavelmente seriam piores. O que a prática dos partos domiciliares planejados demonstrou é que os riscos teóricos não se expressam na realidade dos fatos, da prática cotidiana, nos números e nas análises frias. Partos assistidos em casa são tão seguros quanto os partos de risco habitual atendidos em ambiente hospitalar. A ideologia foi, então, obrigada a se curvar à realidade material.

Entre os humanistas do nascimento podemos aplicar a mesma perspectiva. De nada adianta um discurso bonito, ideias profundas e uma vinculação ideológica com os pressupostos da humanização do nascimento sem que isso se traduza em diferentes resultados na sua atuação como profissional. Por isso é que, diante de uma promessa de atenção diferenciada, guiada pelo ideário do parto fisiológico, mais importante é investigar a realidade dos seus partos, a taxa de cesarianas, o índice de episiotomias, a quantidade de intervenções, etc. Nenhum falso mestre passa por este teste.

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Protocolo

Logo após o término da faculdade e da residência comecei a trabalhar em um hospital de periferia onde o atendimento era 100% SUS. Eu era o responsável pelo atendimento nas sextas-feiras no Centro Obstétrico, e acredito que aquele plantão, pelas características de atender pessoas desconhecidas que haviam realizado pré-natal no sistema público de saúde, foi uma forma bastante desafiadora de levar adiante a prática dos elementos fundamentais da humanização do nascimento. Eu tinha na mente uma clara inconformidade com a forma como aconteciam os atendimentos ao parto, mas além dela uma perspectiva humanista, centrada nos elementos constitutivos do sujeito, que mesclava os fatores físicos, hormonais e mecânicos mais grosseiros com os elementos sutis, emocionais, psicológicos, sociais e espirituais das mulheres que estavam parindo seus filhos. Esse foi o terreno fértil para uma postura de confrontação ao modelo alienante da obstetrícia dos anos 90.

Na época destes plantões eu criei um programa para uso pessoal que chamei de PAOH – Protocolo de Atenção Obstétrica Humanizada, que nada mais era do que uma lista de princípios gerais para que me orientariam no projeto de otimizar resultados. Para mim, o objetivo mais importante é de que o parto fosse realizado com o máximo de segurança, e que culminasse com o nascimento de um bebê saudável e de uma mãe que tivesse obtido, além do seu bem-estar, todo o proveito da experiência. Para além da mera sobrevivência – o essencial – era fundamental oferecer à experiência do parto a possibilidade de alavancar o crescimento pessoal. Partos fisiológicos, bebês saudáveis, contato precoce, amamentação livre, fortalecimento dos laços familiares, etc. O protocolo era composto de 6 elementos simples:

1. Ambiente propício

Muito já se falava à época dos trabalhos de Frederik Leboyer e seu “nascimento sem violência”, e o quanto as interferências de luz e som na condução do parto tinham a potencialidade de atrasar e prejudicar seu bom andamento. Por esta razão, decidi que uma das mais importantes ações para garantir a segurança do parto seria diminuir tanto o barulho quanto os estímulos visuais na sala de parto. Os partos assim seriam conduzidos no silêncio e na penumbra, para não interromper o fluxo fisiológico do parto e favorecer o “apagamento neocortical”. A ideia era tratar o parto como “parte da vida sexual normal de uma mulher”, como afirmava Michel Odent, e ter os mesmos cuidados de privacidade e intimidade das relações sexuais. Com isso esperávamos diminuir a adrenalina circulante e aumentar os níveis de oxitocina entre todos os participantes da cena do parto.

2. Suporte psico-afetivo

Eu acreditava nas premissas básicas do obstetra britânico Grantly Dick-Read e sua ênfase nas questões ambientais para o sucesso do parto. Esta é uma das razões pelas quais partos conduzidos por mulheres compassivas – parteiras profissionais – têm mais sucesso do que aqueles conduzidos por figuras técnicas cuja vinculação afetiva é muito mais difícil: os médicos e cirurgiões. Desta forma criei o compromisso de não me afastar das pacientes durante todo o processo, ficando acessível aos seus pedidos e queixas para quando elas achassem necessário. Também acreditava que o acompanhante poderia trazer inúmeros benefícios para a condução do processo, e estimulava a presença do marido ou de qualquer outro acompanhante de livre escolha. O que hoje parece simples, há 35 anos era uma batalha diária.

3. Posição verticalizada preferencial para o parto.

Minha experiência com a posição de cócoras para parir já foi descrita no meu primeiro livro “Memórias do Homem de Vidro”, mas quando construí este protocolo – no fim dos anos 80 e início dos anos 90 – eu já estava absolutamente apaixonado pelos resultados que eu mesmo havia observado, e no que era possível encontrar em trabalhos e livros (como “Aprenda a Nascer com os Índios”, de Moysés Paciornik). Mais tarde esta recomendação deu lugar a uma proposta muito mais aberta, que garantia às mulheres a liberdade para escolher a posição que mais lhes agradava. Entretanto, no início desta caminhada, era preciso ser mais enfático e mostrar de forma bem explícita algo que a cultura havia sonegado: a vantagem das posições verticais e uma ergonomia mais fisiológica, natural e segura para o nascimento dos bebês. Também não foi fácil chegar a este ponto: colegas médicos me acusavam de “humilhar as mulheres”, fazendo que parissem como “galinhas botando ovos“.

4. Uso restrito e criterioso de medicações, sempre que possível

Toda medicação tem efeitos indesejáveis e com repercussões imprevisíveis. É notável a crescente drogadição da sociedade, e isso é uma preocupação das grandes organizações internacionais relacionadas à saúde pública. A simples “correção de dinâmica” (melhorar as contrações) através do uso de uma droga chamada “oxitocina sintética” pode levar a uma “taquissistolia” (aumento na frequência das contrações) que tem a potencialidade de criar grandes riscos para o bebê, inclusive produzindo stress fetal – que leva a cesarianas de urgência. Assim, todas as drogas utilizadas, incluindo aí os antibióticos, uterotônicos, etc, só poderiam ser utilizados de forma muito criteriosa; caso contrário deveriam ser evitadas.

5. Uso restrito de intervenções e manobras, sempre que possível

Boa parte das manobras médicas em obstetrícia parte de uma lógica perversa: a crença de que as mulheres são incapazes de levar adiante a tarefa de gestar, parir e maternar sem a intervenção da tecnologia e dos profissionais que a controlam. Desafiar essa ideia, encarando as mulheres como intrinsecamente capazes de realizar o trabalho multimilenário de parir, significaria questionar o poder médico exercido sobre seus corpos grávidos. Isso jamais aconteceria impunemente; todavia, quando testemunhamos setores da sociedade, como a classe média, que ostentam taxas inacreditáveis de intervenção – tipo, 90% de cesarianas – fica claro que, mais cedo ou mais tarde, alguém questionaria este tipo de intromissão abusiva, perigosa e sem respaldado na ciência sobre os corpos das mulheres grávidas.

6. Trabalho com as doulas

Meu trabalho com as doulas se iniciou nos estertores do século passado quando tomei contato com as mulheres que se dedicavam a dar suporte afetivo, emocional, psicológico e físico para as mulheres durante o processo de parir. Elas ofereciam uma parte da atenção que a mim era interditada: o profundo contato físico e amoroso oferecido às gestantes durante o trabalho de parto. Além disso, elas ofereciam o toque, o apoio emocional, o cuidado com o ambiente, o auxílio à família e a sintonia feminina que se pode testemunhar entre a doula e a gestante sob seus cuidados. Foi uma grande descoberta, pela qual eu me apaixonei e dediquei décadas da minha vida à sua divulgação, formação e disseminação. Infelizmente, esse foi um item acrescentado à posteriori, pois no início da década de 90 aquele centro obstétrico não estava preparado para a revolução das doulas, e os responsáveis pelo centro obstétrico jamais aceitariam sua presença nos partos.

Esse protocolo foi usado durante toda a minha vida profissional, mas jamais me iludi com o fato de que isso incomodaria os donos do poder, os mesmos que olhavam a taxa crescente de cesarianas e outras intervenções no ciclo gravido-puerperal sem criticar. Não havia nenhum debate acadêmico, no meio onde eu atuava, que questionasse onde esta escalada intervencionista nos levaria. Todavia, como diria Vladimir, “O critério da Verdade é a práxis”, e desta forma percebi que eu só teria certeza da justeza de tudo que era publicado a respeito das vantagens da perspectiva humanista para o nascimento quando isso se tornasse algo além das letras dispersas em livros e estudos, e se tornasse prática cotidiana de assistência. Era preciso que alguém colocasse mãos à obra e praticasse o que era oferecido pela ciência contemporânea, mesmo que esta atitude afrontasse diretamente os interesses corporativos.

Na época em que eu atendia naquele hospital as taxas de cesariana eram da ordem de 45% – muito maiores (o triplo) do que o recomendado pelas grandes agências como WHO ou OPAS – mas as minhas taxas pessoais de cesariana giravam ao redor de 10 a 15% dos partos, o que comprovava a ideia de que era possível diminuir esses números, bastando para isso um desejo de mudança associado à coragem de fazê-lo. Minhas cesarianas obedeciam critérios muito rígidos para sua execução, e por causa disso logo senti a antipatia dos anestesistas “Por que você não marca suas cesarianas para antes da novela? Seus colegas sabem de antemão quais os partos que ‘não vão ter passagem’; só você nos chama de madrugada”. Não só dos anestesistas percebi antagonismo; era evidente que para os médicos ditos “cesaristas” meu exemplo era um prejuízo para o trabalho que faziam. Assim, é possível imaginar a dificuldade em trabalhar sem a colaboração de pessoas da equipe que, por razões de conforto pessoal, não aceitavam alguém que atuasse em favor das mulheres, seus desejos, seus direitos e sua segurança.

Alguns anos depois de iniciar este trabalho encontrei um velho colega de residência que decidiu trabalhar no interior do Estado, na cidade da qual era originário. Quando me viu, perguntou se eu continuava com as mesmas ideias “estranhas” do tempo em que trabalhamos juntos no hospital onde fizemos a residência, tipo “parto de índio”, “contato pele a pele”, “marido na sala”, “crítica às episiotomias” e uma aversão ao “abuso de cesarianas”. Respondi que sim, que continuava com muita esperança que estas ações pudessem revolucionar a prática obstétrica, mesmo que levasse muito tempo para isso. Sua resposta foi maravilhosa, e a mantenho até hoje na memória para entender como se processam as mudanças.

Admiro sua persistência. Já eu faço o que eles querem. Meus partos são bem  tradicionais, como são feitos desde os anos 30. Tenho uma taxa muito alta de cesarianas, e não me envergonho disso. Nunca discuto alternativas; pacientes não podem controlar os médicos. Não quero ser acusado de nada, e não quero mudar nada; para mim está muito bom assim. Mas, é claro, concordo com suas ideias, apesar de que jamais as levaria adiante. Não sou kamikaze.

Naquela época um velho médico, próximo da aposentadoria, me disse uma frase que resumiria esta situação de forma muito didática. Segundo ele, “Existem dois tipos básicos de médicos: uns desejam resolver os problemas de seus pacientes, enquanto os outros querem resolver os seus problemas através dos pacientes. Cabe a você – e só a você – escolher a qual grupo deseja se juntar.”

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Intactos

Ao participar de congressos nos Estados Unidos sobre humanização do nascimento nas primeiras duas décadas deste século eu conheci um lado da cultura americana que muito me impressionou. No intervalo das palestras era possível passear pelos estandes coloridos dos patrocinadores. Espremidos entre as cabines que vendiam produtos como sonares, bonecas de ensino, livros e seus autores, bijuterias e aromas de ambientação, notei a presença de ativistas que divulgavam temas variados, mas sempre relacionados com o público que participava do movimento de humanização. No meio do burburinho de participantes do evento, encontrei o movimento contra a prática disseminada da circuncisão, o “Intact America“, e sua presença logo captou minha atenção. Depois de ficar alguns instantes tentando entender do que se tratava, fui prontamente abordado por uma simpática senhora com panfletos nas mãos e um sorriso no rosto. Foi desta vez que, pela primeira vez´, tomei contato com pessoas que lutavam pela preservação da integridade anatômica dos meninos, e posso dizer que foi uma experiência marcante.

Da minha conversa com as ativistas anticircuncisão aprendi muito sobre a importância de manter intacta esta parte do corpo em função dos inúmeros benefícios (para mim até então desconhecidos) de manter pele do prepúcio e assim garantir a sensibilidade e o prazer sexual masculino. A história desta cirurgia ritualística e mutilatória vem de tempos imemoriais. Foi Maimonides, judeu sefardita da idade média, filósofo e estudioso da Torá que viveu entre os muçulmanos da costa ocidental da África e do Egito, o mais conhecido proponente da circuncisão. É dele a frase: “A lesão corporal causada a esse órgão é exatamente a desejada”, deixando claro que acreditava haver benefício nos traumas causados aos homens que se submetiam a este tipo de procedimento. Para ele, “Não há dúvida de que a circuncisão enfraquece o poder da excitação sexual e, às vezes, diminui o prazer natural.” Desta forma fica fácil entender que esta prática tem como finalidade última a obstrução da potencialidade prazerosa sexual dos homens. Segundo Maimonides, os homens assim “domesticados” teriam menos interesse no sexo e liberariam mais tempo para as coisas mais nobres, como o estudo da Torá. Em uma perspectiva histórica é notável o fato de que esta cirurgia sempre foi realizada exatamente para atingir a sexualidade, colocando sobre ela a marca indelével da cultura, como que a afirmar que tudo que se passa ali está sob o olhar cuidadoso do Grande Outro que, em última instância, determina nossa posição no mundo.

É interessante notar como a circuncisão é um não-assunto no Brasil. Se você pensar que ela está restrita aos judeus no Brasil, e a população de origem judaica no nosso país não tem mais do que 150 mil pessoas (0.06% da população brasileira), é possível perceber que não se trata de um tema de alto impacto. Já os Estados Unidos são o país que congrega a segunda maior população judaica do mundo, atrás apenas de Israel, e lá vivem mais de 5 milhões de judeus, algo próximo de 1.5% da população. Entretanto, nos Estados Unidos a prática da circuncisão se alastrou para os não judeus, tornando-se uma das cirurgias mais prevalentes no país. O Centro Nacional de Estatísticas de Saúde estima que cerca de 64% dos recém-nascidos do sexo masculino americanos são submetidos à circuncisão. No entanto, esse número varia entre grupos socioeconômicos, étnicos e geográficos. Apesar da taxa de circuncisão estar em lenta queda, estima-se que 80,5% dos homens com idade entre 14 e 59 anos nos Estados Unidos sejam circuncidados. Apesar do número espantoso, existem números ainda mais impactantes: o Afeganistão tem uma taxa de 99.8%, e Gana 91.6% de crianças circuncidadas. Muitos argumentam a existência de benefícios na realização desta cirurgia, entre eles as questões higiênicas, a diminuição do risco de câncer, proteção potencial de infecções do trato urinário e até diminuição da transmissibilidade da AIDS. Estes dados são motivo de constante questionamento, porém mas mesmo que fossem válidos seria como dizer que câncer de mama desaparece depois de mastectomia, cáries igualmente são exterminadas ao se colocar próteses dentárias ou que fumar diminui a incidência de aftas na mucosa oral. Para além disso, existem questões éticas muito sérias, pois estas cirurgias podem ter consequências para toda a vida, É interessante notar como a circuncisão é um não-assunto no Brasil. Se você pensar que ela está restrita aos judeus no Brasil, e a população de origem judaica no nosso país não tem mais do que 150 mil pessoas (0.06% da população brasileira), é possível perceber que não se trata de um tema de alto impacto. Já os Estados Unidos são o país que congrega a segunda maior população judaica do mundo, atrás apenas de Israel, e lá vivem mais de 5 milhões de judeus, algo próximo de 1.5% da população. Entretanto, nos Estados Unidos a prática da circuncisão se alastrou para os não judeus, tornando-se uma das cirurgias mais prevalentes no país. O Centro Nacional de Estatísticas de Saúde estima que cerca de 64% dos recém-nascidos do sexo masculino americanos são submetidos à circuncisão. No entanto, esse número varia entre grupos socioeconômicos, étnicos e geográficos. Apesar da taxa de circuncisão estar em lenta queda, estima-se que 80,5% dos homens com idade entre 14 e 59 anos nos Estados Unidos sejam circuncidados. Apesar do número espantoso, existem números ainda mais impactantes: o Afeganistão tem uma taxa de 99.8%, e Gana 91.6% de crianças circuncidadas. Muitos argumentam a existência de benefícios na realização desta cirurgia, entre eles as questões higiênicas, a diminuição do risco de câncer, proteção potencial de infecções do trato urinário e até diminuição da transmissibilidade da AIDS. Estes dados são motivo de constante questionamento, porém mas mesmo que fossem válidos seria como dizer que câncer de mama desaparece depois de mastectomia, cáries igualmente são exterminadas ao se colocar próteses dentárias ou que fumar diminui a incidência de aftas na mucosa oral. Para além disso, existem questões éticas muito sérias, pois estas cirurgias podem ter consequências para toda a vida, com potencialidade danosa ou mesmo devastadora, realizadas em menores de idade, que são obviamente incapazes de fazer escolhas informadas sobre riscos e benefícios.

Outra aspecto da minha conversa que me impressionou foi o fato de que as ativistas com quem conversei eram todas mulheres. Elas lutavam pela integridade física de seus filhos, netos e tentavam alertar a todos os homens sobre os riscos inerentes a uma amputação, sem que lhes fosse garantido a oportunidade de escolha. Estas senhoras falaram comigo do pênis e suas funções com detalhadas explicações anatômicas e fisiológicas, como se fosse parte do corpo delas, ou como fossem diretamente afetadas. Não pude evitar lembrar de uma aula do saudoso Contardo quando ele, jocosamente, dizia: “O pênis é um órgão feminino colocado no corpo dos homens”. Intrigado e curioso, perguntei a elas se, em algum momento, um homem defensor da circuncisão havia jogado em suas faces uma “ameaça de cancelamento” ao estilo “não é seu lugar de fala” ou “deixe esse assunto para nós, homens”. Elas sorriram por saber onde eu queria chegar; afinal, estávamos em um imenso congresso sobre parto e eu era um dos poucos homens a ter espaço para trazer minhas propostas e ideias. Uma delas respondeu: “Os homens são nossos parceiros. São nossos filhos, maridos, amigos e netos. É com os homens que fazemos amor, e garantir seu prazer é um assunto que também nos pertence. Não, nenhum homem jamais disse para eu me calar usando este argumento”.

A luta pela integridade física dos sujeitos uniu aqueles que lutam contra a violência obstétrica – cuja intervenção paradigmática e exemplo mais clássico é o das episiotomias injustificadas – e os ativistas pela integridade peniana, que lutam pelo direito dos homens de manter seu corpo e sua sexualidade livre de invasões e amputações. Desta forma, lutar contra a violência obstétrica através das múltiplas intervenções danosas sobre o corpo das gestantes e a luta contra cirurgias mutilatórias ritualísticas sobre o corpo dos homens é um assunto que tem a ver com cada um de nós, inobstante a identidade sexual de que somos investidos.

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Lugar que cala

Vou falar de um tema que sempre me atingiu de forma pessoal: a ditadura dos “lugares de fala”, um recurso utilizado há muito tempo por grupos identitários que afirmavam que somente aqueles que tivessem sofrido na pele um determinado problema (pobreza, racismo, machismo, lgbtfobia, etc) poderia tratar do assunto. O mantra é “Se você não é (mulher, preto, gay, latino, pobre…) apenas cale-se e escute”. Ou seja: estamos diante do “Império dos Sentidos” onde somente aquele que sentiu algo diretamente têm o direito garantido de falar e ser escutado. Todo aquele que porventura tenha estudado e se dedicado ao tema está condenado a ter uma opinião de “segunda classe” ou, pior, sequer ter acesso à fala. Eu acho que qualquer um que critica o autoritarismo identitário, está muito correto, e por diversos aspectos. O “lugar de fala” serviu desde sempre como “lugar que cala”. Ou seja, se você é preto tem o direito de calar todos “não pretos” quando o assunto é negritude, como se a sua vivência fosse o único qualificador, negando o direito de expressão de todos aqueles que se dedicaram a estudar o tema. Assim ocorre o mesmo com a violência, as orientações sexuais, a identidade de gênero, a Palestina, a pobreza, a mulher etc. Existe um “passe” identitário para tratar de temas específicos.

Por ser um obstetra homem, impossibilitado de parir, sofri a vida inteiro este tipo de constrição sempre que tratei dos temas ligados à gestação, parto, puerpério ou amamentação. Havia (e ainda se mantém, ainda que com menos intensidade) a ideia (explícita ou implícita) de que só as mulheres poderiam falar dos eventos relacionados ao parto, o que sempre me pareceu equivocado, porque é possível falar do parto na perspectiva dos direitos humanos, da fisiologia, da reprodução, da genética, e tantos outros aspectos sem ter passado pela experiência específica de parir. A única coisa que não há como falar é sobre a vivência de parir, pois que só quem teve o corpo marcado por ela pode tratá-la com cumplicidade e proximidade.

Por isso sempre tive o cuidado de afirmar que não terei jamais a capacidade de descrever como é gestar e parir numa narrativa de primeira pessoa; posso no máximo descrever o fenômeno pela percepção do outro. Sempre afirmei que ignoro por completo como é carregar um filho no ventre e todas as nuances e significados do trabalho árduo de separá-lo de si no parto. Entretanto, isso não deveria impedir que se discuta a questão do parto por todas as suas outras facetas, até porque quem não o sente no corpo que pariu, por certo o viveu em seu corpo parido, e isso diz respeito a todos aqueles que passaram ou passarão por este momento.

Sobre as vozes dos homens nos saltos transformativos da atenção ao parto, pensem o que seria da humanização do nascimento sem a visão do ambiente nos livros de Grantly Dick-Read e o círculo vicioso de medo-tensão-dor. Como estaria a atenção ao parto não fosse “parto sem Violência” de Leboyer, e o nascimento na perspectiva de quem nasce? Como estaria o mundo sem a visão ecológica de Michel Odent, a revolução das doulas e da conexão mãe-bebê sem Klauss & Kennell? Sem Marsden Wagner, como saber a importância dos paradigmas hegemônicos que regulam o nascimento a despeito das descobertas científicas que apontam para um ponto oposto? Sem o exemplo de Galba de Araújo, como saber a importância do serviço público e seu impacto nas mudanças qualitativas e quantitativas na atenção ao parto com recursos simples e acessíveis? E que seria de tantos outros homens anônimos que dedicaram suas vidas ao cuidado, mesmo alijados da experiência direta de parir? Deveriam silenciar e aguardar décadas até que uma mulher tivesse a perspectiva que tiveram? Seria justo calar-se diante de uma postura tão autoritária e abusiva?

Não há sentido em afastar os homens do debate sobre parto, mas também nada justifica calar qualquer um sobre as questões tão relevantes do nosso tempo. O movimento pela Palestina mostrou de forma muito clara que, mesmo não sendo palestinos, somos parte da mesma humanidade e desejamos um mundo sem o racismo sionista, a ocupação e a limpeza étnica protagonizadas por Israel. Por fim, o fato de ser humano me garante o lugar de fala para expressar aquilo que é humano, e tudo que é humano me afeta e pertence. Ou, como diria Terentius Afer, “nada do que é humano me é estranho”.

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Representações

Pensem por esta linha: se a representatividade fosse realmente determinante para a mudança dos modelos não seria de esperar que a entrada de mulheres na obstetrícia (onde hoje já são a maioria) deveria transformar as práticas de atenção ao parto de forma que se tornassem mais humanizadas? Ou seja, com tantas médicas mulheres atendendo partos, não deveriam os nascimentos ser mais centrados na autonomia das mulheres, na vinculação com a saúde baseada em evidências e na abordagem interdisciplinar do evento? E por que isso não ocorreu? Por que a prática obstétrica se mantém violenta e “iatrocêntrica” (centrada no médico) a despeito da entrada massiva de mulheres na profissão?

Ora, esse fenômeno ocorre por razões até simples de entender. As mulheres que entram num ofício caracteristicamente masculino como a obstetrícia que opera na lógica da intervenção (ao contrário da parteria, que é essencialmente feminina e opera na lógica do cuidado) adaptam-se à ideologia hegemônica, tornando-se veículo de uma ordem de poderes e de uma ideologia que mantém o poder nas mãos dos médicos. Nessa ideologia os corpos das mulheres precisam ser controlados e domesticados, retirando-se deles a natural energia selvagem e criativa. Via de regra, não se observa nenhuma diferença marcante na atenção prestada por homens e por mulheres no que diz respeito às práticas condenáveis como episiotomia, posição de litotomia, Kristeller, corte prematuro de cordão, cesarianas, etc. Da mesma forma, na atenção médica ao parto não há diferença alguma entre homens e mulheres quando avaliamos as boas práticas e as posturas que estimulam a humanização. Portanto, as obstetras mulheres claramente se adaptam ao sistema de poderes no qual se inserem e não foram – até então – capazes de transformá-lo pela identificação de gênero que teriam com as gestantes.

Da mesma forma, uma mulher negra representando o imperialismo, como Linda Thomas-Greenfield, que vetou o acordo de paz da guerra de Israel contra os palestinos, jamais se posicionaria ao lado das populações negras (ou não brancas) que lutam contra o sistema imperialista, a opressão, o apartheid e a violência de Estado que ela própria representa. Ela também se adapta ao sistema que a abriga, tornando-se uma emissária dos interesses imperiais, e não uma mulher negra em posição de comando. Sua negritude e sua feminilidade desaparecem diante da magnitude de sua posição.

Pois é exatamente por isso que esse modelo de representatividade, que é apregoado e disseminado pela direita – mesmo a direita travestida de esquerda identitária – é uma falácia. Esta estratégia divisionista foi criada pelos “neocons” americanos para produzir a divisão da classe operária entre suas múltiplas identidades – pretos, gays, mulheres, transsexuais, etc. – oferecendo a estas identidades uma pífia representatividade, enquanto mantém intocados os poderes do capitalismo e obstrui a luta de todos nós – a luta de classes. Em troca oferece uma fatia do bolo para essas personagens, mantendo os milhões de representados na mesma condição de miserabilidade e exclusão.

Não existe possibilidade de avançar nas lutas por uma sociedade equilibrada através desses truques narrativos. Assim como mulheres, negros, gays etc. assumem a roupagem do poder que os acolhe, suas ações serão sempre reflexo desse poder, e não das identidades que carregam.

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Opressão de classe

A questão de classe se sobrepõe à questão racial. Negros foram escravizados há 500 anos, trazidos de África, para serem trabalhadores forçados nas propriedades brasileiras, mas na história da Grécia e de Roma outros povos brancos foram trazidos para as metrópoles do mundo antigo como escravizados. Até na própria África negra havia escravos negros de senhores igualmente negros. Outros exemplos são os asiáticos no leste americano e os irlandeses pelos ingleses, tratados com o desprezo reservado às classes inferiores. A opressão dos mais fortes usa a cor da pele como desculpa para oprimir e explorar os mais fragilizados. No caso do Brasil – semelhante à dos Estados Unidos – a luta contra o racismo não pode assumir o caráter identitário, privilegiando apenas uma identidade, acreditando que o sofrimentos dos negros é único e uniforme.

Em verdade, esse sofrimento só será exterminado quando os negros tiverem acesso aos recursos econômicos para a sobrevivência digna nessa sociedade, um movimento que não vai acontecer apenas através da ascensão de alguns poucos negros às classes superiores, mas com a supressão das classes sociais. Sem classes dominantes e enormes contingentes de dominados, o racismo não terá como se expressar. Por essa razão, lutar contra o racismo sem entender que ele é uma consequência da sociedade capitalista de classes apenas gera conflito dentro da classe operária. É por essa específica razão que a direita americana oferece um apoio tão consistente para organizações identitárias que objetivam a divisão da classe trabalhadora, usando a luta antirracista, feminista e pró LGBT para minar a luta contra o capitalismo.

Não há dúvida de que ninguém vê senhoras negras dirigindo uma Ferrari aqui no Brasil, mas nos Estados Unidos existem centenas, talvez milhares de mulheres negras ricas que usam esse tipo de ostentação. Podemos então dizer que por lá o racismo foi derrotado? Eu diria que é exatamente o oposto: lá o racismo é muito pior. Esse é o grave problema do identitarismo, porque a existência de personagens negros com muito dinheiro não eliminou o racismo, o sofrimento do povo negro, e muito menos a exclusão da população negra da riqueza nacional, mas dá a eles uma ilusão de que o liberalismo é capaz de lhe oferecer as condições de ascensão social. Essa mentira percorre o imaginário há séculos.

Sobre os trabalhos domésticos, os serviços perigosos e danosos reservados aos negros, isso não é condição inerente da pele negra…. mas da pobreza!!!! O fato de haver muitos negros pobres no Brasil nos oferece a ilusão de que a cor da pela é a questão primordial, pois negritude e pobreza se confundem num país que se liberou da escravidão há 150 anos. Entretanto, o que conduz essas pessoas a condições de trabalho indignas é sua classe social, e não a quantidade de melanina que carregam.

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Iconoclastia e nascimento

Eu entendo a tesão da iconoclastia. Durante anos a fio o ideário da humanização do nascimento percorreu este fluxo. Tudo o que víamos eram os erros, a barbárie da medicalização abusiva, o desrespeito com a privacidade, a expropriação do protagonismo, a objetualização, a coisificação humilhante, o abandono e a insensibilidade com as múltiplas facetas de um evento tão rico e plural. Queríamos, com evidente furor revolucionário, destruir o velho e erguer o novo sobre seus escombros. Queríamos limpar o nascimento das “pseudociências” que o controlam. Tínhamos a fé firme na revolução do saber, através do ensino, da demonstração da Verdade, dos estudos, dos periódicos, das metanálises deslumbrantes e arrasadoras. “Soubessem eles o que sabemos e a violência acabaria, como um facho de luz percorrendo o espaço ilumina tudo o que toca.”

Nossa maior riqueza era o vigor transformador, filho dileto da indignação. Queríamos transformar o mundo mudando a forma de nascer. Apostávamos no poder libertador da ciência e da informação. O erro, assim o entendíamos, era o resultado direto da ignorância. Traríamos nós, então, a “boa nova”, o Evangelho da humanização e sua potencialidade de, mudando o parto, fazer nascer uma humanidade verdadeiramente cidadã. Sim, a nós faltava a compreensão materialista das forças econômicas, as verdadeiras proprietárias do parto. Ao nosso ver, para que ocorressem as necessárias mudanças, era preciso combater, acusar, agredir, lutar, apontar dedos, denunciar. E, não há como negar, para aqueles que conheciam a prática de partos que brotavam da simplicidade fisiológica da proposta humanizante, era fácil perceber o contraste chocante com a realidade cotidiana. Eram dois mundos tão distantes que único traço unificador era o nascimento de um bebê, mas por caminhos tão distintos que não seriam colocados na mesma categoria por um visitante do espaço sideral. Confundiriam uma cesariana com a simples retirada de um tumor, enquanto um parto, na penumbra e no ritmo sensual da natureza, seria facilmente confundido com…. o sexo.

Éramos cães correndo atrás dos pneus, latindo fervorosamente para que parassem com a selvageria tecnocrática dos nascimentos artificializados. Para aqueles contaminados pelo vírus da humanização o barulho era, a cada dia, mais insuportável. Todavia, com o tempo e a insistência, os gritos foram aos poucos sendo ouvidos pelas mulheres, seus parceiros, enfermeiras, obstetrizes, as doulas e, de forma muito tímida, pelos poucos médicos que se aventuravam a questionar os dogmas da corporação, mesmo sabendo que o ódio contra eles seria implacável.

Depois de tanto grito, o carro diminuiu a marcha e o motorista agora pergunta: “afinal, o que desejam vocês?”

Estava claro que manter-se criticando os erros e absurdos do velho paradigma não produziria nenhuma transformação consistente e duradoura. As soluções aos poucos foram surgindo. Cursos de obstetrícia (parteiras de entrada direta) sendo inaugurados, novas casas de parto, equipes de parteiras domiciliares, a luta pelo protagonismo do parto garantido à mulher, a vinculação firme com a saúde baseada em evidências e a reformulação de alguns centros obstétricos do país. Todas iniciativas muito boas, mas ainda incapazes de gerar impacto num pais gigante, com residências obstétricas anacrônicas, poucas enfermeiras, um modelo de parto sustentado pela ciência capitalista e uma hierarquia vertical e autoritária coordenando as relações entre os pacientes e seus cuidadores. Infelizmente, a adesão às propostas de financiamento por instituições ligadas ao imperialismo, como a Fundação Ford, a Open Society e a Fundação Bill e Melinda Gates, seduziram por muito tempo aqueles que tinham interesse na construção de um novo modelo de assistência ao parto, o que foi motivo do meu afastamento desta organização. Entretanto, apesar dos percalços, o debate está mais aceso do que nunca, e a consciência sobre os direitos sexuais e reprodutivos da mulher é um caminho sem volta. Nos parece claro que “a crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem” (António Gramsci). Entre eles a perseguição implacável e cruel contra os profissionais que ousam anunciar que o autoritarismo no parto precisa ser extinto.

Acredito, agora de forma já amadurecida, que a solução se dará apenas com a adoção de um modelo de luta popular, centrado nas mulheres, exigindo – jamais pedindo – uma transformação radical na estrutura da assistência ao parto no Brasil, com recorte de classe e com caráter sistêmico. Penso também que a iconoclastia de outrora que ainda sobrevive, assim como a guerra contra as “pseudociências”, serve aos interesses dos poderosos, os que controlam o nascimento sem ter uma vinculação com a completude psicológica, emocional, social, material e espiritual do nascimento. A visão moralista da humanização do nascimento precisa ficar no passado, para entrar na fase de estabelecer-se como novo paradigma.

Com o tempo começa a ficar claro que derrubar mitos é muito mais fácil do que construir novos templos. Entretanto, mesmo reconhecendo o papel da indignação na construção dos novos paradigmas, é forçoso entender que o local de destaque cabe àqueles cujo trabalho se concentra em criar o novo apesar das dificuldades, agindo como “um velho marinheiro que durante o nevoeiro, leva o barco devagar”.

Tá legal?

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