Arquivo da tag: vida de estudante

Memórias do Homem de Vidro – 03

Barulhos

Casei muito cedo. Cedo demais. Abortei boa parte da minha adolescência. Entre os 20 e os 30 anos, tirei, ao todo, dois meses de férias. Enquanto meus colegas se divertiam em passeios e festas, eu fazia plantões e estágios. No mês de feve­reiro de 1980, trabalhei 25 das 28 noites como plantonista em um pronto-socorro. Queria absorver tudo o que a medicina poderia me mostrar. Fui pai precoce, ado­lescente, menino. Saí da casa paterna com 21 anos para viver uma vida de adulto. Tal atitude tem vantagens e desvantagens. Pude crescer junto com meus filhos, aprender a paternidade enquanto ainda me despia da adolescência. Por outro lado, as responsabilidades precocemente assumidas são fardos pesados, os quais carregamos com paciência, resiliência e, certamente, uma boa dose de humor.

Cuidar de meus filhos pequenos acabou sendo um dos maiores desafios que eu já tive que enfrentar. Não se nasce pai, nem se aprende em livros. A crueza dos tombos e as feridas no orgulho são que nos ensinam a lidar com essa fundamen­tal etapa da vida. Uma vez falei para uma paciente que um dos maiores e mais poderosos processos de transformação individual é a maternidade, mas que a paternidade é igualmente algo de uma força fabulosa. Devo muito do que sou ao fato de que, muito novo, fui obrigado a entender a minha vida de uma forma espe­cial. Ser pai é nunca mais pensar apenas em si mesmo. Ser pai é ter que lidar com desafios diários para levar aos seus filhos os valores que parecem ser os mais verdadeiros e corretos. Entretanto, dos aprendizados possíveis, o mais claro é o de que não existem regras, e que toda a educação é feita de erros.

Na época em que meus filhos eram pequenos, todos os meus amigos tinham mo­delos maravilhosos de como educar uma criança. Desde os aficionados pela dis­ciplina até os apaixonados pela liberdade infantil, sempre que o assunto é educa­ção todos estavam repletos de profundas certezas.

— Nunca se bate em criança — diz ela. — A agressão é entendida pelos peque­nos como um meio válido de se chegar a um resultado, e isso fatalmente se re­produzirá na sua conduta como adulto. As crianças que apanham hoje serão os agressores do futuro. Se quiser um mundo livre de violência, comece pela sua casa.

— Qual nada — responde a outra. — A criança precisa saber seus limites, e a única linguagem compreensível, em uma determinada etapa da vida, é a da pal­mada. Como explicar com palavras a inadequação de uma atitude a alguém que não entende ainda o seu significado? Prefiro eu mesma colocar os limites nos meus filhos do que ver alguém fazendo isso mais tarde. Lógico que não estamos falando em espancamento, entretanto blá, blá, blá…

Como se posiciona um pobre menino, estudante universitário, imberbe, inseguro, preocupado em passar de ano, diante das divergências profundas entre sistemas que chegam aos nossos ouvidos concernentes à educação dos pequenos? O má­ximo que conseguimos é nos munir do arsenal de valores que recebemos de nos­sos pais e repeti-lo. Mesmo quando equivocado e ultrapassado, muitas vezes é o único modelo que temos.

As palmadas, entretanto, não são o único dilema por que os jovens pais têm que passar. Mamadeiras, bicos, choros fora de hora, educação dos esfíncteres, etc. povoavam minhas angústias de pai de primeira viagem. Acrescente-se a isso a pouca idade, a imaturidade, a falta de dinheiro e o pouco tempo e teremos um caldo de cultura propício a situações que variam do drama à comicidade.

Lembro-me de uma ocasião em que, chegando em casa cedo pela manhã após três dias de plantão em diversos hospitais, encontrei minha mulher na soleira de nossa velha casa. Beijou-me um beijo de café e disse:

— Estou indo para a faculdade. Lucas está dormindo na nossa cama. Tem uma pilha de roupas para serem passadas. Beijo, te amo, tchau.

Assim mesmo. “Beijo, te amo, tchau.” Não tive tempo nem de responder, pois ela estava atrasada para pegar o ônibus. Vida dura de estudante/mãe.

Entro em casa e me deparo com a dura realidade. Lucas não estava mais dor­mindo. Talvez tenha escutado a breve conversa no portão da casa, ou apenas resolveu despertar porque o dia parecia estar destinado a grandes descobertas. A verdade é que seus dois grandes olhos castanhos me encaravam, emoldurados por um sorriso pleno de energia e vigor. O segundo fato apavorante é que a “pilha” de roupas para passar era, na verdade, uma montanha que se erguia da minha cama. Milhares de meias, cuecas, calças de brim, camisas, em uma maçaroca apavorante e incompreensível.

Eu havia passado a noite atendendo partos no hospital de periferia onde me iniciei na obstetrícia. Estava cansado e sonolento. As roupas precisavam ser passadas, e Lucas estava pronto para mais um dia de aventuras. O que poderia piorar esse cenário?

Lembrei… Eu tinha uma prova dentro de dois dias, e em função dos partos na noite anterior não me fora possível ler a matéria. Eu precisava estudar, cuidar do Lucas, passar roupa e dormir, tudo ao mesmo tempo! Aqui estava, tal qual a chuva no filme “Jovem Frankenstein”, algo que poderia piorar um cenário já de­sesperador.

Tive uma ideia, que à primeira vista poderia ser maravilhosamente conciliatória. Resolvi armar a tábua de passar ao lado da cama e abrir meu livro de medicina em uma das pontas, deixando o ferro quente na outra. Assim poderia passar a ferro as camisas e dar uma espiada na matéria — nefrologia. Lucas estava apren­dendo a caminhar, mas passava a maior parte do seu tempo nas tentativas de se erguer. Eu tentaria conversar com ele e distrair a sua atenção.

Foi o que fiz. Mesa armada, ferro de passar repousava à minha esquerda, livro de medicina aberto à minha direita e camisas e calças sendo passadas na minha frente. Parecia funcionar adequadamente. Finalmente eu provaria que, ao contrá­rio do que é maldosamente apregoado pelas feministas, nós, homens, também podemos ser multitarefa.

Tudo funcionou perfeitamente… por 15 minutos.

Eu havia esquecido um fator fundamental. Aquele que sempre põe abaixo os grandes e pequenos projetos da humanidade: o imponderável e circunstancial. A Lei de Murphy, maldosa e sorrateira, conspirando sempre que uma oportunidade lhe é oferecida. Ou, como Maximilian me falaria no futuro, eram “os desígnios se­cretos da Deusa Álea”.

Lucas conversava comigo dando gostosas risadas enquanto eu lia o livro de medi­cina em voz alta, fazendo de conta que lhe contava uma história de aventuras. Pobre criança, nem sabia que estava sendo enganado. Não havia nenhum prín­cipe “glomérulo”, nenhuma princesa “pelve renal” e os “ureteres” não eram escu­deiros com a incumbência de livrar a rainha das pressões dos seus inimigos. Ele ria e rolava. Eu repetia as palavras do livro com um jeito bufo, o que o deixava ainda mais alegre.

Infelizmente a alegria durou pouco. Juro que eu tentei evitar, mas talvez minha atenção com as camisas, minha leitura do livro de medicina e a sonolência sobre­posta tenham causado o estrago. Lucas sorrateiramente engatinhou em direção à mesa de passar. Eu o cuidava com o rabo do olho, enquanto lia uma página do livro. Ele continuava rindo e saracoteando, e resolveu ficar de pé, caindo logo em seguida, o que o deixava ainda mais lindo e desengonçado. Repousei o ferro elé­trico na mesa e fui pegar mais uma camisa para passar, enquanto aproveitava para folhear mais uma página.

Nesse milésimo de segundo é que as coisas acontecem. Bastam apenas frag­mentos de um instante para que tudo ocorra. Lucas ergueu-se sobre os joelhos e apontou seu minúsculo dedinho para o ferro que aguardava repousando na mesa. Já segurando a próxima camisa amassada nas mãos, ainda consegui antever o desastre, mas não a tempo de impedir que a ponta do seu pequenino indicador encontrasse o aparelho.

Foi muito rápido. Fiquei feliz por ter evitado um estrago maior, mas olhei a ponta de seu dedinho vermelho e me senti o pior pai do mundo. Incompetente, irrespon­sável. Lucas abriu seu inesgotável repertório de choros, que variava desde o berro incontido até o choramingar em voz baixa. E agora? Que fazer?

Resolvi desistir de tudo e cuidar do meu filho. Desliguei o agora “maldito” ferro elétrico e fiz da montanha de roupas o meu travesseiro. Olhei de novo para a pon­tinha do dedo e percebi uma pequenina bolha se formando por baixo da pele de seda. Agarrei Lucas nos braços e cochichei no seu ouvido:

— Desculpa, meu velho. Papai estava desatento. Mas agora precisamos os dois dormir, ok? Você para curar seu dedinho, e o papai para se recuperar do plantão, certo?

Lucas continuava choramingando, mas incrivelmente alguns minutos depois ele estava dormindo. Acordava de quando em vez, ao se lembrar do dedinho quei­mado, mas voltava a dormir, como papai mandou. Milagres acontecem.

Não lembro que nota eu tirei na prova, nem o que eu acabei fazendo com a pilha de roupas, mas aprendi algumas belas lições naquela manhã sonolenta. A mais importante é que filhos são sempre prioridade. Se pudesse voltar no tempo, não desperdiçaria nenhum instante de contato com os pequenos, porque tudo isso passa muito, muito rápido.

Lembrei-me de outra história, anterior a essa, ligada aos primeiros meses em que estive lidando com a tenebrosa tarefa de ser pai. Era uma questão relacionada com o sono das crianças. Esse assunto era tratado como um tabu na família da minha mulher: nunca se acordava alguém que estivesse dormindo. Suspeito que minha sogra achasse que uma criança — ou mesmo uma pessoa adulta — assim desperta de “supetão” poderia desfazer o fino laço que prende o corpo à alma flu­tuante, que estaria vagando livremente pelo éter, despregada da matéria. Fosse essa a justificativa ou não, a verdade é que acordar uma criança era visto como uma atitude de extremo desrespeito e grosseria.

Esse era o meu problema. Na época da faculdade, quando eu era jovem (século passado) e tinha muitos cabelos na cabeça, exageradamente sofri com o pro­blema do barulho com as crianças dormindo. Essa história de “silêncio, o nenê acabou de dormir” eu fui obrigado a escutar incontáveis vezes. Vezes demais. Achei que eu nunca poderia conversar com meu filho, ou mesmo escutar a sua voz se formando. Eu ficava terrivelmente bravo porque mal acabava de chegar em casa depois de 48 horas ininterruptas de plantão (às vezes 72) e meu filho Lucas estava dormindo profundamente. Pai ausente, pensava eu. Irresponsável. Se foi para deixar seu filho sem uma figura paterna, melhor seria nem tê-lo feito. Eu ia até sua cama só para olhar para ele e dizer alguma bobagem, tipo “chorou muito hoje?” ou “alguma novidade?” ou mesmo “e aí, meu… se borrando nas fraldas ainda?”. Ele tinha apenas seis meses, e pouco via o miserável progenitor, estu­dante de medicina e trabalhador de cinco diferentes patrões. Pois a história era sempre a mesma: eu chegava perto e sempre tinha uma sogra, uma cunhada ou outro tipo de “bruxa” pra me criticar. Não suportava mais a pressão e a culpa que tentavam me empurrar, apenas por querer participar um pouco da vida do meu pequeno e indefeso filho homem, cercado de mulheres por todos os lados.

“Fala baixo, seu trapalhão. Olha a pobre criança dormindo. Se ele acordar, quero ver você fazer ele dormir de novo.” E eu normalmente tinha que sair de perto, por­que as mulheres acham que só porque pariram são donas da cria e que os ho­mens de nada servem. Somos considerados inúteis. De nós aproveitam apenas o pobre espermatozoide, serelepe girino que, por enquanto, ainda nos confere al­guma importância neste planeta. Pura inveja. Só porque não conseguem fazer xixi de pé ficam nos espezinhando por toda a eternidade!

Pois um dia eu cheguei em casa, vindo de mais um mix de plantões com aulas na faculdade e recebi a mesma crítica injusta de sempre. “Para que caminhar desse jeito? Para que bater o pé assim no chão? Está tirando barro da sola? A criança pobrezinha (pobre, coitada, etc… sempre tem um adjetivo assim para as crianças) acabou de dormir. Dá para fechar essa boca, parar de caminhar e fazer silêncio?”

Dias sem ver meu filho e era assim que me recebiam? Queriam elas fazer de mim um capacho, um pano de chão? Haveria um fim para a arrogância feminina? Pois este era o meu limite. Fiquei uma fera. É hoje que eu faço uma loucura,pensei eu! Fui até o quarto onde o pequeno Lucas estava ressonando. Pobre criança (opsss). Teria que aguentar essa convenção de bruxas, megeras, tias chatas (ele tem nove tias!) e mesmo assim lutar com todas as suas forças para se tornar um homem de verdade. Ele precisava de uma imagem masculina forte, máscula, viril, altaneira. Olhei para os lados à procura de algo, ou alguém, e não vi nada que coubesse nesse conceito. É… vai ter que ser eu mesmo, pensei.

Munido de coragem, falei comigo mesmo, gritando com os meus botões da camisa amassada:

— Agora é que são elas! Elas vão ver como nós somos caras maus, bravos, des­temidos e corajosos!

Tirei os poucos lençóis que cobriam o frágil corpo de poucos meses do meu filho Lucas. Olhei para ele e disse baixinho no seu ouvido:

— Papai vai te levar para um passeio. Fique tranquilo. Aquelas megeras não vão te fazer mal.

Na sala, a mãe dele — bruxa-mor — jogava cartas com as irmãs e a mãe. A con­versa (conversa é modo de dizer; estavam fofocando e falando mal de mim, claro) ia solta, até que uma delas, a primeira que percebeu, soltou um grito.

— O que você pensa estar fazendo, seu louco? — gritou a cunhada, deixando as cartas caírem na mesa.

— Ficou maluco de vez? — vociferou minha mulher.

— Para com isso! Olha que eu chamo os vizinhos! — emendou minha sogra.

Enquanto isso eu sorria, exibindo meu troféu. Lucas continuava dormindo, sem se aperceber do que estava acontecendo.

Eu havia carregado meu filho pelo calcanhar direito e o levei assim suspenso atra­vés do quarto escuro até a sala, onde elas estavam a jogar cartas. Com os braços abertos e a perninha esticada, Lucas continuava dormindo, como um anjo, sem se perturbar, provavelmente sonhando com um mundo de ponta-cabeça, mais ou menos como está o nosso planeta hoje em dia.

— De hoje em diante, quero ver quem é que vai dizer que um simples barulhinho é capaz de acordar esse moleque! — disse eu, exibindo o meu troféu, para uma plateia de mulheres boquiabertas.

— Ok… ok, seu insano. Coloque a criança na cama e deixe-a dormir em paz. Chega de espetáculos — disse minha sogra.

Coloquei meu filho na cama e o cobri novamente. Ele nem se deu conta do pas­seio estranho que dera.

— Muito bem, meu filho. Você foi sensacional. Você é o garotão do papai! — disse eu, em uma conversa de homem para homem que eu nunca mais esqueceria.

Quando voltei para a sala, as mulheres continuavam seu jogo de cartas como se nada tivesse ocorrido. Minha cunhada Heloísa, para quebrar o gelo, me fitou com um sorriso e disse:

— Está cansado, cunhadinho? Estava movimentado o plantão? Quer que faça um cafezinho passado?

Nada como uma demonstração de macheza para deixar as mulheres derretidas.

Deixe um comentário

Arquivado em Capítulos Livro