Um debate curioso: mulheres de mais de 60 anos que se ofendem quando chamadas de (ou descritas como) “vovós”. Posso entender que isso pode ser ofensivo quando a mulher não tem filhos (portanto, em geral, sem netos), mas para mim é estranho que alguém se ofenda por ser chamado pelo nome que descreve o mais vitorioso de todos os sujeitos no critério “reprodução”, e na categoria “manutenção dos genes no pool planetário”.
Portanto, talvez antes de questionar a inadequação de chamar as pessoas mais velhas dessa forma seria interessante analisar porque nos dias de hoje isso é considerado ofensivo. Eu pergunto: por quê? Qual o demérito em ser vovô? Antes disso eu igualmente nunca tive problema algum em ser chamado de “tio”, e me orgulho dos meus 30 sobrinhos. Por que ser “vovô” parece ser visto por alguns como um defeito?
Assim, mantenho a pergunta: qual o problema em ser vovó ou vovô? Por que seria demeritório ser chamado dessa forma? No meu caso, a partir do dia que nasceu meu primeiro neto eu assumi a persona “Vovô Ric”, sem nenhum pudor (e eu tinha apenas 52 anos!), até porque o meu grande sonho na vida sempre foi ser avô. Igualmente quando eu me tornei pai não achava ofensivo ser chamado de “papai”.
Essa manifestação de desprezo aos vovôs não seria o real ageísmo?
Acredito que o sujeito que será um bom pai – ou um pai comprometido e amoroso – enviará sinais desde os primeiros momentos, ainda no processo de enamoramento, sob a forma de códigos, sinalizações, mensagens criptografadas, dicas e pistas esparsas, que aparecerão nos detalhes do comportamento e nos espaços de silêncio que separam as palavras. Podemos perceber na forma como fala das crianças, como as enxerga e como entende sua educação.
Se quiser saber que pai ele será, também pode ser de ajuda saber como foi a sua relação com os seus pais, as mágoas que ficaram, os traumas e temores. Dá para perceber a paternidade latente ao observar como lembra do seu próprio pai e como o trata na velhice; se perdoou suas falhas e erros e se tem ressentimentos e cicatrizes afetivas em relação à sua infância.
A paternidade já está inscrita nele através dos padrões que recebeu dos pais – em especial do pai, que será eternamente seu modelo. Por certo que não há como saber tudo, e acredito que existe a chance de haver surpresas – para o bem e para o mal – mas é possível ter uma boa noção de como ele se relaciona com a paternidade. Não é um tiro no escuro, ainda que a luz tênue que ilumina o traçado torne sua leitura um mapa de laboriosa decodificação.
Pela primeira vez em anos minha página do Facebook não foi inundada por agressões aos pais na passagem do seu dia. Minha fantasia – pouco provável – é de que as pessoas finalmente descobriram que em cada ano existem 364 dias para criticar a pequena porcentagem daqueles que não entenderam a paternidade como um dos elementos mais importantes na estrutura psíquica dos filhos, e apenas um único dia para homenagear e reconhecer a importância do pai na vida de qualquer sujeito.
Talvez a triste realidade seja apenas que estas pessoas há muito não frequentam meu Facebook e não convivem na pequena bola em que estou inserido. Atacar a paternidade – e também a maternidade – é ferir a todos nós que nos tornamos pais ou que somos filhos de alguém. Eu ainda prefiro acreditar que estamos deixando de ofender as figuras paternas porque aos poucos estamos percebendo que não é justo que todos paguem pelas experiências ruins de uma pequena minoria.
“George J. Jetson(nascido em 31 de julho de 2022) é um personagem fictício e pai da família Jetson, com 40 anos de idade e que vive no ano de 2062. Ele é o marido de Jane Jetson e pai de dois filhos: a filha adolescente Judy e o filho em idade escolar Elroy. Além disso a família possui uma empregada doméstica robô chamada Rose e um cão que se chama Astro.”
George Jetson tinha 40 anos e já era pai de uma filha adolescente. Aqui está uma coisa que os criadores da série não imaginavam: a queda na idade de início da paternidade. Nos dias de hoje um sujeito como ele teria uma criança de colo nos braços. Quantas pessoas de classe média vocês conhecem que tiveram filhos na terceira década de vida, dos 20 aos 30 anos – além de mim? Quais as repercussões que as sociedades experimentaram a partir dessa mudança radical na época de iniciar a vida reprodutiva, alargando em mais de uma década a adolescência?
Uma delas é evidente: a diminuição da relevância dos avós na cultura contemporânea, que deixaram de ser figuras presentes na vida e na educação dos netos para passarem a ser fotos nos álbuns de família e histórias contadas pelos filhos aos netos. As pessoas nos dias de hoje entram na “avozidade” depois dos 70 anos, na oitava década de vida. Com uma expectativa de vida que gira em torno dos 80 anos no ocidente criamos uma civilização cujos avós não conseguem acompanhar a adolescência dos netos, o que é uma perda brutal para ambos.
Sim, é verdade, eu não tenho nenhuma resposta a este dilema e também sequer sou capaz de oferecer uma proposta, mas acho necessário perceber o quanto nossa vida humana se afasta paulatinamente das regras do paleolítico superior, criando uma desajuste entre o que somos e a estrutura psíquica e física para a qual fomos criados.
De qualquer maneira, salve George!! Um dos primeiros heróis da TV (junto com Fred Flintstone, seu antípoda do tempo das cavernas) que mostrava uma típica família americana com a conformação clássica das séries que estariam por vir (Simpsons, Family Guy, Jeannie é um Gênio, A Feiticeira, A Familia Adams, A Família Dinossauro, etc.) onde os homens são atrapalhados, confusos, feios e tolos, e as mulheres são sempre bonitas, sensatas, espertas e ponderadas.
Circula na Internet um texto sobre paternidade escrito por um humorista da minha cidade que faz sucesso entre pessoas que conheço. Acho esse texto um brutal equívoco, mas…. na boa, perco até a vontade de explicar ao me dar conta que isso vai alertar as patrulhas, pois se trata de um texto nutrido pelo mais cristalino preconceito de classe.
Ok, devido aos pedidos incessantes, explico: o articulista, um humorista de rádio, deixa claro que a paternidade só deve ser exercida por aqueles que, como ele, usufruem de boas condições vida, que podem cuidar com atenção e denodo das suas crias. A condição de pai seria vedada ao proletário que carece (entre outras virtudes) de paciência porque suas condições de trabalho são estressantes, ou que precisa dormir aos domingos para recuperar energias gastas durante a semana de trabalho incessante. Para ele a paternidade deve ser garantida apenas àqueles que têm as condições características da burguesia: tempo, dinheiro, disposição, saúde e educação.
Não passa pela cabeça desses “formadores de opinião” que é necessário que as condições sociais melhorarem para todos, para que não seja necessário arbitrar quem pode e quem não pode exercer o direito sagrado de ser pai ou mãe. Sua manifestação parte de uma divisão social estanque, fixa, pétrea, onde os estratos sociais determinariam quem poderia exercer direitos humanos básicos. Como a paternidade.
Mais ainda, o texto coloca a culpa nas pessoas que não tem tempo, estão cansadas, esgotadas, sobrecarregadas, impacientes, neuróticas e angustiadas, ao invés de olhar para o contexto massacrante em que suas vidas estão inseridas. Isso me lembra, com tristeza, o velho papo da burguesia que reclama o fato de que pobres, deseducados e ignorantes também tem (pasmem!!!) o direito de votar.
Quando meus filhos eram pequenos eu também era muito jovem; antes que eu chegasse nos 30 ambos já eram alfabetizados. Agora, observando as brincadeiras dos meus netos, descubro que o mundo deles é baseado na produção de regras e limites. Qualquer jogo ou disputa é precedida de um extenso desfiar de regras, do que pode ou não pode, do que é lícito e o que é proibido.
“Vamos fazer que a gente era transformers, mas tu não pode me atacar e só pode usar as armas comuns, e eu posso usar esses poderes aqui”. Eu fico encantado com esses diálogos pois eles são a encenação lúdica dos dilemas angustiantes que carregam em sua adaptação ao mundo. Tudo depende se pode, se foi combinado, se vale, se deixam, etc. É com o eles enxergam o mundo: um lugar cheio de interdições civilizatórias chatas e incômodas.
Na minha juventude eu fui esmagado pelo peso torturante das ideias, algo que me envolveu de forma completa e onde me joguei de maneira compulsiva. Não tive tempo e/ou sabedoria para saborear essas lições maravilhosas com meus filhos, pelo menos não o quanto deveria. Hoje, já consigo parar e escutar dos meus netos a beleza destes encontros, saboreando a dor e a delícia que vivenciam enquanto crescem.
Quero ter saúde só para curtir essas maravilhas mais um pouco…
Se o pai é importante, abandono paterno faz sentido e deve ser combatido, para proteger a criança dessa falta. Todos os esforços devem ser feitos para que os pequenos tenham o direito de conectar-se com o pai, entendendo-se a paternidade como uma função essencial na infância e a relação do pai com seus filhos considerada parte dos seus direitos fundamentais.
Todavia, se o pai é tratado como descartável, desimportante e supérfluo então deixem os homens em paz na sua falta de conexão com os filhos. Cobrem na justiça a pensão e fechem a conta. Se as mulheres são tão autossuficientes assim, então não há razão para se preocupar com os pais e suas ausências.
Em suma: Não dá para cobrar presença paterna e chamar os pais de inúteis ao mesmo tempo.
Nesse debate eu fico com o velhinho de Freiburg, tio Sig: “Não me cabe conceber nenhuma necessidade tão importante durante a infância de uma pessoa do que a necessidade de sentir-se protegida por um pai”.
A frase dita pelo pai da psicanálise, expressa um sentimento que supera a lacuna de gerações, mantendo-se relevante muito após a época em que foi expressa. E não esqueçam que o abandono paterno é mais um efeito nocivo do capitalismo.
Pai não é essencial, mas nem mãe é… entretanto, eles são de extrema importância para a construção da estrutura psíquica do sujeito. Outra do Sig: “A maior função de uma mulher é ensinar seu filho a amar, enquanto isso, a maior função de um pai é salvar esta criança das garras do amor materno”. Sem essas figuras a criança buscará alhures alguém para lhe ensinar o amor e, mais ainda, alguém que imponha a este amor primitivo seu necessário limite.
Hoje era o dia de juntar os netos e ir na casa dele escutar histórias, trocar abraços e ouvir os comentários mais variados sobre – literalmente – qualquer coisa. Este domingo está feliz pelos abraços que recebo, e triste pelos que já não posso mais dar. Hoje é o primeiro “dia dos pais” em que ele não está entre nós; a primeira vez que não tenho meu pai para abraçar.
Tive a oportunidade rara de alcançar o meu pai na corrida do tempo; quando ele morreu ambos já éramos velhos, e pude “trocar figurinhas” com ele sobre o que nós dois sentíamos com o aconchego da velhice a nos envolver com seus braços gelados. Muito do que sei sobre ser velho aprendi com seus conselhos e seu humor sobre a “melhor idade”. Hoje ele me deixa sozinho nessa trilha, e não tenho mais sua experiência para me contar como serão os dias que me restam.
Uma das últimas coisas que ele me disse, quando sua marcante lucidez já estava muito distante, foi uma de suas observações sarcásticas características. Durante sua estadia no hospital eu me aproximei do seu ouvido e disse: “Oi pai, sou eu, Ricardo. Lembra de mim? Sou o seu filho mais bonito”. Ele abriu os olhos, ajeitou o corpo na cama do hospital e disse: “Meu Deus, como você está velho!”.
Olhou firme da minha face e demos uma breve risada. Depois aprofundou-se em seu sono, esperando apenas o momento exato para mergulhar na dimensão desconhecida que o aguardava. Espero que ele esteja bem, e que mantenha para toda a eternidade o humor, a elegância, o charme, a fidelidade aos seus princípios e o amor que sempre direcionou à sua família. Por certo que minha mãe vai cuidar para que mantenha-se na linha.
Em breve serei eu. Percebo a cada dia que passa a proximidade da minha morte, como alguém que sente o frio do inverno se aproximando nas primeiras brisas do outono. Hoje mesmo perguntei ao meu neto Oliver se eu poderia conhecer o filho dele quando nascesse. Oliver disse que não sabe se vai ser pai, talvez com medo da responsabilidade de ser tão bom nessa tarefa quanto seu pai e seu bisavô. Espero ter essa oportunidade cada vez mais rara em um mundo onde as funções parentais perdem valor diante do individualismo que nos cerca.
Ao meu pai deixo o agradecimento de mostrar a mim a grandeza dessa tarefa, construção recente na história da humanidade, mas que oferece às crianças um suporte firme e seguro para alcançar seus mais nobres objetivos.
Eu passei a melhor parte da minha vida observando a transição das mulheres – em menor intensidade também a dos homens – em direção à maturidade, como mães e pais. O parto, como corte brutal na percepção egoística do mundo, nos joga de forma mais ou menos intensa nas agruras da insegurança e da tarefa de cuidar dos que chegam. Todavia, ainda me surpreendo com a velocidade com a qual essa transformação ocorre. Muitas vezes fiquei espantado ao falar com pacientes apenas algumas semanas após o parto quando já era possível perceber – na forma como se posicionavam diante dos temas – as mudanças de perspectivas, de ênfases e de posturas. É como se a partir do parto fosse aberto um portal pelo qual a realidade ampliada pelo fórceps da experiência lhes permitisse enxergar o mundo de forma mais alargada.
O malho da dor aguda, da espera e da angústia produz a transformação, que será tanto mais intensa e profunda quando maior forem os significados depositados sobre ela. Por isso continuo a achar que a experiência da maternidade e da paternidade são dores e angústias que valem a pena ultrapassar. Por certo que saímos um pouco menos piores, menos arrogantes e mais humildes depois de termos a carne triturada na passagem por este purgatório de êxtase e lágrimas.
Além disso, tais experiências pelo vale da paternidade e da maternidade nos permitem olhar os próprios pais com mais condescendência. Fico feliz de estar vivo para ver meus filhos passando por esta transição.
Ele chega cabisbaixo, choramingando e visivelmente irritado.
O Pedro está me chamando de burro!!
Saia de perto do seu irmão, António.
Mas ele me chamou de burro e feio…
Você não deve brincar com ele agora. Qual sua dúvida?
Mas eu não quero que ele me chame assim!!!
Nesta cena banal e corriqueira se encerra uma escolha essencial entre duas abordagens pedagógicas, e quem já teve filhos pequenos poderá entender bem qual é. Pedro, nessa história é o protagonista, mesmo fora da cena. Ele inseriu o fato novo, a acusação, a provocação. Antonio reage e se coloca na defensiva. Procura um juiz para interceder. Existem duas possibilidades. Uma exógena e outra endógena.
A opção “exógena” faz você sair do que está fazendo e tratar a acusação em si. Chama Pedro, lhe dá um “pito”, diz para não chamar seu irmão assim, coloca-o de castigo. Todavia, esta estratégia exalta o fato, valoriza-o, empodera a acusação e aceita o protagonismo de Pedro. A tentação de “inticar” com o irmão, fazer tudo de novo e voltar a ser o centro das atenções é, via de regra, irresistível. Pedro, depois de tanta exaltação, voltará a ser protagonista
A opção “endógena” é muito mais difícil, complexa e custosa, e só pode ser feita quando as crianças já têm algum tipo de maturidade. Ela se baseia em refutar a acusação, desmerecer a ofensa e retirar Pedro de sua posição de protagonismo. Ao invés de uma atitude protetiva para António – que o coloca na confortável posição de vítima – a abordagem será desmerecer as acusações, tratando-as como sendo carentes de sentido. Com isso, Pedro deixa de ser o centro das atenções, sua fala perde valor e sentido e o processo de resolução vai ocorrer endogenamente, no reforço da auto estima de António.
O Pedro está me chamando de burro
Você não é burro, António.
Mas ele me chamou de burro e feio.
Você não é nenhum dos dois. É lindo e esperto. Qual sua dúvida sobre isso?
Mas eu não quero que ele me chame assim!!
E você vai dar atenção ao que os outros dizem ou vai acreditar no que você mesmo sabe?
A questão é que esta matriz de reação se mantém durante toda a vida, em especial durante a vida adulta, quando continuamos nos posicionando diante dessas escolhas. Por certo que o modelo exógeno é o único que temos quando somos muito pequenos e precisamos da proteção alheia. Já o modelo endógeno se inicia quando somos capazes de reforçar nossas próprias capacidades ao invés de depender do suporte dos outros.
Quando vejo reações defensivas aos ataques do “outro lado”, seja ele qual for, meu primeiro pensamento é “humm, sentiu o golpe“. A defesa de si mesmo, ou de suas ideias, diante de qualquer ataque demonstra essencialmente fragilidade e falta de confiança. É o menino que corre para a mãe ou o pai quando chamado de “feio”. O que ele pede é um abraço e alguém que lhe afirme suas qualidades, quando ele mesmo se sente impotente para isso isso.
Assim, o modelo “exógeno” funcionará em curto prazo e para quem está – ou é – muito frágil, mas o modelo “endógeno” será sempre mais efetivo para estabelecer o crescimento e a autoestima, seja de sujeitos, ideias, projetos ou revoluções.