Esta história sempre me ocorre quando me falam dos anjos, dos milagres e das circunstâncias em que eles ocorrem.
Há muitos anos atrás fui convidado para uma festa de aniversário. Não sou muito chegado a estas comemorações, mas como se tratava do primeiro ano de vida de um bebê de uma querida amiga, aceitei de bom grado. Seria a oportunidade de encontrar pessoas diferentes e escutar o que elas têm para contar.
Pois nesta festa de aniversário ao me servir de cerveja ofereci para completar a copo do rapaz que estava ao meu lado, o qual não conhecia. Só depois vim a saber que se tratava de um amigo de longa data da mãe do aniversariante. Quando mostrei a intenção de despejar a cerveja no seu copo ele fez um sinal de “não” com a mão espalmada à frente, e junto com a mulher ao seu lado sorriram e se olharam, como se por trás deste gesto houvesse uma piada interna, que só eles entendiam.
Fiquei um pouco desconcertado, e ri apenas para acompanhar o humor do casal.
Vendo que eu estava intrigado, ele educadamente me explicou a razão do sorriso que ambos compartilharam, e nos minutos que se seguiram ele me contou uma história fabulosa, dessas que ficam na cabeça da gente e não esquecemos jamais.
– Eu não bebo, obrigado, disse ele. Parei há muitos anos, graças a um anjo que Deus colocou na minha vida.
Olhei imediatamente para a loira de traços formosos ao seu lado, mas ele me interrompeu.
– Não, por favor. Não se trata deste anjo. Foi bem antes de conhecê-la. Foi um anjo menos formoso.
– Muito menos, emendou ela.
Minha curiosidade só aumentava, e se ele não continuasse com seu relato eu seria obrigado a lhe implorar. Ele se aprumou na cadeira e resolveu me contar a história de sua decisão de não mais beber. Uma história que me fez pensar nos caminhos tortuosos que empreendemos em direção ao crescimento. Ou ainda, as lições que a vida nos dá e da necessidade de estarmos preparados para recebê-las.
– Bem, eu parei de beber há 10 anos, disse ele. E eu bebia muito. Muito mesmo. Frequentava festas e bailes e só parava de beber quando o dia amanhecia. Era absolutamente inconsequente e irresponsável com a bebida, mas infelizmente não tinha forças para lutar contra isso.
– Minha vida era uma sequência de bebedeiras, continuou ele. Incontáveis incidentes constrangedores, inúmeros vexames. Mais de uma vez fui acordado por um policial quando me encontrava dormindo ao volante parado em um cruzamento. Sim… eu pegava no sono no pequeno espaço de tempo que separava o sinal vermelho do verde.
O rapaz ao meu lado continuou a me contar uma triste série de ocorrências que colorem com tintas lúgubres a vida de qualquer alcoolista.
– Mas eu sempre achava que poderia parar quando quisesse, compreende? Eu achava que algum dia Deus me mandaria um anjo que me abriria os olhos, para que eu pudesse enxergar o que eu estava fazendo com a minha vida, que se desfazia em minhas mãos como um sorvete ao sol.
– E Deus mandou, disse a mulher ao seu lado, com um sorriso…
– Sim, continuou. Num sábado à noite. No baile que eu sempre frequentava. Eu já havia bebido todas, já havia vomitado, já havia feitos os vexames habituais, já tinha me indisposto com os seguranças. O normal dos sábados de festa.
– Foi então que eu resolvi tirar uma linda mulher para dançar. Ela talvez não tenha visto o quão embriagado eu estava, ou talvez não quisesse parecer antipática. Por uma razão ou por outra aceitou o convite e fomos para a pista. Lá chegando eu devo ter dançado talvez uns poucos minutos, e aí a minha memória se embaralha. As coisas parecem enevoadas, os fatos se misturam às emoções. Palavras se confundem, ficam quebradas ou torcidas. É difícil reconstituir tudo o que aconteceu.
Mas, foi neste instante que o meu anjo apareceu…
A face do meu amigo se fechou. As sobrancelhas se arquearam para baixo. Sua voz ficou mais pausada e densa.
– Gigantesco, é o que diz a minha réstia de lembrança. O anjo prateado que eu tanto pedi me fosse enviado puxou-me pelo ombro e desferiu um golpe certeiro no meu rosto, quebrando de forma instantânea uma fileira inteira de dentes, partindo a minha mandíbula em dois, transformando meu rosto em uma maçaroca de sangue, ossos partidos e álcool.
Meu anjo salvador era o noivo da moça com quem eu estava dançando.
Acordei uma semana depois. Havia realizado várias cirurgias de reconstrução da face. Perdi todos os dentes inferiores do lado esquerdo. Por meses usei um aparelho para fixar a mandíbula. Perdi 20 quilos, por não poder comer, a não ser sopas e sorvetes. Perdi meu emprego, mas acho que eles apenas estavam esperando alguma razão para me demitir e quando retornei da licença médica fui logo informado do meu desligamento.
Mas… aquele baile de sábado à noite foi a última vez na vida que eu bebi. Aquela tragédia, que poderia ter sido pior ainda, me fez descer ao poço da minha vida. Finalmente, através da dor e da vergonha, eu pude enxergar com clareza para onde a bebida estava me conduzindo. Mais do que as dores físicas, o fracasso e a vergonha me corroíam o espírito. Foi apenas depois de atingir o fundo é que meus pés puderam realizar o movimento de volta, de retorno à superfície. Eu agi como o “pescador de pérolas”, que só consegue o impulso para subir após tocar o leito do mar.
Nunca mais toquei em uma bebida. Sei que ainda sou um alcoolista, mas não sofro mais pelo meu vício. Aquela noite selou o meu futuro.
Eu sabia que Deus um dia ia ouvir minhas preces.
Encontrei meu anjo agressor por acaso em uma churrascaria, alguns anos depois. Nunca pensei em processá-lo, apesar de ele ser muito rico e dono de uma rede de casas noturnas. Ele se aproximou de mim e pediu desculpas. Disse que não se imaginava tão forte e que não pretendia me machucar tanto. Ficou sabendo por amigos do que havia acontecido comigo, mas não teve coragem de me visitar no hospital. Disse que eu não devia ter “passado a mão” na noiva dele, que inclusive era a sua atual esposa. Só naquele momento me dei conta que eu estava tão bêbado que nem notei como devia estar abusado.
Eu olhei para ele e disse:
– Pois você em imagina como aquele momento foi transformador para mim. Por mais maluco que isso possa parecer, eu queria lhe agradecer. Você salvou a minha vida. O grandalhão, obviamente, achou que eu estivesse debochando, mas meu sorriso era tão sincero que foi obrigado a acreditar. Levantei-me da cadeira e lhe dei um abraço. Ele sorriu sem jeito, despediu-se e nunca mais o vi.
Os anjos desaparecem depois dos milagres, pensei eu…
– Mas Deus, na sua bondade, concluiu ele, ainda tinha mais um anjo para colocar em minha vida.
Aí a linda loira sentada ao seu lado levantou-se e disse “Se dessa vez não for eu, vai levar porrada !!!“
E caíram na gargalhada…
Lembro desta história e fico pensando: será possível – mesmo com um bocado de esforço – suplantar as questões mundanas e observar as dores, os sofrimentos e mesmo os martírios de um plano mais elevado?
As vezes eu penso nas pedras com as quais nos deparamos no nosso caminho desta forma meio bizarra. Não fosse aquela pedra que me jogou ao chão talvez eu jamais soubesse o valor do equilíbrio. Não fosse aquela injustiça que sofri eu jamais entenderia o valor de ser justo. Não fosse a ofensa contra mim disparada eu nunca compreenderia o valor da serenidade. Não fossem os meus detratores e eu jamais aprenderia o que sei hoje.
Não estou descriminalizando as atitudes de quem quer que seja: elas continuam equivocadas. Não se trata disso, até porque perdoar não é o mesmo que absolver. Perdoar é acima de tudo entender o outro, e colocar-se no seu lugar. Perdoar é olhar o outro como se estivesse olhando a si mesmo.
Portanto, eu creio ser possível agradecer mesmo àqueles que nos fizeram mal pois, mesmo que por linhas tortas e através dos seus próprios erros, eles ajudam a consolidar a pessoa que somos. Eles podem ser os anjos que tanto pedimos, mas para que eles nos auxiliem precisamos estar preparados para aprender as lições.
Mesmo as mais duras.
Martin Diaz Molina, “Cuentos de la Noche Fria”, Ed. Alzugaray, pág. 135
Martin Diaz Molina é um escritor espanhol nascido em Almería, em 1975. Escreve basicamente contos e histórias curtas, tendo sido premiado em vários concursos literários, como o “Premio Literário Jovem Andaluz”. Dedicou-se à literatura infantil e ao desenho até que lançou seu primeiro livro de contos adultos, com histórias na primeira pessoa que recolheu durante a sua vida na Espanha. Além de contista, Martin é professor de literatura e é representante distrital pelo partido “Podemos”. É casado com Amália Sotero e tem dois filhos, Javier e Edoardo.