Havia uma espera curiosa por Josué. Sabia-se que vinha cercado da mesma mística que envolvera a chegada do seu irmão. O mesmo sonho, a mesma estrada, a mesma luz seguida da mesma voz. “Estejam preparados para a chegada de Josué“, disse a voz do locutor. O sonho se desfez na poeira do despertar, mas deixou como marca onírica a memória das palavras, a cena em reprise, o caminhar dos meninos lado a lado em câmera lenta, a certeza inquestionável; não poderia haver engano. Já adaptado ao fato de ter dois meninos imaginava a repetição da história familiar: um irmão mais velho ao qual se segue um mais novo e quem mais vier. Amigos, companheiros, inimigos, adversários, parceiros e por fim adultos e independentes. Eu conseguia ver minha vida de pai como uma reprodução do mundo que eu conhecia bem, o universo dos meninos, com suas dúvidas, angústias e poderes.
Pois no dia que abria o dezembro, na derradeira etapa da minha vida estudantil, as contrações se iniciaram. O último plantão como doutorando me garantiu a presença no hospital. Perfect timing, diria. Por uma coincidência também lá estavam o pediatra, o tio médico e a obstetra escolhida. As lições da gestação anterior foram bem aprendidas, e a chegada de Zeza Jones ao hospital foi a mais tardia possível. Oito centímetros que já davam por bem encaminhada a chegada do bebê. Ainda houve tempo para algumas iatrogenias, intervenções e “verboses” por parte dos participantes, mas nada que fosse capaz, àquela altura do processo, de impedir o nascimento. Nada impediria que o parto ocorresse da forma como planejado.
Quando o relógio bateu 1 hora da manhã a música “Escrito nas Estrelas” surgiu no sistema de som do hospital, fazendo com que os trinados agudos de Tetê Espíndola se misturassem à guturalidade expressiva dos últimos vagidos. Os sons mixados anunciavam a chegada do bebê tão esperado.
Sim, não havia uma confirmação do sexo do bebê. Em meados dos anos 80 as ecografias eram apenas artefatos tecnológicos surpreendentes, caros e reservados apenas aos mais afortunados. Suas imagens eram grotescas, chuviscos descoordenados e enigmáticos, mas que descortinavam a “era da imagem”, a devassa impiedosa da intimidade fetal. Para mim, jovem estudante despedindo-se do curso, não havia sentido para realizá-las e cortar a surpresa de um parto, até porque as pessoas não bombardeavam as gestantes com as perguntas chavão de hoje em dia: “Já marcou a data?” ou “menino ou menina”? No passado, nem tão distante, os partos seriam todos normais, “como mandava a natureza“, dizíamos. Mesmo que nossas cesarianas já contemplassem 25% dos nascimentos, ainda era com essa naturalidade que enxergávamos os partos, e “menino ou menina” era um assunto que interessava apenas aos apostadores e adivinhadores de parto. Para mim, bastava o sonho vívido e a certeza que suas imagens impregnaram em minha memória.
Os gritos se tornaram mais forte e frequentes, misturados pelo barulho de equipamentos e o ruído atrapalhado e estridente das enfermeiras e médicos. E eu menino, perdido no labirinto de vozes e sombras. Era tudo muito verde e prata, muito confuso. A luz brilhava demais, a sombra escondia tudo. Vultos percorriam a pequena sala, preenchendo de ansiedade os espaços. E o silêncio entrecortado pelo mantra obstétrico: “força, força comprida, não para, não para”.
Quando chegou o momento de brotar a vida o meu mundo se congelou entre duas batidas de coração. Tetê para de cantar e aguarda em reverência o som por todos esperado. E ele vem, expelido com forças pelos pulmões úmidos que pela primeira vez apreendiam a secura do ar.
E então…. a falta, a ausência inexplicável. A surpresa misturada de vermelho, branco, verde e prata. Os olhos não acreditavam, a mente sofreu uma reviravolta.
– É menina!!
Foi tudo o que pude dizer. “Minha cabeça rodava, rodava mais do que os casais o seu perfume gardênia, e não me perguntes mais…“
O meu mundo agora seria completamente diverso daquele para o qual eu me preparara. Ao invés de uma vida centrada nas identificações testosterônicas, o universo me preparara para lidar com o vazio do feminino. O espaço que se abria para a compreensão do insuspeitado. E o medo, sorrateiro e zombeteiro, que me obrigava a perguntar: “E agora, o que fazer?”
Josué morria ali, com suas previsibilidades, dando espaço para Isabel Cristina, com seus desafios e suas perguntas sem resposta. Agora me cabia cuidar, zelar, compreender, respeitar o diferente, o diverso, o misterioso. Olhar com ternura para algo que a natureza me oferecera como gracejo, mas que podia ser minha maior lição.
Hoje, a cena do seu nascimento completa 30 anos. Costumo dizer que o nascimento de minha filha, pela surpresa e pelo inesperado, foi o maior presente que eu poderia receber do Universo, mesmo que isso significasse rever a infalibilidade dos meus sonhos premonitórios. De Josué guardo a esperança que não fique magoado, e reconheça que a existência de minha filha foi um dos elementos fundamentais que fizeram aquele menino acanhado na sala de parto se tornar um homem.