Logo após me formar fui trabalhar como médico no hospital da Aeronáutica. Lá implantei um sistema de redução de cesarianas muito simples e prático e que deu muito certo no tempo em que lá trabalhei. Descrevi isso no livro da Robbie – “Birth Models that Work”. Ok, mas isso é outra história. Pois, como eu estava dizendo, eu trabalhava apenas meio turno no hospital da Aeronáutica e, por esta razão, comecei a atender em uma Policlínica, que aqui nós apelidávamos de “trambiclínicas“.
Estas são (ou eram) clínicas privadas que fazem contrato com empresas para oferecer assistência aos seus funcionários em atendimentos de ambulatório e hospital. A regra era a mesma de qualquer negócio: minimizar despesas e maximizar lucros. O pagamento aos médicos era ridículo; só recém formados se dignavam a atender lá, como forma de adquirir experiência e ajudar a pagar a prestação do fusca. A rotatividade era alta; quase nunca as pacientes completavam um tratamento com o mesmo profissional.
A policlínica nem existe mais. Aliás, quase todas elas foram tragadas pelos convênios médicos. Afinal, por que pagar pelas instalações de uma clínica se você pode usar o consultório do próprio médico para realizar as consultas? Ele que arque com as despesas para mantê-lo – secretária, impostos, água, luz, etc. Bingo!! Uma forma de terceirizar despesas e manter os ganhos.
Nessa empresa a fonte principal de recursos era a Pirelli, empresa de pneus de uma cidade próxima. Era esse o contrato que sustentava a clínica, e por isso todo o cuidado era dado a ele.
Certa vez atendi uma paciente por esta policlínica que acabou fazendo uma cesariana. No dia seguinte ao nascimento do bebê recebi uma mensagem no BIP (sim, sou velho nesse nível) pedindo para ligar para a direção da policlínica. Liguei e fui atendido pela secretária do “chefe” que, justiça seja feita, não era médico, mas administrador de empresas.
– Dr. Fulano disse para o senhor dar alta para a paciente.
Pedi para repetir porque não entendi direito a mensagem e ela voltou a dizer exatamente a mesma frase. Perguntei a razão e ela explicou que “esse convênio da Pirelli custa muito caro para a policlínica, e não tem como ficar mais de dois dias”.
Expliquei que uma alta é responsabilidade apenas do médico que presta o atendimento e que um administrador não pode determinar isso por conta de fatores econômicos. Ela insistiu e disse que eram “ordens do chefe”.
Eu disse a ela, então, que ele próprio me ligasse ou viesse me falar isso pessoalmente. Ela desligou o telefone e ele jamais veio tratar do assunto comigo. A paciente teve alta no dia correto e eu pedi demissão na semana seguinte.
O caso da Prevent Senior (os kits de Covid distribuídos sem o consentimento de pacientes) só causa surpresa em quem não conhece a tragédia que é transformar saúde e acesso à medicina em um negócio lucrativo. Não tenho nenhuma dúvida que histórias banais como esta estão na memória de muitos médicos que transitaram por estes caminhos. Medicina e lucro são coisas que jamais deveriam se misturar. Saúde é um direito humano, não algo que pode – ou não – ser comprado por quem padece por uma doença.