Espíritos da Luz

O espiritismo versão tupiniquim costuma disseminar uma perspectiva de “classes espirituais”, que muito se assemelha as castas indianas, com seus limites rígidos, hierarquias e diferenças morais. Cresci ouvindo as expressões “espíritos de luz”, “espíritos do bem”, “espíritos zombeteiros” (meu caso), “espíritos do mal”, “espíritos inferiores”, “espíritos das trevas”, “espíritos do Umbral”, etc., sem jamais entender exatamente como se configuraria esta estratificação espiritual.

Sabe por que os espiritualistas descrevem o mundo espiritual como sendo constituído por classes distintas – que vão das angelicais às trevosas – colocando um fosso gigantesco entra os “espíritos de luz” e os pobres coitados “espíritos do mal”? Porque na verdade é dessa forma que se estrutura ESSE mundo terreno. Para todos que olham para o mundo através de uma ótica moralista, existem diferenças de elevação espiritual entre os sujeitos deste mundo, fazendo-os pertencerem a classes distintas, as quais carregam como um rótulo. Infelizmente, não se dão conta que o que é percebido a olho desarmado é tão somente a face externa do caráter de qualquer um; a máscara cotidiana que usamos para viver em sociedade.

Nada que aparece à luz do dia é verdadeiro, mas um simulacro do verdadeiro eu que nos constitui. Desta forma criamos a fantasia de um mundo espiritual estratificado, cheio de lugares remotos, de “pouca densidade”, de luz esfuziante e alegria contagiante, em contraponto aos lugares tenebrosos, escuros e densos das “regiões umbralinas“. Esta poderia ser a exata descrição da nossa sociedade; enquanto algumas regiões são repletas de criminalidade, outras nos oferecem a sensação plena de paz e segurança.
A questão é que nossas diferenças muito pouco se relacionam a questões morais, e estão embasadas na arquitetura social, a qual se relaciona com o modelo capitalista e seu sistema de classes. As diferenças contextuais e econômicas explicam de maneira muito mais simples a diversidade entre os sujeitos.

Desta forma, como no mundo espiritual seria difícil imaginar uma sociedade capitalista, a necessidade de manter a divisão artificial em classes se impõe através do artifício da hierarquia moral. Duvido muito que este seja o modelo mais próximo da realidade. Apagados os condicionantes sociais da Terra – família, pobreza, contextos, dificuldades, oportunidades, etc – o que sobra são espíritos muito semelhantes, e não haveria razão alguma para que não estivessem próximos, compartilhando o mesmo céu – ou inferno.

Parto da ideia de que, se houver algum mundo espiritual, ele deverá ser muito parecido com este aqui. Afinal, seríamos tão somente a imagem imperfeita do mundo dos espíritos, nada mais justo que estes planos fossem semelhantes. Desta forma, eu me permito expandir a pergunta: quem entre nós seria considerado um “espírito de luz”?

Madre Teresa? Papa Francisco? Dona Manuela, que criou 7 filhos sozinha? Seu Francisco, bombeiro herói que salvou uma família inteira de um incêndio? Padres? Espíritas? Chico Xavier? Médicos devotados, enfermeiras carinhosas, pessoas sem “maldade” no coração? Pobres e oprimidos? Mártires cristãos? Vou além: o que é um “cidadão de bem”? Seria Jesus considerado um cidadão de bem no seu tempo? Seria São Francisco igualmente um cidadão exemplar? Mandela? Martin Luther King? Bem sabemos como os nossos “cidadãos de bem” contemporâneos têm seus armários lotados de esqueletos. Seria possível existir um critério objetivo para classificar a moral das pessoas? Quantas santidades, por nós consideradas ilibadas, não escondem máculas morais terríveis, muitas das quais jamais saberemos? Quantos criminosos não tiveram – até ao cometer seus crimes – a mais pura das intenções, desejando apenas ajudar, mas de uma forma equivocada e incorreta – que só depois descobrimos?

Quando eu vejo personalidades espíritas falando das “hordas do mal” parece que estou vendo as antigas pregações anticomunistas da minha juventude. Pior, essa perspectiva sempre nos coloca do lado dos espíritos do bem, ou dos “cidadãos de bem”, e jamais do lado daqueles a quem consideramos “do mal”.

No fundo eu acredito mesmo no que o amigo Max sempre me dizia: “Se um viajante interplanetário chegasse à Terra ficaria muito mais impressionado com nossas semelhanças do que com nossas diferenças”. A distância entre o gênio e o tolo é muito mais circunstancial do que das essências. No mundo espiritual não pode ser muito distinto: as pessoas serão muito semelhantes entre si enquanto suas diferenças se diluem na gritante similitude de virtudes e defeitos que nos unem.

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