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O Voo

O apartamento onde morei até completar 6 anos – quando nos mudamos do “interior” para a capital – tinha uma característica comum aos prédios dos anos 40 e 50 do século passado. Ao invés de um toldo sobre portas e janelas, havia uma marquise que oferecia proteção tanto para a chuva quanto para o sol que protegia o apartamento térreo. A janela de frente do primeiro piso era do quarto das crianças. Ali, eu e meus irmãos, fazíamos as primeiras bagunças, mal saídos das fraldas. Foi neste contexto que ocorreu um fato que se tornou marcante na minha vida. Uma oportunidade, quando tinha não mais do que 5 anos, minha mãe me colocou de castigo no quarto, devido a uma pequena desavença com meus irmãos. Vá saber qual a travessura possível para uma criança dessa idade. Entretanto, poucos minutos foram cumpridos nesse cativeiro. Há muito tempo que eu vinha arquitetando um plano, e aquele parecia ser o momento ideal para a realização do grande desafio. Durante muito tempo eu desenvolvi a ideia de que era possível sair do meu quarto pela janela, ao invés da porta. Sim, para uma criança de apenas 5 anos não poderia ser uma ponderação muito elaborada. Lembro de olhar da rua a janela do meu quarto e imaginar que seria fácil sair por ali. Estimulado pela oportunidade do castigo, abri a janela com meus dedos gordinhos e curtos e, sem muito esforço, pulei para a marquise logo abaixo.

Chegar até aqui é que demanda coragem; até o chão é apenas mais um salto. Não tema. Vai dar tudo certo. Meus pensamentos reforçavam meu desejo de levar minha aventura até as últimas consequências.

Cale-se, irresponsável! gritou minha consciência. Você tem apenas 5 anos! A distância até o chão é mais do que o triplo do que você tem de altura. Você não enxerga o quanto de risco existe aqui?

Dei um passo adiante e mirei a calçada de grés logo abaixo. É muito mais alto visto de cima; era evidente o quanto a visão de baixo havia me dado uma falsa perspectiva da altura. Os carros, as pedras, o vão mal recortado das lajes, tudo estava muito mais distante do planejado. Enquanto elaborava meu plano, sentei na beirada e balancei as pernas, muito mais para me acalmar e ganhar tempo do que para avaliar a distância que me separava do solo. Talvez, se eu esperasse mais um pouco, minha mãe voltaria para me resgatar. Segurei as alças dos suspensórios que seguravam meu short marrom, respirei fundo e olhei para a quadra de futebol do clube em frente à nossa casa. Minha mãe devia estar cantarolando uma canção de Chico Alves enquanto secava a louça na cozinha. Ela não virá, pensei. Não adianta adiar muito; é necessário tomar a decisão: voltar para o quarto humilhado e fracassado ou embarcar na maior aventura imaginável para uma cabecinha de 5 anos.

Meu espírito aventureiro sorriu; meu instinto de autopreservação colocou as mãos na cabeça e a sacudiu de um lado para outro. Apesar da contrariedade entre ambos, eles já sabiam que a decisão havia sido tomada em meu pequeno coração de menino. Ajeitei meu corpo para frente e olhei para a janela uma última vez. Despedi-me de suas frestas por onde me acostumei olhar a rua mesmo durante a noite, quando minha mãe me mandava dormir. O movimento seguinte era óbvio. Virei-me de costas para a rua, ajoelhado na beirada, coloquei as pernas para baixo e estiquei lentamente o corpo, ficando preso apenas pela barriga. Joguei meu corpinho para um lado ao outro, balançando as pernas penduradas. Passados alguns poucos segundos e eu fiquei preso à pedra fria da marquise apenas pelas mãos. Meus dedinhos gordinhos a seguraram enquanto meus pezinhos de tênis bamba apontavam para o solo.

Naqueles instantes pude entender de forma instintiva muitas das coisas que minha vida depois ensinaria de forma mais consciente. Existe uma inevitabilidade na busca pela autonomia e liberdade, tanto do sujeito que deseja ser livre, quanto dos povos que desejam a emancipação das amarras que os impedem de exercer a plena soberania. Não há como fugir deste caminho, mesmo que ele se mostre duro, perigoso, complexo e desafiador. Entretanto, diante de algumas encruzilhadas e decisões tomadas, é forçoso reconhecer o momento onde não há mais volta, quando é impossível retroceder do ponto alcançado. Meus dedinhos rechonchudos doíam na pedra, agarrados à esperança de que alguma força mágica fizesse mudar o destino. Eles tentavam segurar o que eu ainda era, mas a gravidade me avisava que não há como conter a força da vida tentando se emancipar. Esse momento em minha vida explicaria muitas das situações em que estive envolvido durante toda a minha juventude, maturidade e até agora entrando na velhice. O impulso de ir, o medo de olhar para trás, e a necessidade imperiosa de me arrojar ao desconhecido, movido por um desejo irrefreável de suplantar meus limites.

O mundo abaixo tremia tanto quanto minhas perninhas rechonchudas. Olhei mais uma vez para cima, mas a janela já se apequenara. Eu havia chegado ao ponto sem retorno; não havia escapatória; minhas alternativas eram o chão ou… o chão. Meus braços aguentavam firmes a pressão do corpo pouco, mas senti os dedinhos fraquejando sob o peso da gravidade. Maldito Newton, se não a houvesse inventado eu não estaria nessa situação. Olhei para o céu, minhas pernas balançaram num desejo ilusório de alcançar algo que sabia não estar lá. O espaço subitamente se tornou o opressor, ameaçando meu corpo pendurado, ávido de firmeza.

Os dedinhos continuaram firmes pela eternidade de poucos segundos, quando começaram, cada um por sua vez, a desistir da dureza pétrea da marquise. Senti minha força minúscula ceder aos chamados da superfície terrena. Falanges, falanginhas, até que, finalmente, falangetas. Cada uma delas deslizou pela aspereza da borda, até que a última se desprendeu e caí. Meu corpinho agora deslizava pelo vazio. O ar me envolvia por todos os lados, trazendo de volta a velha angústia do nascimento: o excesso de ar a completar de nada o meu entorno. Liberado de todas as prisões, agora eu era o soberano de todos os reinos, de todas as terras; nada me prendia, nada me oprimia. Meus braços esticados agitavam-se no infinito cósmico e acenavam para as nuvens acima. Minha face lívida se contraiu, e da pequena boca se esboçou um grito.

Primeiro o pé direito, depois o esquerdo. A perna direita dobrou-se, e sobre ela recaiu o peso do corpo. Um soco surdo na face da rua tomou o lugar do grito engasgado. Meu corpo se jogou para frente, em direção à parede do edifício, e minhas mãos apararam seu peso. Amarrado novamente ao mundo, tentei me erguer, mas minha perna direita doía. Um silêncio, que durou milhares de fragmentos de segundo, seguiu-se ao som opaco de minha queda, como a mudez das árvores que antecede as tormentas. Então que, transposto o imobilismo momentâneo do universo, olho para frente e vejo uma porta se abrir.

– Que foi menino? Caiu?

Era a vizinha do apartamento de baixo. Escutou o barulho e veio ver do que se tratava.

– Escutei o barulho de uma bola caindo e queria saber se os vizinhos estavam de novo jogando bola, continuou ela. Eles sabem que tem gente de idade descansando. Aqui não pode!

Eu continuava sentado sobre a perna direita, sem coragem de levantar. Estava estático, mas não chorava, ainda estupefato com o que havia acontecido. Eu era o “menino voador”; havia desafiado a mais antiga das leis, a lei da gravidade, e tinha sobrevivido a ela. A vizinha se mantinha falando algo sobre o ruído que ouvira, e sobre a minha mãe, mas eu não entendia. Apenas percebia os sons de sua voz de mulher, sem captar a plenitude do sentido. Creio que de forma automática ela se virou para dentro da casa e trouxe um copo d’água, o remédio mais tradicional que se dá aos outros quando nós mesmos estamos nervosos. Olhou para mim mais uma vez, depois dos três goles regulamentares, e me perguntou: “Você está mesmo bem?”

Até então eu não havia me dado conta de que ela não tinha percebido o meu voo milagroso e inusitado. Apenas abrira a porta e se deparara com uma criança sentada no chão. Resolvi ficar em silêncio e nada dizer; talvez essa confissão fosse demasiado forte para ela. Nunca se sabe até aonde a emoção descontrolada de uma mulher pode desestabilizá-la. Foi nesse momento que ela me deu sua mão e eu me ergui.

Uma jamanta, como se dizia na época. Sim, parecia que eu havia sido atropelado por uma. Meu joelho direito doía, e a nádega do mesmo lado também. Porém, fiquei feliz de ver que o corpo inteiro respondia aos meus comandos. Consegui dar dois passos e entrei na sua casa. Ela pediu para eu ficar ali, aguardando, enquanto ela chamava minha mãe no andar de cima. Fiquei olhando em volta, as paredes, os quadros, a mesinha no canto, as relíquias de guerra do seu Scherer. Meu vizinho era um brasileiro de origem alemã que havia lutado na segunda guerra, um “pracinha” que adorava ostentar a cicatriz profunda em seu ventre, sua melhor e mais vistosa condecoração. Pouco mais de 20 anos nos separavam do fim do combate sangrento na Europa, mas as suas histórias continuaram até seu último dia de vida. Subitamente, chegou minha mãe, escoltada pela vizinha. Olhou-me sem entender o que havia acontecido. Perguntou o que houve, mas limitei-me a dizer: “caí”. Ela me examinou de cima a baixo, como só as mães sabem fazer, virou-me de costas, apalpou meus ombros e cabeça. “Você está bem? Como passou por mim sem que eu lhe visse?”

Nada falei. Apenas dei de ombros. Ainda era cedo para ela saber do meu salto, da minha aventura suprema. Não queria assustá-la revelando o pequeno herói que tinha em casa. Depois ela mesma perceberia, e então eu teria muitas explicações para dar. Mas naquele momento eu queria apenas gozar a suprema emoção de ter vencido um grande desafio. Arrojado no espaço, destemido, confiante e sentindo a mais inebriante das sensações: o êxtase de ultrapassar os próprios limites. Olhei para minha mãe e a preocupada vizinha por mais uma vez, e de minha voz saiu apenas uma frase:

– Posso brincar na rua?

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