Este foi o apartamento que morei até completar 6 anos de idade, quando nos mudamos do “interior” para a capital. A janela do primeiro piso era do quarto das crianças. Ali eu e meus irmãos fazíamos as primeiras bagunças. Uma vez, com 5 anos de idade, minha mãe me colocou de castigo no quarto, por causa de uma pequena travessura. Vá saber qual a travessura possível para uma criança dessa idade. Entretanto, poucos minutos foram cumpridos nesse cativeiro. Há muito tempo arquitetado, era o momento de realizar uma grande desafio. Abri a janela com meus dedos gordinhos e curtos e pulei para a marquise logo abaixo.
– Chegar até aqui é que demanda coragem, disse ao meu ouvido um elfo avermelhado de orelhas pontudas. Até o chão é apenas mais um salto. Não tema. Vai dar tudo certo.
– Cale-se, irresponsável! bradou no outro ombro um ser de chapéu branco e cabelos compridos. Ele tem apenas 5 anos! A distância até o chão é mais do que o dobro do que ele tem de altura. Você não enxerga o quanto de risco existe aqui?
Dei um passo adiante e mirei a calçada de grês logo abaixo. É muito mais alto visto de cima. Os carros, as pedras, o vão mal recortado das lajes, tudo estava muito mais distante do planejado.
Sentei na beirada e balancei as pernas, mais para me acalmar e ganhar tempo do que para avaliar a distância que me separava do solo. Talvez, se eu esperasse mais um pouco, minha mãe voltaria para me resgatar. Segurei as alças do suspensórios que seguravam meu short marrom. Respirei fundo e olhei para a quadra de futebol no clube em frente. Minha mãe devia estar cantarolando uma canção de Chico Alves enquanto secava a louça na cozinha. Ela não virá, pensei. É necessário tomar a decisão. Voltar para o quarto humilhado e fracassado ou embarcar na maior aventura até então imaginável para uma cabecinha de 5 anos.
O elfo vermelho apenas sorriu; o mago branco colocou as mãos na cabeça e a sacudiu de um lado para outro. Eles, por serem sábios, sabiam que a decisão já havia sido tomada em meu pequeno coração de menino.
Ajeitei meu corpo para frente e olhei para a janela uma última vez. Despeço-me de suas frestas por onde me acostumei olhar a rua mesmo durante a noite, quando minha mãe me mandava dormir.
O movimento seguinte era óbvio. Virei-me de costas para a rua, ajoelhado na beirada. Coloquei as pernas para baixo e estiquei lentamente o corpo, ficando preso apenas pelas mãos. Meus dedinhos gordinhos seguraram a marquise enquanto meus pezinhos de tênis bamba apontavam para o solo.
Então o tempo subitamente para…
O mundo abaixo tremia tanto quanto minhas perninhas rechonchudas. Olhei mais uma vez para cima, mas a janela já se apequenara. Eu havia chegado ao ponto sem retorno; não havia escapatória; minhas alternativas eram o chão ou… o chão.
Meus braços aguentaram firmes a pressão do corpo pouco, mas senti os dedinhos fraquejando sob o peso da gravidade. Maldito Newton, se não a houvesse inventado eu não estaria nessa situação. Olhei para o céu, minhas pernas balançaram num desejo ilusório de alcançar algo que sabia não estar lá. O espaço subitamente se tornou o opressor, ameaçando meu corpo pendurado, ávido de firmeza.
Os dedinhos continuaram firmes pela eternidades de poucos segundos, quando começaram, cada um por sua vez, a desistir da dureza pétrea da marquise. Senti a força minúscula ceder aos chamados da superfície terrena.
Falanges, falanginhas. Até que, finalmente, falangetas. Cada uma delas deslizou pela rudeza áspera da borda, até que a última desprendeu-se e caí.
Meu corpinho agora deslizava pelo vazio. O ar me envolvia por todas as partes. Liberado de todas as prisões, agora eu era o soberano de todos os reinos, de todas as terras. Nada me prendia, nada me oprimia. Meus braços esticados agitavam-se no infinito cósmico e acenavam para as nuvens acima. Minha face lívida se contraiu, e da pequena boca se esboçou um grito.
Primeiro o pé direito, depois o esquerdo. A perna direita dobrou-se e sobre ela recaiu o peso do corpo. Um soco surdo na face da rua tomou o lugar do grito engasgado. Meu corpo se jogou para frente, em direção à parede do edifício, e minhas mãos apararam seu peso. Amarrado novamente ao mundo, tentei me erguer, mas minha perna doía. Um silêncio de milhares de fragmentos de segundo seguiu-se ao som opaco de minha queda, como a mudez que antecede as tormentas. Então que, transposto o imobilismo momentâneo do universo, olho para frente e vejo uma porta se abrir.
– Que foi menino? Caiu?
Era a vizinha de baixo. Escutou o barulho e veio ver do que se tratava.
– Escutei o barulho de uma bola caindo e queria saber se os vizinhos estavam de novo jogando bola, continuou ela. Eles sabem que tem gente de idade descansando. Aqui não pode!
Eu continuava sentado sobre a perna direita, sem coragem de levantar. Estava estático, mas não chorava, ainda estupefato com o que havia acontecido. Eu era um “menino voador”. Eu havia desafiado a mais antiga das leis, a lei da gravidade, e tinha sobrevivido.
A vizinha se mantinha falando algo sobre o ruído que ouvira, e sobre a minha mãe, mas eu não entendia. Apenas percebia os sons de sua voz de mulher, sem captar a plenitude do sentido.
Creio que de forma automática ela se virou para dentro da casa e trouxe um copo d’água, que é o remédio mais tradicional que se dá aos outros quando a gente mesmo está nervoso. Olhou para mim mais uma vez, depois dos três goles regulamentares, e me perguntou: “Você está mesmo bem?”
Até então eu não havia me dado conta de que ela não tinha percebido o meu voo milagroso e inusitado. Apenas abrira a porta e se deparara com uma criança sentada no chão. Resolvi ficar em silêncio e nada dizer; talvez essa confissão fosse demasiado forte para ela. Nunca se sabe até aonde a emoção descontrolada de uma mulher pode desestabilizá-la. Foi nesse momento que ela me deu sua mão e eu me ergui.
Uma jamanta, como se dizia na época. Sim, parecia que eu havia sido atropelado por uma. Meu joelho direito doía, e a nádega do mesmo lado também. Porém, fiquei feliz de ver que meu corpo inteiro respondia aos meus comandos. Consegui dar dois passos e entrei na sua casa. Ela pediu para eu ficar ali, aguardando, enquanto ela chamava minha mãe no andar de cima. Fiquei olhando em volta, as paredes, os quadros, a mesinha no canto, as relíquias de guerra do seu Scherer. Meu vizinho de baixo era um brasileiro de origem alemã que havia lutado na segunda guerra, e que adorava ostentar a cicatriz profunda em seu ventre, sua melhor e mais vistosa condecoração. Pouco mais de 20 anos nos separavam do fim do combate sangrento na Europa, mas as suas histórias continuaram até seu último dia de vida.
Chegou minha mãe, escoltada pela vizinha. Olhou-me sem entender o que havia acontecido. Perguntou o que houve, mas limitei-me a dizer: “caí”. Ela me examinou de cima a baixo, como só as mães sabem fazer, virou-me de costas, apalpou meus ombros e cabeça. “Você está bem? Como passou por mim sem que eu te visse?”
Nada falei. Apenas dei de ombros. Ainda era cedo para ela saber do meu salto, da minha aventura suprema. Não queria assustá-la revelando o pequeno herói que tinha em casa. Depois ela mesma perceberia, e aí eu teria muitas explicações para dar. Mas naquele momento eu apenas queria gozar a suprema emoção de ter vencido um grande desafio. Arrojado no espaço, destemido, confiante e sentindo a mais inebriante das sensações: a alegria de ultrapassar os próprios limites.
Olhei para minha mãe e a preocupada vizinha por mais uma vez, e de minha voz saiu apenas uma frase:
– Posso brincar na rua?