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Desafio

Publius Terentius Afer foi um escritor romano, nascido em Cartago no ano 185 a.C. Foi vendido como escravo ao político romano Terêncio Lucano, que deu-lhe educação e do qual manteve o nome. Terêncio teve seis livros publicados e, apesar de não ter sido muito famoso em sua época, tornou-se conhecido e citado na Renascença. Foi contemporâneo de Cipião e Plauto. Dele guardamos sua melhor frase: “Sou homem, e nada do que é humano me é estranho”.

Guardo esta frase como um guia para compreender a diversidade humana e, mais ainda, os extremos de bestialidade e devoção gratuita.Costumo usar essa lógica diante de situações que desafiam meu entendimento diante de manifestações intrigantes da ação humana. Para cada ato de horror eu penso: “Estivesse eu diante desse contexto e dessa circunstância, teria agido diferente?”

Quando analiso com franqueza suficiente estas situações eu percebo que, fossem oferecidas a mim as condições em que o criminoso se encontrava, é certo que a opção pelo delito estaria na mesa, à minha frente, como uma escolha possível, talvez a mais provável. Assim, a minha crítica estaria confinada apenas ao preconceito e à falta de empatia – incapacidade de enxergar o mundo pela perspectiva alheia.

Em todos os crimes enxergo o humano, o falível, a fragilidade, o egoísmo, condições que compartilho com todos os meus iguais. Assim, o crime existe dentro de mim em potencialidade, tanto quanto a genialidade e a excelência, aguardando tão somente as condições externas – renitentes e continuadas – para a sua expressão.

Assim, condenar o SUJEITO – e não seus crimes – é um ato de fraqueza e uma falha de reflexão. Só um tolo, encastelado em uma autoimagem falsa e irreal, é capaz de se sentir alheio ao horror e à miséria humanas. Basta analisar nossos atos cotidianos, nosso orgulho desmedido, nossa tola vaidade e nosso egoísmo incoercível para perceber que somos todos feitos da mesma matéria, e que o que nos diferencia dos hóspedes de uma penitenciária ou de um sanatório são as circunstâncias que nos protegeram de ações malévolas e criminosas. Entretanto, elas estavam sempre lá, em embrião, esperando o momento para sua manifestação. O mundo que lhe protege não oferece a mesma guarida a todos os teus irmãos.

Por reconhecer que nada que se expresse no humano pode ser alheio a nós é que os crimes contra crianças tanto nos perturbam. Se existe motivação humana para um crime tão cruel quanto este é porque ele está inscrito em nossa essência – portanto, não pode ser a nós estranho. Existe algo em nós muito vil, demasiado grotesco e brutalmente venenoso que nos envergonha e nos remete aos abismos do que é ser humano.

Uma forma clássica de justificar a brutalidades contra grupos ou povos inteiros é através de desumanização. Por tratá-los como “não humanos” é possível admitir o genocídio da população indígena, os holocaustos (judeu, armênio, chinês) e a limpeza étnica (palestinos, indígenas, etc). Este é um recurso que usamos para impedir que a identificação com as vítimas nos cause angústia. Da mesma forma, colocar tais violências contra os pequenos dentro da infinita gama de possibilidades das ações humanas é um desafio muito difícil; mais fácil é tratá-las como “monstruosidades”, pois ao excluir tais ações do campo do “humano” – e deixá-las restritas aos “monstros” – suspiramos aliviados por afastar tamanha perversidade para longe de nós.

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Alteridade

Meus netos dividem o mundo entre o “bem”e o “mal”. Hoje em dia o mais velho pergunta de uma forma um pouco diferente: “esse cara é chato?”, que significa basicamente se ele representa as forças do Mal. O que ele pede quando começa o filme é que digamos a ele “em que lado do espectro eu o coloco?“. Para eles os personagens são benéficos ou maléficos. Para aqueles que representam o bem, só a felicidade poderá ser o prêmio a receber. Para os “chatos”, estes são merecedores dos piores castigos. Tipo o Gastón cair do penhasco na disputa por Belle ou como a “morte” trágica de Ernesto de la Cruz em “Coco”. No merci.

Mas eles tem 7 e 4 anos, e não conseguem vislumbrar matizes. Para eles a essência do sujeito é vil ou luminosa. O mais velho agora começa a entender que as pessoas são complexas; as vezes são más mas tem coisas boas dentro de si. Isso é desafiador para a cabecinha dele, mas faz parte do aprendizado da vida afastar-se das certezas e mergulhar corajosamente nas dúvidas.

Crescemos com essa perspectiva, pois libertar-se dessa visão de mundo é muito complicado. “Como ele pode defender o oposto do que defendo e mesmo assim encontrar nele qualidades morais?”. “Como posso enxergar virtudes em alguém tão diferente de mim quanto é possível entre dois seres?

O mais fácil é enclausurar-se no maniqueísmo e desreconhecer as semelhanças que nos unem a todos os outros seres humanos, mesmo que as circunstâncias e os contextos nos coloquem em posições políticas e sociais antípodas. O horror que nos faz odiar os diferentes é ver que nossas ações são quase iguais àquelas que tanto criticamos nos outros.

Meu neto mais velho diz: “e esse aí vovô, é chato ou é do bem?” e eu só de sacanagem respondo: “São que nem a gente, um pouco bons e um pouco maus”. Ainda acho que é de cedo que se planta a semente da alteridade

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