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Nós e eles

No Facebook ninguém jamais foi egoísta, sacana, maldoso ou ruim. Todo mundo sofreu bullying, ninguém jamais o cometeu. Todos foram injustiçados, mas ninguém foi autor de grosseiras injustiças. Todos guiaram sua conduta pela bondade e pela solidariedade, mas foram vítimas contumazes da maldade alheia. A ninguém jamais ocorreu agir em causa própria para obter vantagens; as ações sempre foram direcionadas para o bem comum. Todos são merecedores de erguer a mão e responder à pergunta de Jesus, afirmando impávidos “Eu, mestre. Sim, eu sou isento de pecado e posso atirar a primeira pedra. Façavor de me alcançar o paralelepípedo”. As redes sociais são pródigas em mostrar estes vestais, seres isentos de pecado, candidatos a atirar as primeiras pedras.

Ao lado da consciência de classe precisamos também aprender a calçar as “sandálias da humildade”. Ou ao menos aprender com o dramaturgo romano Publius Terentius Afer (Terêncio) que dizia “Sou humano, e nada do que é humano me é estanho”. Sem muito esforço consigo perceber toda a gama infinita de maldades humanas dentro de mim mesmo, das mais perversas às mais banais e imperceptíveis. A diferença entre mim e os criminosos que ocupam as prisões é pequena demais para que eu possa reconhecer uma essência distinta entre nós. Muitas vezes circunstância e contextos produzem estas distâncias enganosas, muito mais do que o caráter.

O apontar de dedos e o punitivismo inexorável das redes sociais não cansam de me surpreender pelo seu vigor e resistência. É a sanha punitivista que me espanta, em especial quando surge no seio da esquerda. Por que desacreditamos tão facilmente no perdão e na compreensão das falhas? Por que tanto sentimento de vingança que tanto nos aproxima dos verdugos e algozes da classe média? Qual o sentido de nos colocarmos tão acima daqueles que erram? Por acaso somos feitos de uma matéria distinta? Acreditamos mesmo em diferenças tão marcantes de caráter entre nós e o mar de pecadores que nos cerca? Que retrocesso espiritual é esse que nos faz gozar com a punição e a vingança?

A ideia de colocar-se acima dos outros – inclusive dos reais criminosos – é um erro que eu não tenho coragem de cometer. De novo trago as palavras dos antigos: “Nunca diga que dessa água não bebereis”. Sabe-se lá qual a sede que te consome. Tivesse eu bebido a mesma água que tantos beberam, passado pelas agruras de suas vidas e sofrido na carne o que sofreram e só assim seria possível dizer que jamais cometeria seus erros. Qualquer julgamento feito sem ter calçado os seus sapatos é injusto. E, mais uma vez, a impossibilidade de julgar as pessoas não significa a impossibilidade de julgar suas ações e seus crimes, assim como impor as punições que sejam necessárias.

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Desafio

Publius Terentius Afer foi um escritor romano, nascido em Cartago no ano 185 a.C. Foi vendido como escravo ao político romano Terêncio Lucano, que deu-lhe educação e do qual manteve o nome. Terêncio teve seis livros publicados e, apesar de não ter sido muito famoso em sua época, tornou-se conhecido e citado na Renascença. Foi contemporâneo de Cipião e Plauto. Dele guardamos sua melhor frase: “Sou homem, e nada do que é humano me é estranho”.

Guardo esta frase como um guia para compreender a diversidade humana e, mais ainda, os extremos de bestialidade e devoção gratuita.Costumo usar essa lógica diante de situações que desafiam meu entendimento diante de manifestações intrigantes da ação humana. Para cada ato de horror eu penso: “Estivesse eu diante desse contexto e dessa circunstância, teria agido diferente?”

Quando analiso com franqueza suficiente estas situações eu percebo que, fossem oferecidas a mim as condições em que o criminoso se encontrava, é certo que a opção pelo delito estaria na mesa, à minha frente, como uma escolha possível, talvez a mais provável. Assim, a minha crítica estaria confinada apenas ao preconceito e à falta de empatia – incapacidade de enxergar o mundo pela perspectiva alheia.

Em todos os crimes enxergo o humano, o falível, a fragilidade, o egoísmo, condições que compartilho com todos os meus iguais. Assim, o crime existe dentro de mim em potencialidade, tanto quanto a genialidade e a excelência, aguardando tão somente as condições externas – renitentes e continuadas – para a sua expressão.

Assim, condenar o SUJEITO – e não seus crimes – é um ato de fraqueza e uma falha de reflexão. Só um tolo, encastelado em uma autoimagem falsa e irreal, é capaz de se sentir alheio ao horror e à miséria humanas. Basta analisar nossos atos cotidianos, nosso orgulho desmedido, nossa tola vaidade e nosso egoísmo incoercível para perceber que somos todos feitos da mesma matéria, e que o que nos diferencia dos hóspedes de uma penitenciária ou de um sanatório são as circunstâncias que nos protegeram de ações malévolas e criminosas. Entretanto, elas estavam sempre lá, em embrião, esperando o momento para sua manifestação. O mundo que lhe protege não oferece a mesma guarida a todos os teus irmãos.

Por reconhecer que nada que se expresse no humano pode ser alheio a nós é que os crimes contra crianças tanto nos perturbam. Se existe motivação humana para um crime tão cruel quanto este é porque ele está inscrito em nossa essência – portanto, não pode ser a nós estranho. Existe algo em nós muito vil, demasiado grotesco e brutalmente venenoso que nos envergonha e nos remete aos abismos do que é ser humano.

Uma forma clássica de justificar a brutalidades contra grupos ou povos inteiros é através de desumanização. Por tratá-los como “não humanos” é possível admitir o genocídio da população indígena, os holocaustos (judeu, armênio, chinês) e a limpeza étnica (palestinos, indígenas, etc). Este é um recurso que usamos para impedir que a identificação com as vítimas nos cause angústia. Da mesma forma, colocar tais violências contra os pequenos dentro da infinita gama de possibilidades das ações humanas é um desafio muito difícil; mais fácil é tratá-las como “monstruosidades”, pois ao excluir tais ações do campo do “humano” – e deixá-las restritas aos “monstros” – suspiramos aliviados por afastar tamanha perversidade para longe de nós.

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Empatia

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A primeira vez que me deparei com essa perspectiva foi há muitos anos quando li a história de um sociólogo americano que foi estudar as comunidades negras e latinas do Harlem, em Nova York, e sua vinculação com o crime. Seu interesse era saber quais as razões levavam os jovens a entrar no mundo do tráfico  de drogas.

Sua resposta a esta pergunta me chocou pela simplicidade. Ao invés de elencar as conhecidas explicações educacionais, familiares, morais etc. ele respondia com outra pergunta: “Por que deveriam eles NÃO entrar para este mundo?

O que ele testemunhou foi um universo de valores muito semelhante aos que controlavam nosso mundo branco e de classe média. As pessoas daquele espaço amavam, sofriam, cantavam, choravam, tinham ciúme e inveja e sonhavam como todos os humanos. Entretanto, ao contrário dos outros, eram marginalizados por não ter acesso ao consumo. Em uma sociedade em que a cidadania é constituída pela capacidade de consumir seu estatuto de pessoa era frágil, tornando-os sujeitos à margem.

Sim, marginais.

Nesse contexto, por que não aderir a uma proposta que poderia lhes oferecer acesso ao mundo do consumo, dando-lhes a possibilidade de ser, em fim, cidadãos?

“Mata!!”

“Bandido!!”

“Deixa apodrecer na cadeia!!”

Das virtudes humanas a que anda mais escassa é a empatia. Tão ocupados estamos com a periferia de nossos próprios umbigos que pouco tempo sobra para nos preocuparmos com a dor e o sofrimento alheios.

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