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Memórias do Homem de Vidro – 16

Asfalto

Tentei fazer a ligação do meu mouse no computador novo, mas percebi que a co­nexão era inadequada. Inútil insistir. Com as mãos na cintura, eu vislumbrava o ventre cibernético do computador aberto à minha frente. Suas entranhas expostas não me traziam esperanças, mas me ofereciam a ilusão ingênua de controlar seu funcionamento. A conclusão era dura e inevitável: meu dispositivo era PS2, e a única porta acessível era uma serial. Eu necessitava de um adaptador, e talvez pudesse encontrá-lo no shopping. Ok, pensei eu, já conformado com o meu passeio compulsório. Aproveito e visito uma livraria. Quem sabe encontro alguma novidade, ou pelo menos leio o meu livro enquanto tomo um café expresso. Tento acordar Bebel para me fazer com­panhia, mas a festa da noite anterior a mantinha agarrada aos braços de Morfeu. Mais tarde agradeci por ela estar presa a este sono de pedra.

A tarde fria já mostrava seus estertores, colorindo de púrpura o céu da cidade. O vento cantava uma fria melodia na fresta aberta da janela do carro, enquanto os faróis dos automóveis lentamente iam se acendendo, produzindo uma dissonância ofuscante de luzes. O rádio é a companhia que me resta, e acompanho o som das músicas com minha voz desafinada. “E é só você que tem a cura do meu vício de insistir nessa saudade que eu sinto de tudo que eu ainda não vi”. Renato Russo fala da saudade daquilo que ainda não vivera, enquanto eu forço a vista para po­der enxergar a mudança nas tonalidades da rua. Penso na força de um ídolo que se foi, e que, ao morrer, tinha a mesma idade que eu. Novo, pensei. Vítima do desregramento que atinge os mais sensíveis, ainda jovem sucumbiu a um turbi­lhão de paixões avassaladoras. Sua poesia ainda encanta os “meninos e meninas” da geração que nem chegou a conhecer.

Meu caminho em direção ao shopping necessariamente passava pelo estádio de futebol. Aos poucos, vislumbro o topo das torres imensas que guardam os holofo­tes, e sua visão me trouxe à memória minha velha tese de que os estádios tentam reproduzir a estrutura dos castelos medievais, em uma intrigante fidelidade à ar­quitetura das cidadelas. O fosso, as torres sentinelas, a ponte levadiça, os guar­das, o povo alucinado e os exércitos digladiantes: tudo isso me aparecia de forma evidente nas partidas de futebol. Ali os clãs se reuniam para as batalhas, que o processo civilizatório sublimou nos jogos esportivos. Entretanto, o calor dos em­bates futebolísticos frequentemente produzia em mim a memória corpórea de um tempo passado nem tão distante, em que os “gols” eram muito mais sangrentos e as vitórias, realmente “arrasadoras”. Felizmente nossa impulsividade testosterô­nica e guerreira já havia encontrado outras formas mais sutis de expressão.

Quase em frente à curva do estádio, a intuição me fez mudar de rumo. Empurrada por uma vontade repentina, minha mão escorregou no volante e decidi não con­tornar o velho campo de futebol pela esquerda, mas manter uma linha reta e se­guir em frente para somente mais adiante virar em direção ao shopping. Poucos minutos depois, eu ainda questionaria as razões pelas quais tomamos decisões fortuitas, mas que posteriormente nos instigam a imaginação por guardarem uma causalidade aparentemente inexplicável. Ao passar o semáforo, percebi uma aglomeração próxima a um “bailão”, que é uma espécie de boate gauchesca muito ao gosto do povo. Uma pequena multidão acotovelava-se em frente a um posto de gasolina. Diminuí a marcha e me aproxi­mei para ver do que se tratava. Havia um popular, não um policial ou agente de trânsito, a pedir que os carros desviassem. Logo percebi que as pessoas se amontoavam em torno de um corpo caído ao chão. A ausência de agentes policiais me alertou para o fato de que o acidente devia ter ocorrido há alguns minutos apenas, e sequer houvera tempo para que alguma autoridade fosse acionada. Os transeuntes se agrupavam em torno da pessoa caída, me impedindo de ver detalhes do que havia acontecido. Abri o vidro do carona e gritei para o senhor que, com um lenço, fazia sinal para os carros que trafegavam:

— Amigo, eu sou médico. Alguém aí precisa de auxílio?

Ele curvou o corpo para frente, e forçou a vista para me enxergar dentro do carro. Ajustou os óculos com a mão que não segurava o lenço, ainda balançante, e res­pondeu incontinenti:

—- O senhor é médico? Sim, acho que precisamos. Houve um atropelamento. — Voltou-se para trás e, dirigindo-se à turba, gritou:

— Afastem-se. Este senhor é médico. Abram espaço!

Manobro meu carro no posto de gasolina em frente. Corro em direção à multidão, mas ainda preciso avisar: “Sou médico, deixem-me chegar perto”. Uma mulher jazia imóvel no asfalto. Minha experiência com atendimentos na rua é estranha. Parece que as coisas sempre acontecem ao meu lado. Já fui socorrista de muitos acidentes de carro e já auxiliei inúmeras pessoas vítimas do trânsito caótico. Parece uma imantação, ou talvez o fato de que aparentemente eu preciso me aproximar dos acidentes. Pareço ter uma vocação para “anjo da guarda”, o que talvez seja uma boa oportunidade de emprego depois que eu partir “desta para uma melhor”.

Desta vez não foi diferente de várias outras. O acidente havia ocorrido alguns mi­nutos atrás apenas. Depois de esbarrar nos indefectíveis curiosos, chego ao lado da pessoa que estava caída. Ajoelho-me ao lado do corpo e sinto a dureza do asfalto contra minhas rótulas. Instintivamente coloco uma mão no pulso e a outra sobre sua testa. Uma mulher, passando dos 50 anos. Vestia roupas simples, mas os sapatos bonitos e reluzen­tes pareciam novos. Sua calça estava rasgada próximo ao joelho, por onde se po­dia observar o amarelo subcutâneo de um profundo corte. Havia uma fratura ex­posta na altura do fêmur distal, e espículas ósseas agrediam as bordas da pele. Minha visão fixou-se na perna da mulher, à procura de sangue, mas não havia nenhum sinal. Como poderia um corte tão profundo, associado a uma fratura, não sangrar?

Pensei no pior. Olhei sua cabeça que, de lado, parecia tentar escutar o negro as­falto. Uma poça de sangue coloria de rubro o chão escuro. Sem movimentá-la, abri bem seus olhos e não percebi nenhuma reação das pupilas, que se encontra­vam imóveis. A dobra de sua orelha estava azulada e fria, mas o resto do seu corpo ainda mantinha o calor. Tinha uma extensa lesão por abrasão nas costas, de um vermelho intenso. Seus olhos, agora semiabertos, pareciam querer olhar um ponto qualquer do outro lado da rua. O som dos automóveis passava por entre as pernas das pessoas, e o círculo ao redor do corpo ia se tornando menor. Por entres os espectros dos curiosos amontoados ao meu redor, eu podia ver os vi­dros dos carros se abrindo para que cabeças fossem impulsionadas para fora, na ânsia de verem do que se tratava. Ao seu lado, uma senhora me falava:

— Ela é mãe da doutora Fulana, que é ginecologista. O genro dela é o doutor Fu­lano. O senhor os conhece?

Os médicos a quem ela se referia eram meus colegas. Sua filha era da mesma especialidade que eu, curiosa coincidência. O genro, outra coincidência, tinha um dos nomes igual ao meu. Não era meu amigo, mas sabe-se lá quantas vezes já havíamos nos cruzado nas galerias dos hospitais. A filha era provavelmente mais jovem do que eu, porque não reconheci seu nome.

— Ela está bem doutor? Estávamos atravessando a rua quando esta motocicleta apareceu de algum lugar. Ela não viu. Como ela está, doutor?

Não havia nenhum movimento respiratório. As pupilas estavam fixas, os olhos imóveis. Parecia ainda procurar algo do outro lado da rua, fixada em um ponto perdido entre a calçada e o horizonte purpúreo. Botei mais uma vez minha mão no seu pescoço na esperança de encontrar pulso carotídeo. Nada. Nem um mínimo sinal de vida. Olho para a amiga, que ao meu lado chora, e vejo nos seus olhos uma súplica. Pede uma esperança, uma chance. É uma bela mulher, passada também dos 50 anos. Está vestida com um casaco de couro mar­rom claro, e um batom vermelho vivo cobre seus lábios.

— Sua amiga morreu. Não há um sinal qualquer de vida. O trauma na cabeça, ou alguma lesão interna, deve ter sido o causador. Eu sinto muito.

Ela abraça-se a mim e chora. Seu soluço é baixo, mas sua dor é algo que sinto na pele. Os curiosos se aproximam mais ainda, e os ônibus diminuem a marcha pró­ximo ao acidente para poder democraticamente saciar a sede das pessoas pelos espetáculos mórbidos. Pessoas me perguntam se ela ainda está viva, e eu digo que devemos esperar a ambulância. O motoqueiro se aproxima e vejo espanto na sua expressão. Parece não acreditar no que vê. Seu olhar procura uma reação na mulher, mas esta não se move. A amiga continua a falar, tentando extravasar sua ansiedade. Diz que não conse­gue ligar para a filha da amiga, mas penso que ela na verdade estava sem cora­gem para isso. Pouca coisa no mundo é mais difícil do que dar uma notícia como essa. Continuo a olhar a pobre senhora, cujo corpo rapidamente parece esfriar junto com a noite outonal que se aproxima.

— Ela saiu para dançar. Estava atravessando a rua para uma aula de dança de salão. Ela está bem, doutor?

Quem me dirigiu a palavra foi um senhor gordo com uma camisa vermelha, já passado dos 70 anos. Talvez fosse um colega de aula; quem sabe um antigo amigo. Finalmente consigo entender para onde a mulher parecia olhar. Do outro lado da avenida um cartaz jazia, pendurado à parede de cimento cru: “Aulas de Dança de Salão”. Seu olhar continuava fixado no cartaz, como que a negar o que o destino lhe impusera. Apoiei a mão no ombro do senhor de camisa vermelha e disse-lhe em voz baixa:

— Ela faleceu, meu amigo. Não há mais nada a fazer.

Minha voz saiu como um sussurro proposital, para não criar confusão. Ele apenas falou “Meu Deus…”. Pedi que trouxesse do bar que existe em frente uma toalha para cobrir a senhora. Não conseguia aceitar os olhares dos passantes, que teimavam em chegar bem perto como que para ver a morte o mais próximo possível. Curvei-me mais uma vez em sua direção. Coloquei minha mão no seu rosto e fechei-lhe as pálpebras, tentando entender o que se passou. Uma pessoa sai de casa para uma aula de dança. Seus sapatos novos e reluzen­tes me diziam que ela era uma mulher vaidosa, caprichosa. Seu cabelo castanho pintado tentava disfarçar os fios brancos que teimavam em aparecer bem próxi­mos à raiz. Quem sabe estava procurando um namorado, uma companhia, ou apenas diversão e risadas marotas com as antigas amigas. Encontrou a morte ao atravessar a rua.

A fragilidade da vida é o que lhe empresta grandeza e fascínio. O fato de que po­demos nos retirar bruscamente dessa existência é o que nos faz pensar que cada momento é único, porque irreprodutível, e que a cada instante travamos uma luta contra nossa finitude. Com minha mão em sua face, tentei mentalizar sua passagem. Imaginei o cortejo espiritual que ao nosso lado deveria estar se realizando. Certamente ela teve em sua vida amigos, amores, familiares e pessoas que, já tendo passado para o lado de lá, a estariam auxiliando. Provavelmente ao meu lado haveria algum tipo de “Serviço de Recepção e Auxílio”, para ajudar aqueles que estavam regressando prematuramente à casa espiritual. Meu futuro emprego, pensei eu. Passei essa vida inteira recebendo os que vêm do outro lado, por que haveria de ser diferente depois de morrer?

Chegam os agentes de trânsito. Com suas “caixinhas falantes”, mandam informa­ções ao Pronto-Socorro. Apresento-me a um deles e explico que a mulher acabou de falecer. Ele transmite a informação para a central, mas confirma que a ambu­lância deve se apressar. Falo com a mulher da central e digo que a mulher não mais respirava, e que o caso era realmente fatal.

Minutos após, a ambulância chega, fazendo alarde. A mulher no asfalto jaz co­berta com a toalha do bar, e o paramédico apenas confirma minhas informações. Nada mais há para fazer.

Levanto-me e abraço mais uma vez a amiga. Pego um papel e escrevo meu nome, para que ela entregue à filha, minha colega ginecologista. Talvez ela qui­sesse perguntar alguma coisa, ou saber como estava sua mãe quando veio a fale­cer. Afasto-me da multidão e olho para o corpo miúdo que começa a ser carregado para a ambulância. Digo mentalmente adeus, pedindo para que ela possa ser bem recebida no lugar para onde está indo. Entro no meu carro e sigo meu caminho. Ligo o rádio. A lembrança de V. instantaneamente me vem à recordação.

“Na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais”, grita Belchior.

Ela também saiu de casa para uma aula de dança. Queria bailar no ritmo de uma canção há milênios cantada. Queria passar pelo seu rito, sem ser obstruída por uma sociedade que recrimina a autonomia e a liberdade. V. sabia que o caminho da libertação passa pela coragem e pelo enfrentamento. Morreu ao atravessar sua última avenida, atropelada pela inevitabilidade de uma doença imprevisível e im­possível de prevenir e abatida pela infecção contraída no que deveria ser o “san­tuário da antissepsia”. Logo ela, que tanto tentou evitar uma fatalidade ao procurar na humanização do seu parto a forma mais segura de lidar com o evento.

Dobro finalmente em direção ao meu destino. As imagens se multiplicam na minha mente, e eu continuo a pensar na morte e seus significados. A morte é o tabu-mor da medicina. É a maldita palavra não-dita. “Palavras são energia”, já dizia minha mãe. Nós, médicos, não pronunciamos essa palavra de cinco letras, talvez para afastar de nós a sua aura temida. Faz parte da nossa mi­lenar herança mística, e dos rituais que cercam nossa profissão. Não falamos feto morto, falamos “FM”; não nos reportamos ao câncer, e sim ao “CA”, e mesmo nós, imitando os pacientes, falamos das doenças malignas como “aquela doença”. Nossa ojeriza à morte, e ao fim determinado por ela, só pode ser compreendida se adentrarmos a sutileza dos alicerces que sustentam a medicina. Tentamos desviar da boca a palavra amarga, para que não chegue aos corações e mentes a marca indelével da nossa falibilidade. Morte em medicina significa o fracasso último de nosso intento fantasioso de sobrepujar a natureza e seus ditames.

Morrer é tão da vida quanto nascer, e enquanto não pudermos entender as pontas da existência como um tubo que se fecha, jamais seremos capazes de sobrepujar a dor de partir. Zeza ainda ontem me falava da dor de nascer, e deixar para trás aqueles que tanto nos amam e a quem deixamos órfãos de nossa presença espiritual. Também do lado de lá deve haver saudade, senão por que sorririam ao nos ver regressar aqueles que já se foram? Seria o humano fadado a um eterno acenar de cais? Seria a criatura de Deus um eterno suplicante de amores deixados para trás, na longínqua memória de tempos e paixões já idas? Seria a completude da presença constante um idílio mentiroso, tão falso quanto aquele em que a princesa e seu escolhido “viveram felizes para o sempre”? Será a existência maior marcada, em essência, pela fatalidade da partida, a sombra da despedida e a dor de um olhar a perder-se? “Viver é preparar-se para morrer”, diria Sócrates. Sem o desapego às coisas e às pessoas, nossa passagem se torna um mar de aflição e tormento. Viver é prepa­rar-se para a separação, para a distância.

Maximilian uma vez me disse: “Se quiser trabalhar com a vida, entenda a morte. Morrer é o que confere à vida sua grandeza e significado. Esta se torna mais vali­osa quando mais frágil a reconhecemos.” Max era certeiro, e sabia o que era a dor de perder alguém. O destino é realmente surpreendente. Pergunto a mim mesmo qual o sentido disso tudo. O medo da resposta me fez aumentar o volume do rádio. Haverá uma razão para o sofrimento?

Volto para a realidade asfáltica do meu percurso em direção ao shopping e tento me preocupar com a peça faltante do computador, para assim afastar os pensa­mentos dolorosos que tomaram conta da minha mente. Sigo meu rumo olhando o rosto das pessoas nas calçadas. Escondido no carro, os passantes não percebem minha angústia e minha estupefação diante do patético da existência. Tenho ga­nas de baixar o vidro e gritar: “Hei, você aí parado. Você mesmo, na parada de ônibus, de camisa amarela. Podia ser você. Isso mesmo… podia ser você”. Desligo o rádio, e uma música da infância me vem à memória, tomando o lugar da balada romântica. Era uma música evangélica polifônica, à capella, tão ao gosto do meu pai. “Se a morte vier hoje o buscar, como está com seu Deus?”

E se ela viesse?

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Maçaneta

A cafeteria jogava sobre nós seus vapores de café enquanto Max ajeitava o cabelo cada vez que aproximava a boca da xícara. Tive ímpetos de dizer-lhe, pela milésima vez, que já era hora de cortar seu cabelo. Max mantinha o mesmo penteado desgrenhado de quando estava na faculdade, mas agora os fios de cabelos brancos estavam em franca vantagem contra os originais. Logo me dei conta de que este comentário seria apenas mais uma tolice minha; criticar os cabelos de Max era uma intromissão em um assunto absolutamente privado. Pior, temo que sua resposta seria: “respeite seu lugar de fala, careca”. Dizer-lhe para cortar o cabelo seria o mesmo que pedir para Salvador Dali aparar o bigode, ou para Einstein pentear seu cabelo. Não se mexe em marcas tão fortes de uma personalidade. Ainda prefiro o incômodo de vê-lo ajeitando o cabelo insistentemente do que correr o risco de ver seu espírito questionador e inquieto esvair-se no chão de um barbeiro

– Eu sei do que falas, Ric. Se o que move estas pessoas. Sei como sofrem e porque é tão complexo o perdão. Sei também que, por mais que estas pessoas sejam confrontadas com a realidade, tal encontro não é capaz de produzir nenhuma transformação significativa. O que se obtém de forma irracional e afetiva não pode ser extirpado pela razão.

– Sim, eu compreendo, e me resigno. Sei que não há muito o que dizer diante de uma construção emocional tão poderosa. Não se joga fora uma bengala de uma hora para outra. O ódio e o desprezo servem como potentes apaziguadores da alma quando a dor é intensa e sobre ela não existe consolo possível.

Max jogou-se para trás na cadeira e ficou me olhando fixamente por alguns instantes. Nunca entendi exatamente o sentido destas paradas abruptas, o enquadramento do corpo como a preparar um bote seguido de um movimento rápido para frente em que arrojava seu corpo sobre a mesa e dizia algo sem tirar seus olhos dos meus. Funcionava como um script preestabelecido do qual ambos sabíamos como funcionava.

– Eu já te falei a história de Dulcinéia? Não a namorada de Dom Quixote, uma outra, muito mais triste.

Neguei com a cabeça, sem desviar os olhos de Max. Ele sabia que eu não desviaria o olhar até o final de sua narrativa. Max domina a arte de criar suspenses e contar histórias.

– Dulcinéia era uma mulher triste. Era casada e tinha três filhos. Eu a conheci nos primeiros anos depois de sair da residência em um ambulatório da prefeitura.  Nos primeiros quinze minutos da consulta ela me contou as mentiras previsíveis que as pessoas contam na frente do médico, como um teatro tosco de olhares cruzados, histórias escolhidas, pausas, palavras sonegadas, atos falhos e enganos.

Interrompi Max abruptamente com a mão espalmada à frente.

– Para lá, Max. Não venha me dizer que as pessoas procuram médicos para mentir. Você não pode reduzir as consultas a interrogatórios, como se os pacientes estivessem acossados por um agente da lei, procurando encontrar as palavras menos incriminatórias, buscando subterfúgios para não dizer a verdade.

– Caro Ric, você descreveu muito bem como funciona uma consulta. Este encontro está regulado pelas necessidades humanas, por suas dores e medos e pelo nosso sentido de urgência. Entretanto, o que o paciente nos traz como demanda, como queixa e como sofrimento, é tão somente a parte visível de um gigantesco Iceberg. Aquela pontinha branca que desponta da imensidão aparentemente calma do oceano é apenas uma fração minúscula do que se esconde por debaixo das suas águas plácidas. Infelizmente, o que aparece como gelo na superfície deveria ser o guia para a descoberta da massa gigantesca que o sustenta. O que o paciente traz como queixa deveria ser um sinalizador para que um cuidador isento de preconceitos pudesse investigar o que se esconde por debaixo da superfície do seu discurso dissimulador.

Como eu um flash milhares de pacientes, palavras, histórias, gestos, expressões e sorrisos passaram diante dos meus olhos confirmando a tese de Max. Havia muito mais do que a nossa vã observação era capaz de apreender em um encontro breve e tímido. Os pacientes escondem, até de si mesmos, um tesouro de emoções escondidas debaixo de grossas capas de proteção e o adoecimento, qualquer que seja, enfraquece essas barreiras e nos oferece a oportunidade única de encontrar o que se esconde por “debaixo do véu que nos separa do meramente manifesto aos sentidos grosseiros”. Repeti para Max a frase que ele havia me dito há muitos anos e pela qual tinha uma certa afeição. Sim, Max se afeiçoava a frases como alguns tem paixão por cães e gatos. Pedi que continuasse a história de Dulcinéia.

– Permiti que Dulcinéia continuasse a contar as naturais mentiras enquanto nutria a esperança de que ela fizesse a “manobra da maçaneta” que é tão comum nesses casos.

Pedi que continuasse, mas com o compromisso de descrever a tal manobra mais tarde.

– Dulcinéia era triste, como já lhe disse. Tinha olhos azuis profundos e frios. Seu rosto era magro e seu corpo esguio. A pele era de um brancor ofuscante, onde ressaltava o azul de suas veias delicadas decorando de mármore a face interna de seus braços de cera. Seus gestos eram delicados, mas seu olhar para mim dizia muito mais do que suas pequenas mentiras. Ela carregava uma dor que não cabia em suas palavras, que não aparecia em suas queixas e que devia estar dormindo nos porões úmidos e escuros do inconsciente. Tentei buscar alguma Dulcinéia em meu arquivo de imagens, mas preferi que a descrição pormenorizada de Max me ajudasse a criar uma nova. Siga, Max.

– Em um determinado momento, e não recordo exatamente porque a conversa chegou a este ponto, suas mãos se espalmaram sobre o granito da mesa e ela me disse com uma voz dura: “Eu sei o que é sofrer por um erro!

Max, depois de uma breve pausa – ele conhece como contar histórias com seus altos e baixos e esperando o momento certo para encaixar as palavras da narrativa – continuou.

– Preferi ficar em silêncio. Havia naquele momento um instante raro nos encontros adornados de puerilidades que somos obrigados a testemunhar. Uma vaga do oceano chocou-se contra a torre gelada que aparecia altiva no meio do oceano de placidez, e com isso descobriu uma porção maior do iceberg que a sustentava. Ali estava algo verdadeiro, uma emoção clara e forte; uma dor que não se conteve e mostrou sua face.

Esperei mais alguns momentos de silêncio e ela resolveu continuar. Disse-me que sua irmã foi vítima de um erro médico há muitos anos, e que este fato acabou por fazê-las desconfiar de todos os médicos com quem consultou desde então. Um médico do Pronto Socorro foi o responsável pelo sofrimento terrível que se abateu sobre sua pequena irmã, na época com sete anos. A dor produzida naquele momento de sua vida jamais a abandonara e ela não se sentia capaz de perdoar aquele que tanto mal havia causado à sua irmãzinha e à toda sua família. Aguardei sem nada falar pelo seu relato, pois via que ela estava tocando uma parte dolorosa de sua vida, um momento de profunda dor e angústia. Ficava claro que deveria ser algo de muitos anos passados, mas a emocionalidade da descrição mostrava que a dor ainda era atual, apesar da distância de décadas que a separava do evento.

A tudo eu ouvia com atenção, mas meu coração disparava quando eu sentia na própria carne as emoções contidas no relato de Max.

– Que idade você tinha quando isso ocorreu? continuou Max em seu relato. Ela respondeu que tinha 16 anos quando sua irmã sofreu o grave acidente. Ela era uma irmã “temporona”, a mais mimada, a mais amada, a mais querida por todos na família. “Um anjo que a vida presenteou a todos nós”, disse ela.

Olhando seus olhos úmidos perguntei se ela desejava falar sobre esse caso, caso isso pudesse lhe trazer algum conforto ou consolo. Ela respondeu que sim com a cabeça, como que a desejando economizar palavras que lhe custavam a sair da boca rósea de lábios finos, que mais pareciam uma linha a cruzar transversalmente o rosto.

Foi um erro terrível do médico, disse ela. Ela foi atropelada quando voltava para casa de um passeio e levada imediatamente ao hospital. Chegou lá muito mal, entre a vida e a morte. Sofreu várias fraturas, em vários ossos, e chegou no Pronto Socorro inconsciente. Foi internada e começaram a fazer cirurgias. Uma depois da outra; nem lembro quantas foram feitas no período em que estivemos no hospital, lembro apenas que foram muitas. Ossos, hemorragias internas, reintervenções, drenos, soro, sangue, anestesias. Depois as complicações, os antibióticos e as febres. Ela foi desenganada várias vezes, os médicos foram perdendo as esperanças.

Dulcinéia continuava sua descrição da tragédia de ver uma irmã lutando contra um infortúnio, que não apenas se apossou de sua saúde, mas acabou levando consigo o brilho dos olhos azuis de sua irmã. Ela prosseguiu em sua narrativa.

Eu rezava todos os dias e fazia todas as promessas. Chorava copiosamente nos corredores do hospital. Não conseguia aceitar que uma criança sofresse tanto, alguém que jamais fez qualquer ato ruim contra ninguém. Agarrava-me a tolas crendices e palavras de estranhos, todas bem-intencionadas, mas essencialmente vazias. Subitamente, algo aconteceu. Em princípio não quis acreditar pois não queria me agarrar a falsas esperanças. A febre cedeu, os rins voltaram a funcionar, as cirurgias não mais supuravam, a respiração parecia melhor e mais calma. Até seu rosto voltou a se parecer com a menina alegre e vívida que todos conheciam. Chorei demais de alegria, mas ainda mantinha minhas orações e meus pés no chão.

Os dias se seguiram e ela aparentava franca recuperação, e depois de mais de dois meses internada pela primeira vez os médicos usaram a expressão “alta hospitalar”. Conseguia sair do quarto na cadeira de rodas e, apesar das dores, ensaiava alguns sorrisos com as brincadeiras das enfermeiras e dos médicos. Meu coração exultava de alegria e esperança. O dia finalmente chegou. Apesar de ainda restrita à cama e com muitos cuidados o médico nos procurou e avisou que daria a alta no dia seguinte. Ela precisaria de controle cuidadoso e muita atenção. Estava se alimentando com cuidado, havia perdido muito peso, não podia fazer nenhum esforço. Passei a noite no hospital aguardando para levar minha irmã de volta para casa no dia seguinte.

Então sobreveio a sombra que nunca mais me abandonou, disse ela com uma voz pausada e grave. Durante a noite minha irmã pediu um copo de suco de laranja. Solicitei a enfermeira que lhe fosse dado, já que iria para casa na manhã seguinte e havia passado o dia inteiro tomando uma dieta líquida; devia ter sido  apenas um esquecimento do médico. A enfermeira voltou com a informação de que ela estava sem dieta. Insisti com a enfermeira de que ela estava com sede e precisava beber algo “energético”, e ela respondeu que ligaria para o médico de plantão para saber se ele liberava o suco, diante do fato de que pela manhã ela iria para casa. A autorização do médico foi dada. Ela bebeu seu suco, me deu um beijo de boa noite e dormiu. Nunca mais falei com minha irmã. Na manhã seguinte ela se sentiu mal, ficou com falta de ar, reclamou que estava difícil respirar e logo depois pude ver que estava ficando pálida. Chamei a emergência e ele foi imediatamente removida para a UTI. Ainda pela manhã, uma enfermeira conhecida voltou para o quarto onde eu aguardava informações, me deu um abraço e chorou comigo, avisando que minha irmã havia morrido. Não havia causa conhecida ainda, e só com o tempo poderiam descobrir.

Fez uma pausa para secar as lágrimas e levou as mãos ao rosto. As emoções de tantos anos voltavam como se tivessem ocorrido há poucos dias.

Que Deus a houvesse levado no dia em que morreu, Dr Max. Que tivesse ela ficado no chão, sem vida, atirada no asfalto quente da rua, mas porque foram me dar as esperanças de ter minha irmã de volta para depois ser arrancada dos meus braços assim? Não foi difícil entender que a culpa era o suco de laranja. Sim, doutor, deram a ela um suco que não poderiam ter liberado. Deram para ela um “veneno” que a matou. Foi um erro grosseiro do médico por ter liberado um suco que não devia ter recebido.

Max pausou a narrativa nesse momento e voltou a colocar o corpo para trás, encostando a vasta cabeleira na parede atrás.

– O que você disse a ela Max? Acredita mesmo que aquele suco de laranja poderia estar implicado no que me parece uma embolia?

– O que eu penso não importa muito, Ric. A dor dela era verdadeira e a melhor resposta que eu tinha a lhe dar era o meu silêncio. Ela continuou sua triste história.

Processei o médico. Virei uma fera. Contratei um advogado que imediatamente encampou a minha causa. Levei o caso ao conselho de medicina. No dia da audiência eu o encontrei, alguém que eu jamais havia visto mas que odiava do fundo do meu coração. Ele se levantou e me cumprimentou constrangido, mas certamente foi capaz de ver as faíscas de ódio que saíam dos meus olhos. Sem saber o que falar, ele se limitou a dizer, sem raiva ou indignação, apenas com uma espécie de assombro.

– Por que está fazendo isso comigo?

Não consegui lhe responder tudo o que tinha em minha cabeça pois meu advogado me puxou pelo braço e pediu que eu sentasse e me acalmasse. Foi a única vez que o vi em minha vida.

Perguntei a ela o que havia acontecido com o caso e ela respondeu com uma risada de sarcasmo.

Ora, Dr Max, você sabe muito bem o que houve. Simplesmente nada. O conselho de medicina disse que não havia prova alguma de má conduta diante de um caso tão grave como o dela e encerrou o caso. Cheguei a pensar em levar adiante e processá-lo em todas as instâncias, mas meu advogado disse que a visão do conselho era muito forte, os juízes são muito incompetentes para entender casos médicos, haveria um desgaste ainda maior para a família e os custos subiriam, etc. Aceitei seu conselho e virei essa página, mas a minha dor e a minha indignação jamais terminaram, e sei que vou morrer com elas.

Fiquei olhando para aquela paciente sem saber o que dizer, sem ter como ajudá-la e sem poder debater sobre um caso que lhe trazia tanta dor, mais de 25 anos passados. Tinha vontade de lhe falar que não acreditava que o suco de laranja tivesse qualquer participação no óbito, que o mais provável era uma embolia, o que seria um diagnóstico provável diante de tanto tempo imobilizada e das fraturas que teve. Mas, de que adiantaria mexer nessa ferida sem ser capaz de lhe oferecer uma luz qualquer, e sem ter condições de trazer razão para um caso em que havia um domínio total das paixões? Disse apenas que sentia muito por tudo que havia acontecido e que ela podia contar comigo sempre que tivesse o desejo de contar uma história que compõe o tecido sutil de sua vida. Ela sorriu, secando uma última lágrima dos olhos azuis. Levantou-se e dirigiu-se à porta. Neste instante, sem saber exatamente o porquê, resolvi lhe fazer a derradeira pergunta. Em verdade, creio que a fiz apenas para tentar me solidarizar com sua dor, ou para encher de palavras o pequeno trajeto que separava a mesa onde estávamos até a porta.

– Como ela foi atropelada?, disse eu.

– Ela desceu do ônibus e atravessou a rua sem olhar. Soltou-se e correu para a calçada à frente, mas foi atingida por uma motocicleta em alta velocidade e arremessada há mais de 20 metros de distância.

– Soltou-se?, perguntei eu sem refletir

Dulcinéia colocou a mão na maçaneta e, olhando levemente para trás, respondeu

– Soltou-se da minha mão, Dr Max. Era eu quem havia saído com ela para passear. Foi de minha mão que ela se desprendeu.

Meu olhos se arregalaram diante do fim da história. Olhei para Max como a entender a manobra que ele me havia anunciado.

– A maçaneta, Max…. agora eu entendi.

Max ajeitou seus cabelos caóticos mais uma vez e sorveu o último gole de seu cappuccino. A brisa sombria entrava pelas frestas da porta à frente enquanto os sons da noite nos convidavam a um abraço e um até breve.

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