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Ambrosia

Mão-de-areia

Esta é uma história verídica, mas os nomes dos personagens foram trocados.

Conheci Ildo há muitos anos atrás quando fazia meus primeiros plantões como “interno” em um pronto Socorro da minha cidade. Ao contrário do Dr Emerson, meu colega das quartas-feiras, eu encontrava o Ildo apenas nos plantões de fim de semana. Diferentemente do que acontecia com o Dr Emerson eu não precisava chamar Ildo de “doutor”, pois Ildo não chegava aos 30 anos de idade, o que era pouca diferença dos meus 20 anos recém feitos. Ele havia se formado há alguns poucos meses em uma faculdade do exterior e estava começando seu trabalho como médico pelo lugar mais divertido: um pronto socorro, cheio de estudantes, colegas jovens e histórias curiosas.

Nossos plantões eram muito divertidos, principalmente porque Ildo tinha uma forma jovial e curiosa de pensar. Era cheio de frases e bordões gauchescos, já que toda sua infância foi passada na fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina. Era recém-casado com uma belíssima mulher que se chamava Angélica. Muitas vezes saíamos de um atendimento e fazíamos uma breve parada em sua casa, na parte antiga da cidade, para um breve café e uma conversa. Eu me encantava com o charme e a beleza de Angélica, que sempre me perguntava como estava a faculdade e mandava lembranças para a minha namorada. Um casal aparentemente feliz e cheios de sonhos.

Uma tarde, num plantão no pronto-socorro, encontro Ildo absolutamente alterado. Não parava de rir e de falar alto. Parecia excitadíssimo com uma novidade. Quando seus colegas médicos se afastaram me aproximei e perguntei a razão de tanta alegria.

– Eu fui escolhido, Ric. Fui chamado. Acabo de receber o telegrama que tanto esperava. Vou para o Rio de Janeiro no mês que vem e vou estudar com o maior cirurgião plástico de todos os tempos: Dr Ivo Pitanguy!

Claro que sua alegria transbordou também para mim. Certamente que isso parecia ser algo fora do comum, uma oportunidade única de estudar cirurgia plástica com um dos mais renomados cirurgiões do mundo, conhecido até pelas pessoas que não são da área médica. Cumprimentei-o e desejei a ele a melhor das sortes.

No nosso último plantão despedi-me de Angélica, sua linda esposa, e disse que sempre me lembraria deles como um casal maravilhoso, amigos do coração. Ela me abraçou e pediu que eu transmitisse à minha namorada um grande abraço, e que um dia queria conhece-la.

Ildo nunca mais voltou àquele pronto-socorro. Seu estágio de mais de um ano com o famoso professor fez com que ele voltasse para nossa cidade já ostentando um nome, uma carreira promissora e muitas promessas. Por informações de amigos eu ficava sabendo de suas conquistas. Uma clínica de cirurgia com seu nome, o casamento que se mantinha sólido, a fama repentina. Parece que as coisas tinham funcionado da maneira como ele sempre desejou. O sucesso havia sorrido para ele.

Aqui se faz um lapso de tempo, e nosso reencontro se deu 25 anos depois da despedida afetuosa em sua casa, no último plantão de pronto-socorro que fez.

Eu estava deixando o hospital, na frente do elevador do quarto andar, depois de uma visita pós-parto. Olhava fixamente para a porta metálica esperando que ela se abrisse quando sinto uma mão em meu ombro, seguida de uma expressão e um sotaque “gaudério” inconfundíveis.

– Mas e aí vivente, que tal?

Só um guasca de fora fala assim. Era Ildo, com seu costumeiro cumprimento gauchesco.

– Ildo, disse eu, !! Como vai? Quanto tempo? O que fazes aqui?

Eu sabia que ele dificilmente estaria operando um paciente naquele hospital, já que era dono de uma clínica famosa de cirurgia plástica na cidade. Sua presença era no mínimo estranha, como alguém muito “chique” para estar em um hospital comum como aquele.

– Eu… bem, eu… vim visitar uma parente minha que está internada.

Seu titubeio me passou despercebido, mas não insisti na pergunta.Talvez não quisesse que eu perguntasse o que ela tinha, ou apenas julgou que não era um assunto importante para interromper de um reencontro depois de um quarto de século.

Ildo continuava um homem muito bonito. Estava bem mais magro do que quando o conheci, mas guardava uma nobreza facilmente identificável. Roupas caras, andar portentoso, um relógio dourado e extravagante. Um homem de sucesso.

– E a …..

– Zeza? Vai bem. Tivemos dois filhos, que já são grandes.

– Parabéns Ric!!

– E Angélica como vai? Eu, obviamente, me lembrava muito bem do nome de sua esposa.

– Vai muito bem, melhor do que nunca.

– Eu não acredito que ela ainda está com você!! Ela não conseguiu arrumar nada melhor? Que desperdício!!

Conversas de homem, superficiais, tolas e divertidas.

Subitamente ele ficou sério e me olhou de uma forma diferente. Fixou-se em meus olhos e perguntou:

– E você Ric, o que fez da sua vida? Resolveu mesmo ser obstetra? E então, ficou rico?

Eu sorri e respondi que ser rico era uma possibilidade praticamente impossível, mas que nunca foi meu objetivo. Trabalhava com o que gostava e da forma como desenhei muito cedo na minha vida. Humanizar o nascimento era um ofício e uma bandeira; um trabalho e um sonho de vida.

Ele continuou a me olhar como que tentando me decifrar. Finalmente falou de si.

– Pois eu fiquei rico, muito próximo do que se pode chamar um milionário. Comprei casas, apartamentos, mansões, uma clínica, um pequeno Iate, dinheiro no banco, viagens pelo mundo todo. Fui o introdutor no nosso meio de uma técnica que vi no Rio de Janeiro e que estava começando a ser utilizada por aqui. É a lipoaspiração, conhece?

Abanei a cabeça sorridente. Como não conhecer algo que havia revolucionado a cirurgia plástica?

Ele continuou.

– Pois choviam paciente para fazer isso. Eu ganhava em dólares. Cinquenta, as vezes cem mil dólares em um único mês. Era muito dinheiro. Fiquei muito rico mesmo.

Curiosamente eu não percebia na conversa do meu colega Ildo nenhuma arrogância. Não era exibicionismo o que eu presenciava; era algo bem mais profundo. Ildo parecia trazer à tona um relicário de sua vida, uma avaliação de suas conquistas e do valor real que elas tinham. Parecia ter perguntado sobre o meu percurso apenas para relativizar o seu. Não havia uma sensação de vitória ou de plenitude em suas palavras. A imagem que eu via era a de um homem que desejava ansiosamente saber o valor do que conquistara, e se o que ocorreu com ele valia a pena.

– Não, Ildo. Minha vida passou longe disso. Não nasci com este talento. Gosto de atender minhas pacientes, tenho um grande prazer em atender partos, mas nunca serei rico. Não tenho nada contra ser milionário, mas jamais me esforcei nesse sentido.

Ele não ficou constrangido com a minha resposta, e sequer achou que eu estava desprezando sua capacidade de fazer dinheiro. Seu olhar era de sincero questionamento. Parecia querer saber o que havia acontecido naqueles 25 anos que nos separaram.

– Bem, foi um grande prazer lhe reencontrar, Ric. Continue seu trabalho sempre. Eu vou indo, pois estão me esperando. Um abraço para ….

– Zeza, disse eu.

– Isso, mande um abração para ela.

Desejei o mesmo para Angélica e olhei sua silhueta virando a curva do corredor, enquanto eu aguardava a chegada do elevador. Caminhei até o estacionamento do hospital e liguei meu velho carro.  Antes de sair ainda olhei para os lados, esperando encontrar a Mercedes ou BMW que eu imaginava ser do meu colega Ildo. Não os vi, mas me diverti pensando nos 25 anos e nos milhões que nos separavam.

Algumas semanas depois encontro sobre minha mesa, ainda dentro da capa plástica, o exemplar de uma revista médica da minha cidade. Normalmente eu nunca leio nada dessas publicações, pois as matérias são essencialmente corporativas, mas dessa vez eu resolvi folhear. Entre matérias insossas e fotos de medalhões locais encontrei na última página um quadro de obituário médico. Nela apareceram nomes de médicos que eu nunca ouvira falar, até que meus olhos repousaram sobre um nome conhecido.

– Dr Ildo Buaiz.

Cheguei a me assustar ao ver o nome do meu colega na lista de falecimentos. “Como poderia ter morrido, se há poucas semanas o encontrei no hospital, quando pudemos trocar ideias e recordar o nosso passado nos plantões do Pronto-Socorro?

Como aquilo aconteceu? Pensei num homônimo, mas dois médicos na minha cidade com o mesmo nome? Não parecia razoável. Achei que a melhor hipótese seria um acidente. No nosso país as pessoas morrem todos os dias nos mais absurdos desastres de automóvel, e meu colega Ildo poderia ter sido mais uma vítima dessa tragédia cotidiana.

Alguns dias depois indiquei uma cirurgia no hospital e pedi para minha colega Andréa para que viesse ao hospital me auxiliar. Durante o procedimento eu comentei que ainda estava abalado pela morte de um colega nosso, de forma repentina e sem explicação até agora. Contei o episódio de nosso encontro na frente dos elevadores do hospital e da minha surpresa com a notícia.

– Como é o nome dele, disse minha colega.

Eu disse que se chamava Ildo Buaiz, um antigo amigo e colega do tempo do Pronto-Socorro.

Ela parou estática me olhando e exclamou:

– O Ildo é da minha cidade, lá da fronteira. Eu não sabia!! Mas ele é jovem, não tinha 50 anos! Que será que houve?

Expliquei a ela que não tinha ideia, e que ele me pareceu bem durante nosso breve encontro, apesar de estar bem mais magro do que no tempo que fazíamos plantão.

– Deixe comigo, Ric. Vou descobrir o que houve.

Passaram-se algumas semanas e reencontrei Andrea em outra cirurgia. Perguntei se ela tinha notícias daquele caso do nosso colega e ela disse que me contaria depois de terminada a operação, na sala do café. Depois de finda a nossa tarefa, nos encontramos na sala de conforto médico, e ela me contou a história que havia desenterrado.

– Câncer, Ric. Fulminante.

– Sério? Que coisa!!

– Um tumor galopante. Ele fazia tratamento nesse hospital, foi por isso que você o encontrou aqui.

Visitar uma parente”, disse ele. Em verdade ele estava se tratando, mas não quis me dizer.

– Sim, Ric. Ele teve um tumor raro e absolutamente inoperável. Em poucos meses ele passou de um cidadão rico e feliz para um quadro desesperador. Foi rápido demais, até para poder se adaptar à essa realidade. A vida às vezes tem dessas surpresas.

Enquanto ela me descrevia as informações que colhera com seus familiares na sua cidade eu tentava recuperar da memória os detalhes do nosso breve encontro. “E você Ric, ficou rico?”. Essas palavras agora tinham um outro sentido, mas confirmavam a clara impressão de que não se tratava de exibicionismo ou arrogância. Não, ele apenas queria saber o que significava toda a sua vida, os seus sucesso, sua fama e seu dinheiro. Tudo parecia escorrer pelos dedos.

– Ele faleceu aqui no hospital, continuou Andrea. Ele sempre foi muito discreto, mas lá na minha cidade todos acabaram sabendo. Ele era muito querido pela família. Seu pai foi político e era um homem influente. Uma tristeza isso. Jovem, bonito e bem sucedido.

– Muito triste, respondi

– Conheço uma tia dele que mora lá, e falei com ela há algumas semanas. Nos últimos dias antes de falecer ele pedia a ela que trouxesse de nossa cidade um presente muito especial, algo que o fazia voltar aos seus tempos de criança, quando tomava banho no rio e caminhava descalço pelo campo.

– O que era?

Ambrosia. Ele era louco por ambrosia, mas se privava de comer para não engordar. Durante muitos anos não fez o que seu desejo mandava, mas quando percebeu que seus dias estavam contados resolveu aproveitar seus últimos momentos fazendo o que lhe dava tanto prazer: uma deliciosa ambrosia com calda açucarada.

As palavras do meu colega ainda ecoavam na minha cabeça. Seu olhar fixo era em busca de respostas para o sentido de sua vida. Provavelmente por muitos anos ele pensou que a vida era feita para obter sucesso e usufruir das coisas que o dinheiro pode comprar. Seus dólares, entretanto, não foram suficientes para comprar o mais caro de todos os bens: o tempo. Antes de chegar à terceira idade seu tempo se esgotou, e toda a riqueza que ele conquistou na vida perdeu completamente seu sentido.

Era isso que Ildo perguntava para mim: “Qual o sentido da vida? Qual a importância de lutar para conquistar valores que se esvaem por entre os dedos?

Eu não sei Ildo, não posso lhe dizer. Mas creio que a próxima vez que tiver vontade de comer uma ambrosia lembrarei de você, e vou saborear sabendo que esta é uma das melhores coisas da vida. E que as coisas mais importantes não podem ser compradas com dinheiro, mas são os afetos que plantamos durante nossa existência.

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