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Sono

No meu tempo de residência existia uma expressão muito utilizada por nós chamada “pós plantão”. Ela servia para exemplificar qualquer incapacidade cognitiva temporária que afetava as nossas atitudes. Tipo “esqueci onde deixei a chave do carro”, e todo mundo dizia “ehhh, seu pós plantão”. Outra era esquecer uma prescrição, ou nao lembrar de avaliar uma paciente e depois dizer “Bahh, esqueci… total pós plantão mesmo”.

Havia até um residente que, de tão avoado, era chamado “Juninho Pós Plantão“.

Também servia para gracejos sexuais. Garotos e garotas avaliavam os atrativos dos colegas usando essa expressão. Para os meio-feios (como eu) elas diziam “Ahh, quem sabe, num pós plantão, né?”. Ou seja, para achar interessante tinha que estar com o sensório e a capacidade de julgamento levemente abalados.

Isso apenas mostra o que muitas pesquisas esclarecem sobre a baixa a qualidade das atitudes tomadas após noites mal dormidas. Um exemplo típico é esse estudo com alunos de escolas médicas do Paquistão que demonstra a baixa qualidade de aprendizado por um regime de noites mal dormidas. Diz a conclusão: “Estudantes de medicina do Paquistão têm má qualidade de sono, o que tem um impacto negativo em seu desempenho acadêmico. O sono adequado é essencial para refrescar os alunos todos os dias e ajudá-los no aprendizado e no processamento da memória.”

Desta forma parece razoável aceitar o quanto é essencial para o aprendizado de Medicina que estudantes e seus tutores compreendam os efeitos negativos da privação de sono para os acadêmicos. É fundamental que o ensino de medicina (e enfermagem, assim como obstetrícia) seja desta forma humanizado, otimizando o aprendizado ao levar em consideração o que a ciência já conhece sobre os efeitos do sono adequado sobre nossa mente.

Quantos erros diagnósticos não ocorreram em decorrência de um regime desumano e cruel sobre alunos e residentes? Não seria possível transformar o “rito de passagem” da residência médica (segundo a perspectiva de Robbie Davis-Floyd) fosse menos violento para os médicos em formação?

Creio que sim…

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Lixo

Já pensou a situação de um policial que prende o mesmo meliante todas as semanas cometendo o mesmo crime? Ou quando esse morre e percebe que outro ocupou a sua vaga?

O que dizer do médico que trata as verminoses das crianças que moram ao lado do valão imundo que atravessa a favela? E o mesmo profissional que trata indefinidamente uma hipertensão cujas causas estão debruçadas em uma vida já cheia de pressões e dramas terríveis? E a professora que pede que seu aluno, que mal se alimenta direito, leia os livros que ela recomenda?

Como se sente um profissional que percebe que sua atuação é insuficiente para mudar a realidade, e que tudo o que faz é enxugar o gelo de um problema cuja abrangência seu trabalho é incapaz de alcançar?

Há que ter muita força de vontade para enfrentar o cotidiano dentro de um sistema que nos esmaga, nos fere e nos maltrata. Na verdade, dentro desta sociedade somos meros lixeiros, e nos limitamos a retirar uma parte dos rejeitos emocionais e sociais que nos sufocam, pois que a cada dia se multiplicam e se acumulam.

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