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Império dos Diplomas

Li uma postagem de profissionais que se sentem cansados pela interferência de curiosos na sua área de atuação. A mensagem, escrita numa caneca de porcelana, dizia: “Por favor, não confunda sua pesquisa no Google com meu diploma”.

Na medicina percebi durante muitos anos o mesmo fenômeno: médicos indignados com as opiniões de “curiosos” ou com as pesquisas que leigos fazem na internet antes da consulta. Apesar de entender a preocupação, no meu modesto ver reclamar desse “fato social” de nada adiantará. As pessoas continuarão a ler, se informar e tentarão encontrar por si mesmas as respostas para seus dilemas e angústias, sejam elas jurídicas, médicas, nutricionais ou de qualquer área técnica. A abordagem dos médicos, dos advogados e de outras profissões deve ser através da absorção desse novo paradigma de conhecimentos disseminados, e não combatê-lo com autoritarismo.

Com todo respeito que eu possa ter pela preocupação dos profissionais, eu creio que esse tipo de manifestação é essencialmente deselegante. Quem faz tais afirmações está usando o conhecido “argumento de autoridade”. Dá a entender que as “pessoas comuns”, com informações de domínio público, curiosas e com interesse em um determinado assunto, não podem questionar a autoridade que é oferecida a alguns através de um diploma. Trata-se do famigerado “lugar de fala” aplicado às conquistas acadêmicas, e bem sabemos o quanto esse tipo de atitude produziu revolta nos últimos anos ao estabelecer “eleitos” que exigiam o monopólio do discurso. Calar a boca do outro, considerando-o indigno de emitir sua opinião, jamais será uma ação positiva.

As pessoas podem sim questionar o que dizem os advogados, médicos, mecânicos e técnicos das mais variadas formações sem terem um diploma exposto na parede. Estes profissionais podem cometer erros de percepção e até de conteúdo, e não é infrequente que sejam alertados pelos seus clientes ou por pessoas que olham através de uma perspectiva distinta. No caso da Medicina, o “Dr. Google” ameaça apenas os médicos inseguros e arrogantes; a informação absorvida pelo paciente não é ruim ou inadequada, e pode mesmo auxiliar o médico a encontrar alternativas de diagnóstico e prognóstico. Esta lógica pode ser usada com os advogados, engenheiros, professores e todas as outras profissões.

Aceitar como imutável e inquestionável a disparidade de saberes, sem permitir a maleabilidade dos poderes, acaba estimulando um autoritarismo do conhecimento formal em detrimento da democracia da informação. É verdade que muitos se alçam à condição de “experts” pela simples leitura de poucas páginas na Internet, mas esse é um efeito inexorável da disseminação do conhecimento. Deve ser refreada, mas não através do silenciamento. Tentar fazer valer o “Império do diploma”, silenciando as vozes populares que questionam o poder dos especialistas, não ajudará o progresso e só aumentará a autoridade dos maus profissionais. 

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Arrogância

Eu conheci médicos profundamente pedantes na minha trajetória de vida. Entre eles, eu mesmo. Alguns deles eram contidos, não tinham falas tão arrogantes; entretanto, mesmo estes conversavam com pacientes, enfermeiras, funcionários do hospital e familiares como se fossem desbravadores da selva africana do século XIX, tentando dialogar com aborígenes de terras invadidas, enquanto entendiam como superior sua cultura europeia e branca.

Em verdade, mesmo entre aqueles contidos, existem sinais característicos no tom de voz, na entonação, na escolha das palavras e no caráter paternalista das orientações oferecidas, as quais denunciam a percepção pervertida de superioridade dos médicos em relação ao resto do mundo, herança de milênios de medicina exercida sob o signo da magia, da dissimulação e da encenação.

Hoje eu enxergo os médicos ocidentais como colonizadores que tomam posse do corpo dos pacientes trazendo nas mãos sua “Bíblia” de significados, diagnósticos, prognósticos e curas, a despeito da verdade subjetiva que cada um dos sujeitos à quem tratam carregam eles mesmos como roteiro. Esta verdade, inobstante o lugar e o contexto, sempre vai se expressar através de seus sintomas e dramas, que são essencialmente fissuras na crosta do sujeito que nos oportunizam enxergar a profundidade que se agita sob a fina camada que os recobre.

Ainda carrego como verdade a ideia de que “aquilo que o paciente traz como sintomas é, em verdade, seu maior tesouro”. Deixar de escutar suas dores e negar-se a ver o brilho de suas queixas, impondo a eles um catecismo rígido de doenças e rótulos, é limitar a infinita capacidade humana de expressar, inclusive na tessitura mais firme do seu corpo, suas inexoráveis frustrações. A arrogância dos médicos, e a distância artificial que se cria entre terapeuta e paciente, será sempre um anteparo à livre circulação da energia curativa.

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Os Médicos e a Escuta

Esse é um um dos problemas clássicos da medicina: fale por não mais do que cinco minutos com um médico tradicional, formado em uma universidade padrão, e diga a ele que sua dor de cabeça ocorre quando está para chover, ou que sua pressão no peito melhora quando chora muito. Em poucos instantes verá o quanto a descrença nas palavras dos pacientes funciona como uma religião niilista, que sustenta sua arrogância e mantém a ilusão de superioridade que carrega sobre todos os outros mortais.

Para ele, os pacientes produzem ilusões sobre si mesmos, ficções criadas para dar sentido às suas dores, mas apenas o médico, dotado do saber iluminista e isento de preconceitos, consegue desvendar o que sequer o paciente é capaz de descobrir. Repito a pergunta do amigo Cláudio Sousa: “que satisfação resta a este c(l)ínico tão desencantado com as mentiras que seus pacientes contam?”

A coisa mais bela da arte médica é a capacidade – que raríssimos médicos possuem – de escutar seu paciente, sem confiná-lo a uma lista diagnóstica, uma caixa constrita de verdades pré-estabelecidas, valorizando o que o paciente tem a dizer sobre si mesmo, produzindo suas próprias verdades.

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Gênios e Médicos

Um portal de notícias do Brasil publicou há alguns dias que um garoto superdotado de 14 anos havia passado nos vestibulares para medicina e também para aeronáutica. O texto da matéria estava centrado nas capacidades especiais do menino, que tão cedo em sua vida já tinha sua capacidade fora do comum comprovada pelas aprovações em cursos de difícil acesso. Eu todavia, olhei para outra perspectiva do caso. Escrevi abaixo da notícia que esperava que sua escolha de curso fosse direcionada para a aeronáutica. Expliquei que sua “genialidade” se aplicava muito mais às ciências exatas, e muito menos às demandas múltiplas e complexas que produzem um bom médico.

O meu ponto de argumentação é que a medicina não precisa de gênios; ela precisa de sujeitos dedicados e compassivos. A medicina necessita pessoas capazes de produzir – ou estimular e manter – a saúde através de um talento muito especial, que dificilmente pode ser medido por provas ou testes de QI.

Um gênio atuando na Medicina tende a reproduzir um “Dr. House”, tão genial quanto péssimo médico; cruel, desrespeitoso, insensível e desumano…. porém, com diagnósticos brilhantes. Todavia, a medicina não é a arte de “descobrir mistérios”, “tatuar diagnósticos” na testa dos pacientes ou “estabelecer prognósticos” baseados em estatísticas frias. Não, a medicina é “L’art de guérir”, “Ars Curandi”, a arte de curar. A medicina é uma prática complexa que demanda inúmeros talentos e que faz uso das outras ciências – como a bioquímica, a biologia, a anatomia, a fisiologia, a patologia, etc – para se expressar.

Da mesma forma que um pintor se utiliza de técnicas e até de seus conhecimentos de química para a elaboração das tintas, a sua ação é artística por excelência por congregar uma série de talentos e habilidades e, acima de tudo, uma específica percepção da realidade que se expressa através de suas obras.

Também os médicos precisam congregar seus conhecimentos sobre o corpo e seu funcionamento com a capacidade de captar os sinais de desequilíbrio que são manifestos nos limites da sutileza. Talvez, usando o raciocínio de Lacan, a maior virtude de um médico seja a idade, visto que só com o tempo e a experiência é possível afinar essa sensibilidade e apreender os signos necessários para a compreensão holística do sujeito.

Quando todas as tecnologias forem usadas e todas as máquinas calcularem sua saúde e seus riscos, ainda assim desejaremos que a receita nos seja entregue por alguém tão humano quanto nós, capaz de entender o sofrimento alheio olhando no fundo dos olhos de quem lhe procura. Somente o conhecimento da nossa própria finitude pode nos oferecer a entendimento da morte que se acerca dos outros. Desta forma, a medicina não é para os gênios que gabaritam provas ou que se alfabetizam aos três anos de idade. Medicina é ofício artístico, é dedicação, é a capacidade de sentir em si a dor do outro que sofre; é oferecer a mão a quem precisa de uma esperança. A medicina pressupõe a empatia como elemento essencial. Ela não se adapta às exatidões, mas essa é exatamente a sua tarefa mais sublime: cuidar do sujeito como ser único e especial.

Para os gênios sobra a especial tarefa de trabalhar na pesquisa, na compreensão última do que nos adoece e nas formas de intervir nas doenças. Estes serão sempre um ótimo suporte para os médicos, aqueles que, na ponta da atenção, amparam os enfermos e aqueles que sentem as dores no corpo e na alma.

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Médicos

Eu acho que, inobstante o avanço da ciência e da tecnologia, não há como os médicos tornarem-se obsoletos e trocados por equipamentos, por mais sofisticados que eles se tornem. Por outro lado, estes médicos que consideramos “top de linha” – que em verdade são bons ou excelentes técnicos – poderão ser substituídos por robôs ou terão suas ações realizada por engenheiros, sejam eles mecânicos ou geneticistas.

Além disso, imaginem a transformação radical que vai ocorrer na prática médica quando políticos e sanitaristas resolverem os problemas produzidos na saúde pública pela pobreza, a fome, a competitividade doentia, as guerras, a exploração do trabalho, os acidentes evitáveis, o ódio de classe, o racismo e a xenofobia. O que será da medicina quando o capitalismo for superado e não houver mais ódio e desprezo de classe? Quantas vezes atendi pacientes cujo principal diagnóstico era “síndrome da estrutura social perversa”

Como eu costumo dizer, bastaria que a Medicina fosse praticada com plena observância das evidências científicas para que sua prática se tornasse totalmente irreconhecível daquela que se aplica hoje. Imagine isso combinado com um mundo de paz, com a superação da sociedade de classes. A medicina se tornaria um exercício de pura conexão pela palavra. Por esta razão, o médico que produz uma ponte afetiva e profunda com seu paciente jamais será substituído por máquinas, pois a ligação que ele propõe é de alma para alma.

Isso me lembra a forma como os Navajos classificam seu curadores. Longe de romantizar as populações nativas, eu acho apenas que a experiência da medicina num modelo pré-capitalista sempre tem algo a nos ensinar.

Para estes nativos existem 3 níveis de curadores, numa carreira que prolonga por uma vida inteira. O primeiro nível comanda rituais e utiliza algumas ervas curativas. O segundo nível se especializa no uso das múltiplas ervas e substâncias para as diversas doenças catalogadas por sua cultura. Já o último nível, aquele que se alcança depois de ter passado uma vida inteira na função de curador, se ocupa tão somente em oferecer… conselhos.

Assim, a função do curador segue na direção da sutileza, partindo das artes mais densas dos corpos – pessoal e social – e chegando na palavra, a quintessência da cura. Sim, é possível substituir as ações mecânicas dos médicos, mas sempre haverá a necessidade de conectar-se com o suposto saber de alguém que instrumentaliza sua fraternidade no sentido da compaixão e da cura.

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Tchutchuca

Para mim, conforme já disse em outras oportunidades, o grande erro – que a própria imprensa ratifica de forma sistemática – é considerar o CFM como um órgão preocupado com a saúde da população ou com a cura de doenças. Isto é um equívoco. O CFM se preocupa com os médicos – seu valor social e sua importância – a Medicina e seu significado na cultura. NÃO É função do CFM proteger pacientes. Para isso outras instâncias precisam ser criadas. Sugiro a “Ordem dos Pacientes”.

É evidente a impropriedade de misturar saúde e lucros, e o absurdo de ainda termos sistemas de saúde e profissionais que lucram com a doença e/ou com a piora dos pacientes. Por outro lado, muitos ainda continuam acreditando que o CFM tem alguma responsabilidade com a saúde das pessoas ou mesmo com a boa prática médica. Não!!! Estes órgãos existem para proteger os médicos e a Medicina – os quais realmente precisam ser protegidos. Uma sociedade que não protege médicos e profissionais da saúde que atuam na fronteira entre morte e vida produz caos e ações defensivas. Todavia, cobrar dessa instituição que zele pela saúde dos pacientes é um erro que precisamos corrigir com a criação de uma CFP – Conselho Federal de Pacientes, órgão responsável para defender os pacientes contra práticas anacrônicas e prejudiciais, como o abuso de cesarianas, kristeller, episiotomias, circuncisão ritualística e outras práticas sem evidências em todas as áreas da medicina.

Limpar a barra da categoria vai levar muitos anos, porque o problema não é de agora. O que testemunhamos nesse momento é o problema escancarado; porém os médicos assumiram uma postura reacionária e contrária aos interesses nacionais desde a eleição do segundo mandato de Dilma. Foram os médicos que tomaram a frente dos ataques misóginos a ela. Estavam lá debochando do AVC de dona Marisa ou na morte do neto de Lula. Foram os médicos que se recusaram a atender crianças (!!!) filhos de pais de esquerda. Colaboraram com a desestabilização. Atuaram como frente de ataque ao PT assumindo como fala principal os discursos de extrema direita.

O CFM está lotado de bolsonaristas da pior espécie. O episódio da pandemia é apenas o coroamento de uma postura anti-SUS, antipovo, aristocrática, arrogante e perniciosa para a saúde da população. A solução para a Medicina só vai ocorrer quando houver uma transformação radical no sistema de ingresso, impedindo que ocorra o sequestro de uma profissão pelos filhos da classe abastada, que pouco entende e quase nada conhece da realidade da saúde brasileira. Infelizmente a Medicina brasileira é arrogante, alienada e autocentrada. Os professores são aristocratas sem vinculação com as populações marginalizadas.

Sei que é uma generalização e que existem exceções importantes e atuantes, mas são minoritárias. A face da medicina brasileira não é boa, e isso ficou muito claro com a deplorável atuação do CFM no desenrolar da crise sanitária.

Esse mesmo CFM que ataca médicos humanistas e promove perseguições covardes a eles e à enfermagem, é a instituição que jamais mexeu um dedo para questionar os médicos que promovem abusos de cesarianas. Já parou para pensar a razão dessa dupla moral? Ora… o CFM só ataca quem ameaça a supremacia médica ao questionar suas ferramentas de intervenção. Jamais quem as usa de forma abusiva e perigosa, colocando em risco a integridade de pacientes.

Ou, como se diz no popular…“Feroz com humanistas, tchutchuca com cesaristas”.

Veja mais aqui na matéria do El País

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Escafandristas

Durante muitos anos eu me perguntei as razões pelas quais uma das carreiras mais instigantes e criativas, que se encontra na linha de frente da saúde e das crises mais importantes e decisivas da vida, é conduzida pela camada mais reacionária, conservadora e politicamente atrasada da sociedade, e porque esta categoria profissional jamais oferece qualquer visão revolucionária para a condução da saúde. Pelo contrário; sempre que uma perspectiva mais libertária aparece – como a humanização do nascimento – estes sempre se comportam como o principal obstáculo a ser vencido para que as propostas alcancem sucesso. São, basicamente, o muro a ser ultrapassado para que um avanço estrutural aconteça.

Apesar de entender a complexidade desta resposta ainda creio que ela deverá estar próxima do específico processo de seleção dos novos médicos, e também guarda relação com a camada da população que recorre a estas carreiras, as oligarquias médicas, o vestibular que seleciona aqueles que tem tempo e dinheiro para uma preparação adequada, etc…

Mais intrigante ainda é o fato de que os raros casos de jovens pobres e da classe proletária que conseguem ingressar na carreira médica imediatamente se comportam como se fossem garotos quatrocentões, escondendo seu passado de pobreza e assumindo naturalmente os valores, os gostos, a visão de mundo e o estilo de vida dos seus colegas burgueses. Assumem com plena naturalidade o discurso e a postura daqueles que, outrora, viam como opressores.

Não deveria causar espanto que os elementos da pequena burguesia que ascendem à carreira médica reproduzam em seu discurso e na sua ação pública uma postura de reforço de suas prerrogativas e privilégios, desprezando as iniciativas de democratização do acesso à saúde e uma visão mais holística da questão da atenção médica. Em verdade, a visão desses profissionais – em sua grande maioria – é completamente caolha, pois que em sua experiência de vida jamais tiveram contato íntimo e continuado com os dilemas, dramas, tragédias, escolhas e dificuldades cotidianas das populações pobres e que vivem em situação de risco. Muitos sequer entendem o significado real e físico da fome, o problema da violência endêmica, o risco de um temporal ou enchente e o consequente desespero do desteto. Olham para estes fatos com distanciamento e por vezes espanto, sem se dar conta de que são eles próprios a exceção na sociedade, e não a norma.

Todavia, muitos deles são obrigados, quando no serviço público, a atender estas camadas da população, mas o fazem como escafandristas que, isolados em sua bolha de classe média, vasculham as dores e feridas de seus pacientes sem jamais respirar o mesmo ar que os circunda.

Mundos diferentes, valores distintos, roupas e idiomas meramente semelhantes. Médicos são elementos de uma classe que pouco ou nenhum contato estabelece com a imensa maioria das pessoas a quem atendem. Essa distância de histórias e perspectivas está na gênese de muitos desencontros e dificuldades na atenção médica. Para que a Medicina cumpra sua função primordial de acolher e cuidar do sofrimento humano esse abismo precisa ser vencido e, para isso, uma visão completamente diversa do que seja cuidar da saúde deverá emergir das profundezas do nosso Apartheid social.

Escrevi outro texto sobre o tema, que pode ser visto aqui

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Homenagens

Olha, não quero polemizar (mentira), mas hoje a maior empresa de comunicação do Rio Grande do Sul convocou a população para uma homenagem aos profissionais da saúde que estão lutando heroicamente na linha de frente contra a pandemia da Covid19.

Ok, nada contra homenagear categorias profissionais que cumprem com sua obrigação e ajudam a salvar vidas. Não vou sequer reclamar do fato de que outras categorias da linha de frente como as técnicas de enfermagem, o pessoal da segurança, a turma da limpeza, etc… via de regra não são lembradas. Todavia, desconfio muito destas iniciativas. Minha experiência diz que as homenagens são frequentemente usadas como “pagamento alternativo” para que os profissionais não reclamem da sua situação profissional.

Eu estava no Hospital de Clínicas quando um político da cidade tentou homenagear as enfermeiras chamando-as de “anjos de branco”, e recebeu como resposta uma sonora vaia das enfermeiras presentes – que inclusive o deixou perplexo. As enfermeiras sabiam que essa ideia de “anjos” – seres assexuados e que trabalham apenas por amor – servia ao propósito de desprofissionalizar uma categoria historicamente tratada com desprezo pelo capitalismo, com salários baixos, horários cruéis, excesso de trabalho, assédios, abusos, etc. Elas sabiam muito bem que esse tipo de “homenagem” servia aos interesses dos hospitais e dos sistema de saúde, mas não a elas.

Nos Estados Unidos são muito frequentes as homenagens aos soldados que estão lutando nas inúmeras guerras fora do seu território. É inclusive comum aplicarem uma salva de palmas em aeroportos quando um grupo de soldados passa uniformizado. Para mim é o mesmo princípio: vamos fazer homenagens explícitas para que eles não percebam que são usados como “buchas de canhão” para os interesses imperialistas de expandir lucros às custas de guerras estúpidas, cruéis, injustas e destrutivas. Depois, quando retornam, são vistos nas esquinas das autopistas americanas pedindo dinheiro para comer e comprar remédios. Tratados como lixo e descartáveis, são grandes vítimas de suicídio e abuso de drogas.

Homenagear os profissionais de saúde do Brasil com palmas e palavras bonitas serve também para mascarar as péssimas condições de trabalho a que estão submetidos e o pagamento ridículo que enfermeiras, técnicas de enfermagem, médicos e profissionais de limpeza e segurança recebem para enfrentar sem nenhuma garantia e proteção uma pandemia da qual ainda pouco sabemos. Por isso mesmo acho que a homenagem justa é o reconhecimento do trabalho que fazem oferecendo melhores condições e salários mais adequados para o serviço essencial que estão realizando.

Não vou bater palmas; ao invés disso vou continuar reclamando da forma como este e outros governos tratam os profissionais da linha de frente da saúde. Essa é a única reverência que acho justa e correta no cenário atual.

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Lixo

Já pensou a situação de um policial que prende o mesmo meliante todas as semanas cometendo o mesmo crime? Ou quando esse morre e percebe que outro ocupou a sua vaga?

O que dizer do médico que trata as verminoses das crianças que moram ao lado do valão imundo que atravessa a favela? E o mesmo profissional que trata indefinidamente uma hipertensão cujas causas estão debruçadas em uma vida já cheia de pressões e dramas terríveis? E a professora que pede que seu aluno, que mal se alimenta direito, leia os livros que ela recomenda?

Como se sente um profissional que percebe que sua atuação é insuficiente para mudar a realidade, e que tudo o que faz é enxugar o gelo de um problema cuja abrangência seu trabalho é incapaz de alcançar?

Há que ter muita força de vontade para enfrentar o cotidiano dentro de um sistema que nos esmaga, nos fere e nos maltrata. Na verdade, dentro desta sociedade somos meros lixeiros, e nos limitamos a retirar uma parte dos rejeitos emocionais e sociais que nos sufocam, pois que a cada dia se multiplicam e se acumulam.

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Os Heróis da Capa da Revista

Que absurdo.

Essa “babação de ovo” para a corporação é tremendamente ridícula e injusta com o contingente MUITO MAIOR de enfermeiras, obstetrizes, doulas, técnicas de enfermagem e do pessoal de apoio (limpeza, motoristas, porteiros, etc) que trabalharam – muitos com o sacrifício da vida – nessa pandemia. Sim, os médicos se sacrificaram também, mas não mais que os policiais todos os dias, os bombeiros, os lixeiros, os salva vidas, os eletricistas, os funcionários que colocam cabos de telefonia etc. Não há porque chamar de heróis aqueles que cumprem sua função com dignidade e honestamente.

Nem preciso falar sobre o apoio institucional e disseminado ao golpe de 2016 entre os médicos, o que os torna responsáveis pela agressão à democracia e a eleição de Bolsonaro.

Fica evidente que por trás disso está a exaltação politiqueira do Mandetta, um médico cuja vida foi dedicada à desvalorização do SUS e SÓ POR ISSO foi escolhido pelo Bolsonaro para liderar a pasta da saúde. Ele não é herói de nada, não passa de um ex-bolsonarista que tenta limpar seu currículo cuspindo (agora) no prato onde comeu.

Tudo isso para lançar um nome da direita limpinha para 2022.

PS: esse post não é para desvalorizar o importante trabalho dos médicos, mas para ressaltar a injustiça de premiar um grupo em detrimento dos outros profissionais – tão ou mais importantes.

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