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Hereges

Acho curioso o investimento que se faz em tecnologia aplicada à gestação, o período da vida de uma mulher onde se concentram os mais intensos medos atávicos e onde se manifesta o maior temor das mulheres: não ser capaz de gerar e parir seus filhos com segurança. Agora surgem no mercado empresas sofisticadas que oferecem serviço de ultrassonografias seriadas, insinuando que este acompanhamento aumenta as chances de “ter um bebê vivo e saudável no colo” (sic). Esse tipo de serviço representa o ápice da alienação, onde se consuma o afastamento mais intenso da mãe com seu bebê. Como a antropóloga americana Robbie Davis-Floyd já dizia há décadas, depois de convencermos a todos – em especial as mulheres – de que o corpo feminino é frágil, falho e incompetente, nada melhor do que “arrancar” o feto do seu ventre e colocá-lo dentro de uma máquina, onde poderá ser medido, vigiado, avaliado e cuidado por pessoas confiáveis – médicos, cientistas – afastando-o dos perigos representados pelo corpo incompetente da sua mãe.

Eu, pessoalmente, acho esse movimento na cultura absolutamente inaceitável. Ele representa a subserviência suprema da mulher à tecnocracia, guiada pelo medo construído e disseminado pela cultura que, agindo de forma oportunista, gera lucros para médicos, indústrias de equipamentos e instituições, porém sem oferecer o que explicitamente promete através de propaganda.

Em tempo: não existe nenhum estudo até hoje publicado que demonstre que ecografias seriadas de rotina melhoram resultados maternos e neonatais em gestações de risco habitual. Ou seja: trata-se de um embuste tecnológico, mas que é vendido como “o futuro”, “tecnologia aplicada”, “prevenção” e “cuidado”…

Sim, é muito difícil gerar consciência nas pessoas, explicando a elas que tais exames não diminuem os riscos de uma gestação sem que haja uma indicação clara para o seu uso. Isso ocorre porque a tecnologia assume o lugar da religião no imaginário social, a qual nos vinculamos de forma irracional porque criticar seu uso é o mesmo que questionar a razão e o conhecimento científico. Guardadas as proporções, seria como explicar para um sujeito qualquer na Idade Média que fazer uma romaria ou rezar um terço não melhoraria suas chances de sobreviver à peste negra. Para ele não rezar seria inadmissível, pela potente conexão mágica que estabelece com esse ato, da mesma forma como a gestante se sente insegura se não se submeter a várias ecografias, nem que seja para dar “uma olhadinha e ver se está tudo bem”.

Na idade das trevas se você não rezasse e fizesse penitências seria uma herege que não merece a salvação. Hoje, se você fizer apenas os exames que comprovadamente melhoram suas chances durante a gestação, você será considerada uma irresponsável e relapsa.

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