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Médicos

Na verdade essas recomendações de exames médicos anuais, ou mesmo bianuais, se prestam a um sistema de controle biomédico sobre a população, agindo como uma “polícia da saúde” que constrange os sujeitos para que entreguem sua intimidade aos profissionais da saúde. Trata-se de um projeto higienista que coloca os profissionais de saúde na posição de “juízes dos comportamentos”, interferindo na alimentação (você está proibido de… complete com o vilão alimentar da moda), na vida social, nos sentimentos (aqui entra a criminalização da tristeza), nos desejos (aqui o papel fundamental da medicina na criminalização das práticas heterodoxas da sexualidade) e na vida política (e aqui podem entrar os médicos que fazem proselitismo político em consultório). Cabe ainda lembrar dos casos de médicos denunciando mulheres que fizeram abortos, numa atitude policialesca e que viola de forma grave o pacto de confidencialidade – que é o centro da ética profissional. A discussão contemporânea de denúncia compulsória de violências de gênero – que também violaria a confidencialidade – entra no mesmo debate.

Essa função social do médico (tão bem descrita por Foucault) ainda está ancorada em uma gigantesca e multibilionária indústria farmacêutica que transforma os médicos em “despachantes de drogas”, criando e mantendo pacientes escravizados a substâncias químicas, seja pela dependência direta da ação das drogas, ou pela vinculação psicológica, produzida por uma narrativa centrada no valor curativo de elementos externos – como drogas e cirurgias – que em última análise reforçam e mantém o poder médico. A medicina contemporânea acaba se tornando tanto um poder político quanto um braço que sustenta o patriarcado e o capitalismo.

Lembro apenas as palavras do meu querido Max, que há mais de 30 anos me afirmava “A medicina como projeto de cura vai se tornando paulatinamente mais diáfana e sutil, até o ponto em que se torna pura pedagogia…. e empatia.

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Xamãs

Quando planejei meu transcurso pelo Caminho escolhi a dedo meus parceiros de viagem. Além de Bebel e Juliana, minhas lindas parceiras físicas, convidei parceiros virtuais para me acompanharem nas longas marchas solitárias pelas paisagens estonteantes do País Vasco, La Rioja, Navarra, León y Castilla etc. Assim, trouxe comigo Illan Pappé, Max Blumenthal, Chris Hedges, Ruppert Sheldrake, David Harvey, Yanis Varoufakis e outros. Entre tantos personagens também trouxe uma palestra do psicanalista Christian Dunker, a qual me chamou a atenção pela sua definição de “Xamã”.

Nesta palestra Christian Dunker cita Viveiros de Castro, que por sua vez se refere aos estudos do antropólogo Claude Levy-Strauss, para falar dos Xamãs e com isso traçar uma interessante analogia com os psicanalistas. Eu peço licença ao Chistian para, pegando carona em sua análise, tentar entender a dinâmica dos obstetras humanistas através dessa mesma perspectiva.

Dizia ele que os Xamãs são muito mais do que uma profissão, uma arte ou um conjunto de técnicas. Eles se expressam como “função”, na mesma linha das funções maternas e paternas, que não necessariamente são exercidas pelos sujeitos mãe e pai. Xamãs são, basicamente, funções sociais. Também nos afirma que existem basicamente dois tipos de Xamãs: os “horizontais” e os “verticais”.

Os primeiros são os guerreiros; descobrem o “mal” no outro grupo e os atacam para assim reforçar a sua própria identidade. Entre os parteiros, são aqueles que acusam os hospitais, o sistema, os “cesaristas”, os “enganadores”, os “oportunistas”, os “fofinhos”, os “tipo humanizados”, os “Dr Frotinha” e os claramente “pilantras”. Agem mais à sombra, na escuridão, na belicosidade, com o dedo em riste, corroídos pela (justa) indignação. “Esse cesaristas estão acabando com a arte da parteria”

O segundo tipo é o Xamã vertical. Estes, ao invés de atacarem um inimigo externo, cultuam saberes que os definem em sua singularidade. São os parteiros que devoram protocolos e normas, que estudam a fundo a Medicina Baseada em Evidências, que estabelecem para si e seus iguais marcas de excelência (baixas taxas de episiotomia, taxas de cesarianas dignas, utilização de doulas, técnicas humanizadas, etc). São os guardiães de uma especificidade que só pode ser alcançada por aqueles que carregam seus valores e sua prática. “Não, fulano não pode ser humanizado fazendo tanta episiotomia”.

Estes são os Xamãs clássicos, mas Viveiros de Castro propõe um terceiro Xamã que agora se expressa; nem horizontal, nem vertical: o Xamã “transversal”.

Esta nova função vai se manifestar pela superação das demais. Para além dos ataques aos inimigos em busca de uma identidade ou o reforço das peculiaridades de sua arte – com o mesmo fim – o “parteiro transversal” se dedicará a uma interlocução com os demais saberes para construir uma síntese a partir das teses digladiantes. Para ele não será mais necessário atacar inimigos pois lhe parece muito mais importante entendê-los para posteriormente cooptá-los ao novo paradigma. Ao invés de limites rígidos em práticas específicas vai propor uma mente mais aberta e abrangente, muito mais centrada na ATITUDE humanista do profissional do que na expressão crua de alguns procedimentos e técnicas.

A emergência do parteiro transversal é um sinalizador do enriquecimento do modelo e não de uma fragilização dos princípios norteadores, quais sejam: o protagonismo garantido, a visão interdisciplinar e a postura de respeito às evidências científicas. Seu aparecimento no cenário da humanização denúncia a maturidade conquistada pelos seus antecessores e a disseminação do ideário do parto humanizado a outras distâncias.

Sejamos, pois, transversais.

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