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Impactos

“The Doctor”,1891; Samuel Luke Fields (1844-1927), Óleo sobre tela, Galeria Tate (Londres)

Vejo com frequência pessoas exaltando os progressos da medicina e se espantando ao pensar como a humanidade foi capaz de sobreviver sem eles. Citam os antibióticos, as ultrassonografias, as cirurgias e a vacinação em massa, dando a entender que só sobrevivemos por causa desses tantos avanços tecnológicos. Entretanto, a própria ciência reconhece que o impacto (não confundir com a eficiência) dessas novidades (todas elas surgidas a pouco mais de um século) na atenção à saúde foi diminuto. O aparecimento dos antibióticos, das vacinas e dos diagnósticos por imagem não produziu resultados significativos para a saúde global. Em verdade, o impacto real nunca ocorre por meio da ciência médica, mas da engenharia e da política: muito mais significativos para a saúde foram o saneamento básico, o transporte público, as janelas nas paredes, ventilação nas casas, roupa limpa, trabalho digno, limpeza urbana, higiene pessoal, serviço social, ar respirável, comida saudável e água limpa. A medicina, sem dúvida alguma, salva muitas vidas, e controla doenças que, antigamente, seriam inexoravelmente fatais. Todavia, seu impacto na saúde global humana é tímido.

A tuberculose e a Revolução Industrial tiveram uma relação complexa e profunda. A industrialização, que trouxe em seu bojo a urbanização e aglomeração de trabalhadores em ambientes insalubres e superlotados, contribuiu para a proliferação da doença, que se tornou um dos maiores problemas de saúde pública da época, conhecida como “peste branca”. Esta doença é um exemplo clássico: grande flagelo europeu dos séculos XVIII e XIX, ela teve uma queda brusca na sua mortalidade a partir da aplicação das leis trabalhistas que limitavam as horas trabalhadas, em especial nos porões de navios e no porto de Londres. Quando a estreptomicina começou a ser implementada, o número de pacientes graves já havia diminuído em mais de 90%. Segundo o pesquisador Frost, “nada teve mais influência sobre o declínio da tuberculose que a progressiva melhoria na ordem social” e que “um dos aspectos mais essenciais no efetivo controle da doença é a melhoria do padrão de vida dos estratos econômicos mais baixos”. Ou seja: o real impacto veio por meio da regulamentação rígida das relações de trabalho, a alimentação adequada e sobre a insalubridade da vida dos operários. Os antibióticos vieram muito depois, mas ganharam fama porque, com isso, seria possível vender remédios e fazer girar a roda da fortuna do capitalismo. E, percebam: não afirmo que os antibióticos sejam “inúteis” (apesar de serem perigosos); pelo contrário, salvam vidas e são indispensáveis no tratamento de pacientes gravemente enfermos. Entretanto, sua ação é multiplicada pela propaganda; o real efeito positivo para a saúde das populações vem das transformações sociais que ocorrem em função das lutas sociais.

Outra constatação: de todas as descobertas da área médica do século XX, a mais impactante foi a descoberta do aumento de absorção de água pelo túbulo distal do intestino quando, em uma solução salina, se acrescenta uma pequena quantidade de glicose. Para quem é atento, estou apenas descrevendo algo banal: o soro caseiro. Entretanto, essa descoberta foi brutalmente impactante, capaz de salvar milhões de crianças em África, vítimas de disenteria e outras doenças causadas pela água contaminada ou não tratada. Ou seja, o uso deste tratamento causou até um resultado demográfico, aumentando a expectativa de vida, e foi superior a qualquer novidade da medicina surgida na mesma época.

Em resumo, a tecnologia de medicamentos e equipamentos aplicada à medicina tem valor e preserva vidas, mas sua ação é muito menor do que as medidas sociais, políticas e estruturais que, neste caso, podem fazer revoluções significativas na sobrevida, no bem-estar, na longevidade e na saúde das populações. É essencial ter boas noções de epidemiologia ao tentar avaliar o real impacto da Medicina na saúde. Talvez um bom começo seja lendo Ivan Illich e “A Expropriação da Saúde – Nêmesis da Medicina”. Como pode ser visto na “Encyclopaedia Britannica“, “As visões de Illich sobre a classe médica, expostas em Medical Nemesis: The Expropriation of Health (1975), eram igualmente radicais. Ele contestava a noção de que a medicina moderna havia levado a uma redução geral do sofrimento humano e afirmava que a humanidade era, de fato, afligida por um número cada vez maior de doenças causadas por intervenções médicas. Além disso, argumentava que a medicina moderna, ao parecer oferecer curas para quase todas as condições — incluindo muitas que não haviam sido consideradas patológicas pelas gerações anteriores —, criava uma falsa esperança de que todo sofrimento pudesse ser evitado. O efeito, concluiu ele, era minar os recursos individuais e comunitários dos humanos para lidar com as inevitáveis ​​dificuldades da vida, transformando-os, assim, em consumidores passivos de serviços médicos.”

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Arquivado em Causa Operária, Medicina

Memórias do Homem de Vidro – 14

A Irmandade do Sapato Furado

A linda loura aproximou-se lentamente de mim com aquele andar mágico, tipo flu­tuante, que faz a gente duvidar que seus pés estejam realmente tocando o solo. Ela me lembrava a bela Galadriel de Lothlorien, pelo sorriso enigmático e pelos cabelos louros a lhe cair nos ombros nus. Seu corpo estava coberto apenas com um fino véu alvo e transparente, e trazia brilhando no peito um camafeu dourado. Olhou fundo nos meus olhos e disparou:

— Você pode descobrir. Basta dizer a palavra mágica.

Palavra mágica? Que palavra mágica será essa?, pensei eu. E isso lá é hora de perguntar essas coisas? Shazam? Abracadabra? Hocus Pocus? Não… não direi nenhuma dessas. Muito óbvio. Talvez algo mais sutil.

Enquanto minha mente se torturava tentando entender a charada, escutei uma música que surgia de algum lugar distante. Assemelhava-se a uma melodia árabe. Tentei me fixar nessa sonoridade, enquanto a odalisca misteriosa me lançava mais um sorriso enigmático, cheio de perguntas. Enquanto eu pensava, ela aguar­dava sorridente pela palavra mágica, que “abriria todas as portas”. Mas que pala­vra seria? E que música era essa, que fica cada vez mais estridente? A linda loura se aproximou ainda mais, quase a ponto de me tocar, e começou a dançar ao som da música. Após alguns segundos, sua imagem foi se esvaecendo e ficando dis­tante. Apertei meus olhos insistentemente para fixar sua silhueta, mas pareceu não funcionar. Desisti e abri os olhos finalmente. Eles ficam paralisados em um ponto qualquer, perdidos no infinito cósmico (como me ensinara o astronauta Roger). Uma névoa encobriu minha visão, e a imagem da misteriosa mulher, de tão tênue, restou ape­nas na lembrança. Continuei a escutar a música das arábias, agora insuportavel­mente forte. A bruma aos poucos se dissipou e as imagens voltaram lentamente a se formar na retina. Não sem esforço consegui vislumbrar uma frágil luz verde pis­cando ao meu lado.

Era o meu celular.

Olhei em volta e tudo estava escuro. A dama de branco se foi, mas o som das arábias não cessava de tocar. Estendi meu braço para alcançar a luz piscante e vi minha mão ficar azul, mas talvez meus sentidos ainda estivessem entorpecidos pelo sono. Está muito, muito frio. Atendi o celular e, como por mágica, o som das mil e uma noites desapareceu. Vi no relógio, que dormia ao lado da cama, a hora do chamado: 5 da manhã. Era Cristina.

— Ric, estava dormindo?

Tive ganas de responder alguma coisa “engraçadinha”, mas apenas confirmei.

— Estou na casa da Márcia. Cheguei aqui às 3 horas, e agora as contrações dela estão muito fortes e frequentes. Acho que você e a Zeza podem vir.

Nossa equipe normalmente trabalha assim. Cristina é uma “batedora”. Chega na frente e começa a preparar a paciente com exercícios, cromoterapia e Yoga. Quando ela percebe que as contrações estão vigorosas, ela me chama. Olhei para o lado e Zeza já estava acordada.

— A dama de branco ligou. Disse que é para a gente ir para a casa da Márcia porque as contrações estão bem fortes e frequentes.

— “Dama de branco”? Quem é essa? Achei que a Cris tinha ligado.

Ooops. Confundi.

— Zeza, levante-se de uma vez — disse eu me livrando das cobertas. — Não me faça tantas perguntas de manhã porque meu cérebro ainda está tentando aque­cer. Acho que meus neurônios são muito lentos para dar o “arranque”.

Estava muito frio mesmo. Hoje foi o dia mais frio do ano, mas provavelmente o dia mais frio dos últimos anos. Parecia estar abaixo de zero. O material para o parto estava todo preparado na porta de casa, bastando colocar no carro. Tubo de oxi­gênio, seringas, ambu, laringoscópio, gazes, compressas, tesouras, soro fisioló­gico, inúmeras luvas descartáveis, tudo empacotado e pronto para usar. Porto Alegre não tem lugares muito distantes, como São Paulo ou mesmo o Rio de Janeiro. Minha paciente mora em um bairro que fica uns 15 minutos de carro da minha casa. Botei o nariz para fora de casa e confirmei: estava mesmo muito frio. Fomos recebidos pelo marido de Márcia, o Adriano. Ainda tenho tempo para uma gracinha:

— Tinha que ser no dia mais frio desse século?

Ele apenas sorriu e disse que a culpa não era dele. Entrando na casa, encontra­mos a mãe de Márcia, mãe de muitos filhos, quase todos nascidos em casa. Tem tranquilidade e sabedoria. Gostei de falar com ela, porque me transmitiu aquela ideia de parto como algo da mulher, em que não se justificam tantas intervenções. Subimos ao andar de cima e lá estavam Cristina, Márcia e uma dupla de gatos. Escutei as músicas tradicionais celtas que normalmente a Cris leva para os partos e senti o clima, o aroma e a aura que cercam um trabalho de parto. Estava tudo na penumbra, tudo muito silencioso. Ao meu lado, um aquecedor, que permitia que continuássemos vivos naquela gélida madrugada. O sol ainda nem aparecera, mas aos poucos os passarinhos começavam seu trabalho matinal.

— Parece que teremos trabalho por hoje, não é?

Marcinha me sorriu um sorriso de parturiente. Acho que foi Debra Pascali-Bonaro quem me falou do “labor smile”, que é o sorriso das mulheres em trabalho de parto; é um sorriso meio desligado, meio fora do lugar. Sei que ela quis ser simpá­tica. Esperei um pouco para fazer uma avaliação do colo. Queria que ela se acostu­masse à minha presença. Já é um choque a chegada de pessoas novas na casa, e ser examinada pode desencadear um estresse desnecessário e improdutivo. A parteira americana Ina May Gaskin, no seu livro Ina May’s Guide to Birth, relata a importância de respeitar a intimidade da paciente nesse momento tão sensível. Fala inclusive de trabalhos de parto avançados que foram descontinuados por dias, interrompidos pela chegada abrupta de um médico afoito. Essa entrada in­tempestiva de um profissional no cenário do nascimento pode ter efeitos tremen­damente nocivos para o resultado de todo o processo. Todo o respeito e o cuidado com a delicadeza do momento são fundamentais.

Por volta das sete horas da manhã, fiz o primeiro exame. Seis centímetros, colo fino, e a cabeça fetal muito, muito alta. Disse a todos que a dilatação estava boa, mas que ainda teríamos um grande trabalho pela frente ainda. Resolvi fazer um tour pela casa. Na prateleira de livros estava Parto Ativo, de Ja­nete Balaskas. Ao lado, uma série de livros espíritas que conheço desde pequeno da estante do meu pai. Chico Xavier, Emmanuel, André Luis, etc… Os gatos sor­rateira e manhosamente desfilavam na minha frente, disputando cadeiras e espa­ços na escada. Tomei cuidado para não atropelá-los enquanto caminhava de um lado para outro — vício incurável — tentando me aquecer agarrado a uma xícara de chá.

O tempo ia passando enquanto as meninas continuam seu trabalho com Márcia. Por volta das 10 horas da manhã, realizei outro exame. Procurei não demonstrar minha frustração, mas a dilatação pouco progrediu nesse período, e a cabeça continuava na mesma posição. Orientei as meninas a ajudar Márcia em um banho quente, para relaxar. Precisávamos ter paciência. O estômago constrangedoramente roncou, e percebi que o chá com bolachinhas foi a única coisa comemos desde a chegada. Já eram 13 horas e resolvi fazer mais um exame. Novamente tentei disfarçar a frustração. A dilatação aumentou muito pouco nas últimas horas, mas a posição do bebê estava inalterada. A dinâ­mica estava fraca: duas contrações em dez minutos. Fui obrigado a aceitar que este bebê está em OET.

Occípito Esquerda Transverso. O bebê estava com a cabeça atravessada na ba­cia. Ele ainda não conseguira fazer o giro para se adaptar ao estreito inferior da pelve. Parecia estar batendo nas espinhas isquiáticas e, por essa razão, não con­seguia descer na bacia, apesar de estar com sete centímetros de dilatação. Era hora de fazer alguma coisa. Sei que tranquilidade e relaxamento são essenci­ais, mas ponderei que uma ajuda mecânica também seria de auxílio. Marcinha estava muito bem. As contrações não eram dolorosas a ponto de fazer com que ela desanimasse. Ela se encontrava bem preparada psicologicamente. Adriano lhe ofereceu todo o apoio, sempre trazendo uma palavra de estímulo e conforto.

Pensei nas dicas que recebi de parteiras e doulas experientes e resolvi experi­mentar. Lembro de Penny Simkin, Jean Sutton e Debra Pascali-Bonaro e decidi utilizar uma técnica por elas preconizada para a liberação de espaço na ossatura pélvica. Solicitei que Zeza e Cristina realizassem a pressão pélvica na crista ilíaca, que consiste em colocar as mãos de cada lado da bacia da paciente e fazer força em direções opostas, tentando liberar um pouco mais de espaço entre as espi­nhas isquiáticas. O bebê se mantinha maravilhosamente bem, antes, durante e após cada contração, o que produzia sobre todos um efeito tranquilizante e moti­vador. Às três horas da tarde, realizei novo exame. Bebê alto, dilatação de oito centíme­tros. Que fazer? Olhei para Márcia com um sorriso amarelado e pensei que a mai­oria dos meus colegas obstetras já teria desistido. Márcia apenas sorriu. Adriano ao seu lado me olhava esperando alguma notícia.

— O bebê pouco se moveu, mas dilatou um pouquinho. Podemos continuar ten­tando. Como você está Márcia? Está bem?

Ela apenas me dirigiu um sorriso tímido. Sentia-se bem. Ainda mantinha o bom humor. Talvez a idade de Márcia, 35 anos, tenha sido uma vantagem. É o seu primeiro filho, mas ela exibe uma maturidade e uma segurança que talvez só a idade possa produzir. Continuamos a estimular os exercícios. Eu me distraio batendo fotos e lendo A Expropriação da Saúde, de Ivan Illich. Fico impressionado com o que ele escreve, e penso que a assistência à saúde está mesmo passando por uma crise sem pre­cedentes. Ivan consegue ser mais cáustico com o modelo tecnocrático contempo­râneo aplicado à medicina do que o próprio Maximilian. Sobre os perigos da tec­nologia aplicada ao parto, sem a criação concomitante de uma reflexão profunda sobre suas consequências, ele escreveu:

“O silêncio sobre a probabilidade do perigo no excessivo uso de medi­camentos na nossa sociedade, mantido pelas ‘oficinas de lanternagem humana’ (a medicina), é a nova manifestação pública da incapacidade da profissão médica de fazer uma profunda autocrítica, o que só pode trazer consequência sinistras para a sociedade”.

Acabamos pedindo uma pizza para almoçar, e ficamos todos admirados com o motoqueiro que a trouxe. Como andar de motocicleta com um frio desses? Às seis da tarde, as contrações continuavam firmes, assim como a têmpera de Márcia. Zeza a auxiliava durante as contrações, enquanto Cristina tirava uma so­neca. Decidi secretamente que esse toque das seis horas seria determinante. Ou este bebê baixava ou iríamos para o hospital. As contrações continuavam pouco inten­sas, apesar do gengibre e da canela. Meus dedos suavemente procuravam boas notícias, mas o que encontrei foram apenas velhas informações. O colo estava com oito centímetros de dilatação, o bebê só um pouco mais baixo, e a posição agora era OEA – Occípito Esquerda Anterior. Já não estava transverso, mas man­tinha-se alto. Ainda não havia transposto a linha imaginária que liga as espinhas isquiáticas. Precisava lhes dizer isso, apesar de não querer.

— Adriano e Márcia. Acho melhor irmos para o hospital. O bebê se moveu muito pouco. Continua alto. As contrações não estão efetivas. É provável que eu precise usar um pouco de soro para estimulá-las. O que vocês acham disso?

Márcia baixou o olhar. Sei que uma parte dos seus sonhos ficou frustrada. Tam­bém sei que ela sonhava com um parto na sua casa nova. Adriano olhou para a esposa, como a dizer: “A decisão é sua”. Ela concordou. Fizemos as malas com presteza e colocamos os equipamentos no carro. Mesmo tendo errado o caminho, chegamos ao hospital em menos de 15 minutos. Márcia teve poucas contrações no carro, o que fortalecia a minha ideia de que ela preci­sava de “motor”, força propulsiva. Chegando ao hospital, Márcia pediu que apenas instalassem o soro com ocitocina quando Adriano tivesse retornado da sua epopeia burocrática nosocomial. Estava tensa, contraída, e eu lhe esclareci que a viagem tinha esse efeito. Precisávamos agora nos adaptar ao novo ambiente, criar um vínculo de confiança com o lugar. Perder o medo e se entregar.

Pela primeira vez, vi Márcia contrariada. Sentia dor, desconforto. Percebi que o hospital estava agindo. Sua dor era a expressão do sofrimento frente à necessária readaptação ao meio ambiente. Márcia por momentos fraquejou. Seu rosto con­traído mostrava a tensão que o momento determinava. Está no Gênesis 13, versículo 32: “Sangrarás todos os meses e parirás com dor“. Este foi o preço que pagamos por termos desobedecido ao criador: Eva pecou por ter fugindo do paraíso da irracionalidade. Escapamos de um Éden perfeito, para o inferno de nossas inexatidões. A metáfora bíblica, no entanto, é maravilhosa. Para alcançar a fruta do conheci­mento, foi necessário erguer o tronco e ficar de pé, desafiando, assim, a onipotên­cia do Todo-Poderoso. Ao criarmos o “olho que a si mesmo enxerga”, arrogante­mente dissemos a Deus que queríamos caminhar (literalmente) com nossos pró­prios pés. A bipedalidade está na origem de nossa supremacia enquanto espécie, mas igualmente nos trouxe a dor de parir.

Os grandes macacos pongídeos não sofrem as dores de parto na mesma propor­ção com que as fêmeas da nossa espécie as sofrem, pois tem crânios fetais muito menores, relativamente à sua pelve. Entretanto, o parto é um desafio físico para a maioria dos primatas. Em geral, os gorilas, orangotangos, gibões e chimpanzés têm partos mais rápidos e simples, enquanto babuínos, saguis e macacos, entre outros, apresentam partos mais dificultosos, nos quais a desproporção céfalo-pél­vica não é um fator insignificante de mortalidade. O acréscimo importante de massa encefálica no gênero homo, ocorrida nos últimos dois milhões de anos, acrescido da bipedalidade anteriormente citada (datando por volta de cinco mi­lhões de anos passados), conferiu à nossa espécie o mais peculiar dos nasci­mentos. A ação conjunta de uma pelve mais achatada e constrita, aliada à cabeça grande de nossos filhotes, produziu um parto muito mais lento, laborioso e dolo­roso. Um dos resultados da evolução do bipedalismo é que o canal de parto é tor­cido na sua porção média, fazendo com que a entrada seja mais larga no sentido transversal, e a saída, no longitudinal, obrigando o feto a girar, ainda dentro do canal de parto. A característica tensão do colo uterino também é uma marca da verticalidade, pois ele necessita ser reforçado para suportar a força da gravidade durante a gestação e não produzir perdas precoces.

O resultado final dessa aventura adaptativa foi a produção de uma experiência de nascimento muito mais dramática e complexa do que a das outras espécies ma­míferas do planeta. O parto humano é mais doloroso e difícil que os demais, por termos nos “erguido para comer a fruta do conhecimento”, e posteriormente, bem alimentados por ela, termos triplicado nosso volume encefálico em relação aos nossos antepassados australopitecos.

Erguer-se e conhecer: os dois grandes desafios iniciais. Com essa característica de uma pelve estreita em uma cabeça cada vez maior, criou-se a necessidade de expulsar esses fetos o quanto antes do claustro materno, porque apenas aqueles que nascessem antes permitiriam que suas mães sobrevivessem, aumentando dessa maneira sua chance de viver e levar adiante seus genes. Certamente du­rante a longa jornada adaptativa da espécie humana, não foram poucos os óbitos por desproporção céfalo-pélvica. Nosso processo de experimentação acaba sem­pre produzindo vítimas, mas essas servem de lição e aprendizagem para a melho­ria da espécie. A expulsão o mais precoce e prematura possível de nossos filhos, na oportunidade em que tenham atingido capacidades mínimas de sobrevivência no meio extrauterino, terminou por produzir o fenômeno da “fetação”. Nossos be­bês hoje em dia são todos “prematuros”, pelo menos do ponto de vista do amadu­recimento neurossensorial. Uma gravidez humana deveria durar por volta de de­zoito meses, nove meses a mais do que se observa, pois com essa idade de vida é que um recém-nascido humano tem capacidades semelhantes às de um primata recém-nascido, como os chimpanzés ou gorilas, como nos relata Wenda Treva­than, em Human Birth. O resultado da expulsão fetal precoce é a “altricialidade”, ou seja, a extrema de­pendência do recém-nascido dos cuidados parentais. Essa peculiaridade de nossa espécie é a origem antropológica e biológica do amor materno, e também da nossa estratégia de constituir famílias, em vez de investir na promiscuidade como alternativa primeira para disseminar nossos genes.

Erguer-se, conhecer, cuidar, agrupar-se. Essas características foram fundamen­tais para a nossa sobrevivência. O surgimento da racionalidade foi o ponto culmi­nante e definitivo para a nossa supremacia sobre as outras formas vivas do pla­neta. O parto humano é uma maravilha da adaptação: uma obra de milênios, em que todos nós, por estarmos aqui, somos testemunhas de seu sucesso. Pela sua característica de milenar adaptação, o nascimento humano não pode ser melho­rado por obra da tecnologia, e todas as tentativas de artificializá-lo resultaram em fracasso. Resta-nos agora sobreviver ao desafio imposto pelo perigoso incremento desmedido da tecnologia na vida cotidiana. Estará a espécie humana, como que­rem nos fazer acreditar os filósofos mais pessimistas (como Jean Baudrillard, en­tre outros), fadada à desaparição, dando lugar a outra espécie mais adaptada, como as máquinas?

Entre as características mais estudadas do parto está a sensibilidade dolorosa, até porque a ablação dessas sensações está entre as possibilidades em que o saber médico pode atuar com mais intensidade. A dor do parto não pode ser negada nem menosprezada. Mas a pergunta frequentemente negligenciada é: “de qual dor estamos falando?” A “dor fisiológica” do parto, causada pela contração uterina, dilatação do colo, etc, é um fato inquestionável para a imensa maioria das mulheres, apesar de algumas poucas, como Madalena, relatarem a completa ausência de dor. Entretanto, essa experiência dolorosa é contrabalançada pelo acréscimo fantástico de endorfinas na circulação, em um incremento de até 30 vezes os valores séricos normais, o que auxilia a parturiente a suportar as dificuldades do processo. Além disso, os suportes emocional, afetivo, social e espiritual oferecem sentido a essa dor, pois, como já afirmavam os Terapeutas de Alexandria, “a única dor insuportável é a que não é interpretada”. Interpretar um sofrimento é conferir-lhe sentido, direção e pro­pósito. Uma mulher, de qualquer latitude, cultura ou época, que consegue enten­der o sentido superior de suas agruras e dores, vai acabar por superá-las, mesmo que para isso tenha que enfrentar face a face suas próprias limitações. Por outro lado, uma sociedade individualista e hedonista, em que o sofrimento parece não ter nenhuma razão ou objetivo, dificilmente poderá convencer uma mulher da im­portância da luta e da superação, mesmo ao vivenciar seu principal rito de passa­gem.

Falamos, então, de uma dor fisiológica associada a um processo que desafia nos­sos limites ou de uma percepção patologizante de um fenômeno natural, que se torna mais doloroso tanto mais relegamos ao esquecimento suas dimensões afeti­vas, sociais e espirituais? Afinal. De que parto estamos tratando? Falamos de um parto como se apresenta realmente, milenarmente construído como evento social, feminino e afetivo? Ou estamos tratando do parto tecnocrá­tico-biomédico-ocidental-contemporâneo de nossos hospitais e clínicas atuais, que é um dos mais contundentes exemplos de simulação da realidade, como tantos outros que encontramos na vida cotidiana? Não estaríamos falando de uma dor criada pelo modelo médico contemporâneo em função do distanciamento dos va­lores afetivos, sociais, emocionais e espirituais ligados ao poderoso rito de passa­gem que é o parto, como bem cita Wenda Trevathan em seu livro Evolutionary Medicine? O parto é um momento mágico, glorificado e temido por todas as culturas, por conjugar em um só evento os mitos mais temidos pela sociedade: sexualidade, nascimento e morte, como afirmava Holly Richards no seu artigo Manifestação culturais do nascimento: a perpetuação do medo.  Mas as origens dessas particu­laridades se perdem na poeira dos tempos. Para entender melhor essa estrada, há que se conhecer de onde viemos e porque somos assim. Divina e maravilho­samente diferentes.

Faço outra determinação em secreto silêncio. Decido que esse exame das 21 ho­ras seria novamente categórico. Nada falo para Cristina ou Zeza, porque não quero que ninguém se influencie pela expectativa. Fico apenas eu sabendo do que estarei decidindo. Na última avaliação, o bebê estava com uma bossa serossan­guínea no couro cabeludo, sinal de que estava há algum tempo fazendo pressão para passar pelo canal de parto. A bolsa havia se rompido durante o exame das 13 horas, e o líquido era claro com vérnix, que é aquela cera brancacenta, pare­cida com hidratante para mãos, que se compõe de gordura e células descamadas da pele do bebê. Isso não se modificou durante o dia, mas minha preocupação era de que já seriam 15 horas de trabalho de parto, e eu temia que Márcia estivesse esgotada demais, e que esse bebê fosse um caso verdadeiro de desproporção ou de mau posicionamento. A vida de um obstetra é sempre cheia de decisões a to­mar, angústias, escolhas e tensão. Continuo lendo Ivan Illich, esperando o tempo passar. É ele quem me assusta a cada linha, ao mesmo tempo em que me reco­nheço na sua fala.

“A aventura médica causa outros danos, na ordem social desta vez. A saúde do indivíduo sofre pelo fato da medicalização pro­duzir uma sociedade mórbida. A iatrogênese social é o efeito so­cial não desejado e danoso do impacto da medicina sobre a soci­edade, mais do que sua ação técnica direta.”

Fico feliz que alguém de fora do Brasil diga algo que Max me diz há tantos anos, mas, sendo ele “nativo”, ninguém lhe dá crédito. A extremada medicalização da sociedade é, como afirma Ivan Illich, a “máscara sanitária de uma sociedade mór­bida”.

Agora são 21 horas. Tenho que fazer o tal exame. Olho para Márcia, que estava agachada enquanto Cris e Zeza continuam a fazer uma forte pressão nas suas cristas ilíacas, procurando com isso oferecer espaço para que o bebê possa rotar e ajeitar sua cabeça na “pequena pelve”. Giro minha cabeça para o lado esquerdo e fecho os olhos. Imagino o bebê fazendo esse mesmo movimento. Mentalizo o pequenino dentro do ventre materno rodeado de uma luz azul-lilás, movendo-se da mesma forma que eu. A imagem daqueles robôs de Hollywood, que fazem a mesma coisa que um humano realiza ligado a ele por fios, me vem à cabeça.  Chego a visualizar feixes de luz nos conectando. Ok… vamos lá. Uma bossa bem volumosa. Um colo uterino edemaciado. Maus sinais. Entretanto, a cabeça do bebê desceu! Está abaixo das espinhas, e está em OP (Occípito Pú­bica). O bebe posicionou-se com a nuca voltada para os ossos púbicos da mãe, que é a posição mais adequada para a descida. Vejo que ele “obedeceu” minhas determinações e foi sensível aos exercícios que as meninas fizeram. Ele estava mais baixo! Seus sinais vitais continuavam maravilhosos, e o ânimo de Márcia se reascendeu quando eu disse que ele havia virado e estava bem posicionado. Olho para Cristina e solto um suspiro de alívio. Vai passar, pensei eu. Ela vai conseguir, sim, senhor!

Voltei a ter esperanças. Por alguns instantes, vislumbrei a presença de V. ao meu lado. Ao contrário de outras ocasiões, em que eu a via serena e séria, ela se apre­sentava sorridente, alegre e jovial, como quando a conheci. Estava vestindo uma roupa verde, parecida com as vestimentas de hospital. Pedi que ela desse uma ajuda especial naquele momento porque, mais do que qualquer outra coisa, era necessário ter paciência, além de tranquilidade e confiança. Ela nada disse, ape­nas sorriu, e no instante seguinte já não estava mais ali. Vou até a porta do centro obstétrico e aviso Mirtes, a irmã de Márcia, de que va­mos continuar apostando no parto normal, mas que isso ainda pode demorar. Ela fica aliviada, aperta minha mão com força e diz que liga mais tarde. Volto a “conversar” com Ivan, esperando que as coisas continuem melhorando para a minha paciente. Diz ele:

“Desde que as mulheres do século XIX resolvem se afirmar, for­mou-se um corpo de ginecologistas: a própria feminilidade trans­formou-se em sintoma de uma necessidade médica tratada por universitários evidentemente do sexo masculino. Estar grávida, pa­rir, aleitar são outras tantas condições medicalizáveis, como o são a menopausa ou a presença de um útero, até a idade em que o especialista decide que ele é demais”.

Maximilian sempre me alertara para isso, mesmo que Nadine ficasse brava consi­derando suas ilações exageradas ou paranoicas. Há anos que ele me provocava com essa questão: “Quais as duas cirurgias mais realizadas nos Estados Unidos? Pois não se surpreenda: a primeira é a cesariana, e a segunda, a histerectomia. Não é interessante, ou pelo menos intrigante, que as duas cirurgias mais realiza­das na pátria da infotecnocracia são sobre o mesmo órgão e sobre o mesmo gê­nero? E as duas recaem sobre a sexualidade feminina, com caráter amputador”?

Ivan e Max sabiam das coisas, mas para mim restava uma pergunta dolorosa: “O que estava eu fazendo ali? Qual a minha função? Qual a minha parcela de contri­buição na alienação que a medicina é capaz de produzir? Por outro lado, como seria possível para um médico impulsionar seus pacientes verdadeiramente para o crescimento pessoal e para a libertação?”

Márcia incrementou seus esforços, e percebi que ela estava mais confiante. Du­rante uma contração, escutei um som grave, vindo do fundo de uma força expul­siva. Cristina imediatamente voltou-se para mim, esperando no meu olhar uma confirmação. Já passavam das 23 horas, e não queria ser confiante demais. Re­solvi que valia a pena fazer um novo exame e investigar a posição do bebê no ca­nal de parto. Estava bem mais baixo, na posição +2 de De Lee. Uma grande bossa estava a cobrir a calota craniana do pequenino, mas inegavelmente tínhamos progredido. A dilatação não estava completa, porque um rebordo edemaciado de colo se colo­cava à frente do occipício. Resolvi então reduzir este colo inchado e colocá-lo para trás da nuca do bebê. Sei que isso pode causar alguma dor, mas estávamos muito próximos de conseguir algo para desistir devido a um rebordo renitente. Pedi a Márcia que empurrasse durante a contração, e assim ela procedeu. Ploc! Lá se foi o ultimo resquício de colo. Agora não havia nada entre o bebê de Márcia e o mundo gelado que o aguardava. Foi nesse instante que eu notei o pé de Zeza.

Ela estava usando uma botinha de couro forrado, que parecia um sapatinho de esquimó. Era muito bonitinho, e é o sapato de estimação que ela usa nos partos em dias frios. Mas percebi que, na ponta do sapato, havia um pequeno furinho, uma parte de couro desfiado. Olhei pra Zeza e disse:

— Zeza, que vexame! Olha só seu sapato. Está furado!

Zeza olhou para baixo, sorriu graciosamente e deu de ombros.

— Prefiro uma mendiga quentinha a uma grã-fina gelada — disse ela.

Sem conseguir conter o riso, Cristina se aproximou e mostrou o que estava usando nos pés. Era uma bota de couro de cano curto, forrada de pelego, para ser usada nos dias úmidos e de frio cortante. O detalhe que chamava a atenção é que exatamente na proeminência do dedão havia um furo. Um pequeno furo, mas que mostrava um inquieto dedo coberto pela meia. Quando as duas se deram conta de que estavam com o sapato furado, desabaram em risadas, a ponto de ser neces­sário pedir que saíssem da sala para que não desviassem a concentração da pa­ciente.

Minhas companheiras de equipe, ambas de sapato furado.

Foi então que Márcia teve uma contração mais forte do que as outras. Eu me aproximei e constatei que, vencidas todas as dificuldades, seu bebê estava pró­ximo da saída. Respirei aliviado. Finalmente! Os cabelos escuros começavam a aparecer no introito vaginal. Chamei Zeza e Cristina para perto, e pedi a Zeza que assumisse a posição para segurar a criança que estava chegando. Estávamos nos aproximando da meia-noite. O dia seguinte seria o dia da data provável do parto. Márcia sorria e dizia para a barriga que aquilo que o Dr. Ric ha­via dito era apenas uma projeção, e que ele não precisava nascer exatamente no dia “estabelecido” pelo médico. O pediatra na sala auxiliava com seu bom humor a manter um clima de expectativa positiva. As últimas contrações foram fortes, e a progressão, lenta. O avanço era insidioso, pausado, mas a cada contração percebia-se que a posição do bebê havia se mo­dificado um pouquinho.

— Faltam 10 minutos para a meia-noite — disse eu. Será que eu estava mesmo com a razão?

Márcia faz uma força espetacular. Reúne em seus braços e no abdômen a energia fantástica das fêmeas. Grita, geme. Contrai o rosto pela última vez.

Nasceu. Faltando cinco minutos para a troca do dia, ele veio ao mundo. Envolto em líquido amniótico e vérnix, nasceu Marcus Filipe, com 2710 gramas, apgar 9 e 10. A cabeça pontuda denuncia o tempo e a dificuldade para nascer, mas nasce ativo, esperto e logo abre os olhos. Dezoito horas depois de termos chegado à casa de Márcia e Adriano, consegui­mos realizar o sonho esperado de um parto normal. Praticamente não houve lace­rações, mas foi dado um ponto apenas na parede vaginal anterior. Márcia estava exausta, mas feliz e exultante. Lutou contra muitas dificuldades, principalmente o cansaço e a posição inadequada do seu bebê no canal de parto. Foi uma grande vitória, principalmente porque acreditamos e valorizamos seu de­sejo. Ela merecia o sucesso que teve. Lutou com todas as suas forças para ter um parto humanizado e empoderador. Sei que, diante das dificuldades apresentadas pelo parto, seria difícil que Márcia tivesse seu filho de forma normal, não fosse essa a equipe que a acompanhou. As meninas, com sua presença e atuação constantes, foram novamente o grande diferencial positivo. Saindo de lá, ainda olhei para as minhas colegas e comentei:

— Espero que da próxima vez vocês venham com sapatos melhores para atender um parto, não é?

Elas me respondem ainda rindo:

— Somos a “Irmandade do Sapato Furado”. Temos estilo. Não foi por acaso. Es­ses furinhos no sapato em verdade são uma comunicação com o universo, com a feminilidade, com os instintos. Foi por isso que conseguimos sucesso hoje, porque estávamos em contato direto com a “mãe-terra”. Precisávamos de um contato fí­sico com as deusas que nos transmitem força e intuição. Nossos sapatos furados funcionaram como “antenas invertidas”, receptoras da energia de Gaia.

Quem sou eu para duvidar?

Dirigindo-me para o carro, lembrei-me mais uma vez de Ivan e Max, e como am­bos elogiavam o modelo chinês dos “médicos de pés no chão”. Era para eles a possibilidade de mandar de volta para a cultura e para a sociedade a responsabili­dade que foi usurpada pela ideologia tecnocrática, que produziu o que Ivan Illich chama de “expropriação da saúde”. Mas será que minhas colegas Cristina e Zeza não seriam uma forma de nova “brigada de mulheres” na construção de um novo modelo de saúde da mulher, centrado no empoderamento feminino e em uma vi­são holística de saúde em consonância com a natureza? Seriam elas um novo paradigma? Seriam elas mesmo a “Irmandade do Sapato Furado”, em paralelo com “médicos de pés no chão?” O retorno de um modelo feminino de atenção ao parto sempre me apaixonou. Mi­nha busca por uma resposta à gravura de livro de Odent acabou me levando a procurar o apoio das mulheres, para oferecer às grávidas aquilo que eu não as podia dar. A “Irmandade do Sapato Furado” aparecia como um “modelo que fun­ciona”, na busca por uma assistência mais humana, mais afetiva e mais centrada na mulher, em seus desejos e necessidades. Ao voltar para casa, caio na cama quase desfalecido, mas ainda tenho tempo de refletir sobre os eventos do dia e como nosso esforço foi recompensado, princi­palmente pela atuação das meninas.

Mas ainda restava uma dúvida na cabeça: ela voltaria para me interrogar? Se a odalisca de branco me perguntasse novamente a palavra mágica, qual eu diria? Qual a palavra que permite a uma mulher se expandir? Qual o segredo que cada uma delas esconde? Que palavra Márcia ouviu, que fez com que ela suplantasse suas dúvidas e obtivesse sucesso? Qual a palavra a ser dita?

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Longevidade

A “Evolução da Medicina” foi por certo a ação menos importante de todas as razões para o aumento da longevidade no mundo. Longevidade está relacionada à saúde e a Medicina pouco ou quase nada se relaciona com sua produção, pois que se ocupa do combate às doenças. Como diria o velho pensador Ivan Illich, “Janelas e cuecas limpas fizeram mais pela saúde do que todos os medicamento criados pela razão humana”. Quem produz saúde numa sociedade são a engenharia, atividade física, comida de verdade, ar limpo, emprego pleno e paz social.

Vou dar um exemplo simples: qual é considerada a maior descoberta e contribuição médica do século XX?

Você vai errar se disser antibióticos, quimioterápicos, remédios oncológicos, cirurgias, ultrassom, etc. Se você levar em consideração o parâmetro “impacto” – quantas vidas salvas e quantas doenças curadas – a resposta é simples: a descoberta de que uma pitada de açúcar em uma solução salina aumenta a absorção de água pelo tubo digestivo. Traduzindo: soro de reidratação oral. Essa descoberta salvou milhões de crianças na África de quadros de diarreia aguda causada pela água contaminada ou pelo enantema do sarampo. O impacto foi gigantesco para populações inteiras e vidas foram poupadas. Entretanto, quando se examina a origem desse tratamento, resta a pergunta: qual a razão para usarmos este recurso “mágico”?

Ora, é simples: falta de interesse político levando à carência de recursos para a infraestrutura básica da sociedade, falta de engenheiros para obras públicas, falta de tubulações para carregar água limpa, ausência de tratamento de esgoto e todas as tragédias decorrentes do desmame precoce, que obriga mães a darem fórmula láctea misturada com água suja nas comunidades onde inexiste tratamento de águas. Fosse conduzida de forma humanizada – centrada na pessoa – a saúde seria garantida e não haveria razão para tratar tantas doenças (como a diarreia mortal) derivadas da miséria, do descaso e da fome. Ao invés disso investimos em guerras, no luxo concentrado em poucos capitalistas, na medicina terciária curativa (ao invés de prevenir) encarecendo os tratamentos e não investindo na manutenção da saúde.

Quais as doenças que mais mortais que atacam as populações no ocidente? Quais os problemas de saúde mais marcante do mundo desenvolvido? Se olharmos para os dados de mortalidade veremos que o câncer, infarto do miocárdio e diabete mélito estão entre os principais fatores de mortalidade. O primeiro está ligado às toxinas no ar, água e alimentos, já que há décadas sabemos da capacidade carcinogênica dos poluentes e dos conservantes usados na agricultura extensiva e nos alimentos, além das exposições profissionais. Já o infarto agudo do miocárdio está claramente ligado ao aumento de peso, à obesidade, ao sedentarismo que levam à aterosclerose e o entupimento de artérias por placas de gordura. Já o diabete se conecta com a comida industrializada e altamente calórica, base da alimentação dos países satélites dos Estados Unidos que consomem altas doses de açúcar, carboidratos, gorduras e conservantes.

Fica claro entender que mais saúde seria produzida com ar e água de qualidade, comida saudável e exercícios físicos do que os milhões gastos em remédios e cirurgias, porque estas ações seriam preventivas e evitariam que as doenças tivessem progressão. Mais ainda se tivéssemos um ambiente de paz, pleno emprego, equidade e justiça social, diminuindo de forma considerável os níveis de stress. Muito mais saúde se produz investindo em mudança no estilo de vida do que investindo na cura química ou cirúrgica de doenças. Muito mais efeito traria para os trabalhadores de todo o mundo a abolição da sociedade de classes do que todos os avanços tecnológicos do mundo – apesar de que uma sociedade equilibrada pode ter os dois. É disso que se trata a medicina para o século XXI: menos drogas, menos intervenções, mais prevenção de doenças, e a melhoria das condições de saúde serão o impacto que estas transformações produzirão em nível global.

E isso não significa desmerecer os avanços da medicina, apenas situar sua posição na responsabilidade pelo aumento da longevidade. A saúde é produzida muito mais por questões sociais e políticas do que pela criação de novos medicamentos e novas estratégias terapêuticas.

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Impactos

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Seguindo o pensamento de Ivan Illich sobre o significado último das intervenções na saúde das populações, eu pergunto: quem é capaz de causar mais impacto positivo no nível de saúde global, uma nova estatina (medicamento para o colesterol, que gerará bilhões em lucro para um laboratório inglês, americano ou suíço) ou um simples sapato que protegerá os pés das crianças africanas? Sabemos que esta ação provavelmente não vai gerar lucro algum para o seus inventores, mas prevenirá milhares de mortes absolutamente evitáveis através de uma intervenção civilizatória  simples (proteger os pés), de baixo custo e fácil de implementar.

Ainda recordo de uma frase que li no livro “A Nêmesis da Medicina” do mesmo Ivan Illich em que ele dizia “Vidros nas janelas e cuecas limpas fizeram mais pela saúde do que todas as drogas e tratamentos no mundo“. Quando analisamos os impactos que as ações de saúde promovem no sujeito (e também numa determinada cultura) muitas vezes ficamos perplexos em como são limitados os resultados  “drogais” e como são relevantes as alterações positivas decorrentes de mudanças estruturais. Se isso não serve para desconsiderar a importância de alguns medicamentos e seu uso, também deve nos mostrar que o impacto deles sobre a saúde é muito pequeno e circunscrito.

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