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Lacrar

A internet – e mais especificamente as mídias sociais – criaram o termo “lacração” e disseminaram o seu uso. É curioso que este termo muitas vezes é mal utilizado, dando a entender que a “lacração” se refere a um argumento tão bem utilizado, e que explica um determinado fenômeno de maneira tão completa, que é capaz de “lacrar”, fechar, terminar, colocar um ponto final, já que depois do que foi dito nada mais poderia ser acrescentado. Finis est…

Na verdade a “lacração” se refere a outro fenômeno muito mais complexo. Argumentos taxativos, brilhantes, completos e definitivos – se quisermos acreditar que isso existe – são apresentados desde o início da linguagem. Org teria dito para Uth, numa caverna há 40 mil anos: “Se você acredita que soprar é a magia está enganado. A magia está no atrito dos pauzinhos, seu otário“. Um argumento excelente, que podia inclusive ser demonstrado experimentalmente. Ele “lacrou”?

Não, porque “lacrar” não está relacionado à justeza do seu argumento, sua abrangência, sua lógica ou seu encadeamento de ideias. Também não está relacionado à sua qualidade argumentativa e nem às suas virtudes de convencimento.

Na verdade, a “lacração” está relacionada à plateia. É um jogo de cena, onde seus ouvintes, leitores ou telespectadores fazem parte do argumento. O sucesso de suas ideias depende do entusiasmo de quem as escutou. Uma ironia, um escárnio, um deboche ou uma resposta provocativa “lacram”, porque a plateia delira ao ver seu ídolo fazendo sucesso com sua fala.

No território das mídias sociais, onde as pessoas se escondem atrás de telas, a possibilidade de um debate centrado nas ideias se tornou cada dia mais difícil. Mais do que apresentar boas ideias, você precisa ser alguém que galvanize a simpatia de um número cada vez maior de fãs e simpatizantes, posto que a “lacração” dependerá disso, e não de seus argumentos e posturas. Isso acabou gerando um personagem novo: “o mendigo de likes“, pois que ele sabe que só poderá “lacrar” se tiver um grupo enorme de pessoas a lhe oferecer suporte e apoio.

Todavia, eu acho que esta fase vai passar. A “lacração” já é um fenômeno decadente e começa aos poucos a ser sinônimo de “argumento frágil e demagógico”. Sou um otimista….

Lacrei? Não….

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Bolhas

Existe uma série de assuntos que eu adoraria debater até para diminuir um pouco a minha ignorância sobre eles. Quando você vive em uma sociedade branca, num estado branco, sendo de classe média e heterossexual acaba tendo dificuldade para entender as queixas das pessoas que sofrem as consequências por NÃO SEREM como você, as quais não tem a possibilidade de deixar que o fluxo do mainstream as carregue para posições mais privilegiadas. Lembro muito do ativista israelense Miko Peled que, sendo israelense e branco, tinha dificuldades de entender o ponto de vista dos palestinos, pessoas a quem NUNCA via no seu dia-a-dia, e por isso mesmo podiam ser estereotipados e/ou demonizados pela cultura em que estava embebido. Foi apenas o encontro fortuito com palestinos quando moravam em San Diego, nos Estados Unidos (!!!), que o fez acordar para a questão da Palestina, o Nakba, a limpeza étnica e as reivindicações daquele povo.

Miko Peled em seu livro “O Filho do General” agradece de forma comovente a recepção afetiva e compreensiva que teve por parte dos ativistas palestinos, os quais tinham TODAS AS RAZÕES do mundo para odiá-lo, não apenas por ser israelense, mas por ser filho de um general invasor, responsável por boa parte da desgraça afligida ao seu povo. Sem esse carinho e essa fraternidade explícita de pessoas em uma posição aparentemente tão distante, seria muito fácil para Miko manter-se dentro de sua bolha de demonização e ódio ao “inimigo”. Para mim, não foram os argumentos racionais que o convenceram que sua postura estava errada, muito menos os registros históricos a que teve acesso em sua busca pela verdade, mas o afeto e a acolhida amorosa que recebeu daqueles que por muito tempo considerou como adversários e inimigos mortais.

Para as pessoas que tem as mesmas condições que eu é importante serem apresentadas às questões femininas, raciais, de gênero e sociais para que possamos pensar fora de nossa bolha de amizades e relações cotidianas. Sem esse confronto com vivências diversas e sem o contraditório é difícil sair da zona de conforto das nossas convicções e nossas perspectivas. Por isso o confronto de ideias é tão importante.

Infelizmente, em tempos de ódio, isso é cada vez mais difícil. Fiz um comentário na página de uma doula a respeito de uma mensagem que ela postou com um texto assinado por Andrea Dworkin. Disse que o texto (sobre ser lésbica) era sensível e bonito, mas foi escrito por alguém que sofre muito mais criticas do que elogios de dentro do movimento feminista por suas lutas anti-pornografia e acima de tudo por suas atitudes controversas (liberdade para mulheres que mataram maridos abusadores). Ela, por exemplo, era extremamente conservadora e escreveu um livro cujo título era “Right-wing women”. Faleceu aos 58 anos com um quadro avançado de artrite e complicações de obesidade mórbida, mas se estivesse viva estaria ao lado de Trump fazendo campanha por ele e por sua visão de extrema direita.

Meu comentário visava apenas alertar para a origem da mensagem, para não repetir o que o ator José Wilker fez numa reunião de diretores da Globo: um discurso recheado de citações que, depois dos aplausos de todos, avisou serem todas de Adolf Hitler, retiradas do “Mein Kampf”. Infelizmente bastou eu questionar uma autora como esta – mesmo elogiando a visão poética que ela tinha da homossexualidade feminina – para sofrer ataques pessoais. Aí vieram as agressões, ironias, deboches, violências e ataques pessoais que culminaram com um festival de blocks e o fim de qualquer possibilidade de conversa.

Claro, o erro foi meu. Eu não deveria ter feito aquele comentário. Afinal, não é problema meu. Quem quiser que siga, que cite, que admire e que adore. O problema é que isso mantém a bolha e as ilhas de concordância intactas, e não permite que a gente aprenda com o pensamento alheio. Ficamos todos desconectados porque as pessoas não querem debater; querem lutar, destruir opositores, querem “lacrar”, humilhar oponentes, vencer guerras de argumentos, ser o mais irônico possível, ser o super fodão da sua turma (o meme preferido é o negro aquele que é carregado pelo amigos e recebe os óculos escuros da suprema esperteza) e tratar todas as pessoas de quem discordam como inimigos a serem destroçados.

A solução momentânea é se afastar, bloquear, voltar para o seu canto frustrado e esperar que alguém de bom coração se proponha a conversar sem pedras nas mãos. Ter a paciência de aguardar a caridade de alguém sem ódio transbordante e esperar que os ânimos possam arrefecer. Infelizmente, para algumas pessoas, isso nunca vai acontecer, pois as causas são apenas desculpas passageiras para a razão principal que as move: a luta em si e a destruição dos oponentes.

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