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Xenofilia

Existe um tipo insuportável e nojento de brasileiro: o expatriado pequeno burguês que fala mal do seu país e que trata seus compatriotas como incultos, ignorantes, atrasados e corruptos por natureza. Sofrem do que eu chamo de xenofilia, uma doença que os faz adorar o estrangeiro e tudo que nao é brasileiro. Acomete sujeitos com caráter soberbo e que se apoiam ideologicamente numa espécie de supremacismo, sintoma que é muito comum na parte mais branca e de ascendência europeia do sul do Brasil.

Este sujeito se manifesta em muitas frentes. Posta fotos de museus e bibliotecas na Europa, descreve os livros que está lendo, cita autores europeus e os vinhos que mais gosta. Ao mesmo tempo comenta a falta de livros nas prateleiras dos brasileiros e sua índole preguiçosa para a leitura. No subtexto está implícito: “Ok, sou brasileiro, mas não sou como como essa malta ignóbil que tem por lá”. Outra característica é desmerecer continuamente nossas músicas, nossa cultura, nossa arte e compará-la com as produções artísticas das nações imperialistas. Sempre olha para o Brasil como o atraso, a incompetência, a preguiça e o oportunismo. Por certo que é incapaz de mergulhar com profundidade na origem de tais diferenças, e recorre quase sempre às explicações superficiais, descrevendo a nossa “índole” como uma maldição que nos condena ao atraso.

Lembrou alguém? Sim, Macunaíma – O herói sem nenhum caráter, que o modernista Mário de Andrade (1893-1945) publicou em 1928, há quase um século, que para estes pseudo-europeus é a imagem mais fidedigna dos habitantes do nosso país. Estes “xenofílicos” também se enxergam no personagem da música “Partido Alto“, do Chico Buarque, quando dizem: “Deus é um cara gozador, adora brincadeira, pois prá me botar no mundo, tinha o mundo inteiro, mas achou muito engraçado me botar cabreiro, na barriga da miséria nasci brasileiro”. Ou seja, eles estavam designados, por sua essência nobre e distinta, a nascer entre as luzes da civilização europeia, mas por obra do azar, nasceram nesse país mestiço e atrasado, inculto e corrupto, onde se sentem deslocados por serem “orquídeas entre as macegas”.

Não tenho mais paciência com essa gente arrogante, chata e presunçosa. Sempre que eu escuto um brazuca branquinho que mora na Europa falando da “lógica tacanha dos brasileiros” nesse tipo de xenofilia típica da pequena burguesia brasileira, eu tenho vontade de xingar de forma muito mais explícita, em especial os sujeitos “nem-nem” que se posicionam “contra todos os radicalismos”, que é a forma como os burgueses se expressam por aí. Geralmente ao encontrar estes personagem eu lanço mão da ironia, mas meu desejo sincero era ser chulo. Todos nós deveríamos nos sentir ofendidos quando estas pessoas tratam os brasileiros como inferiores e primitivos e quando nos classificam como “um povo atrasado”. Ficar calado diante dessa estupidez me parece indecente.

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Boneca de Porcelana

O jovem cavalheiro adentrou a loja e pigarreou discretamente anunciando sua presença. Vestia-se de forma simples e discreta, porém demonstrava asseio e cuidado. Tinha o cabelo curto e bem apartado, e suas unhas eram cortadas bem curtas. Na cabeça, o indefectível chapéu “Fedora”, última moda na capital, um artefato que leva o nome da peça teatral de Victorien Sardou, com Sarah Bernhardt.

A jovem Irma captou sua chegada com o canto dos olhos e manteve-se arrumando as flores e as samambaias da floricultura, como se a entrada do rapaz fosse um fato trivial. Todavia, ela sabia que a sua presença significava mais do que uma simples visita. Arrumou-se discretamente, mas manteve o olhar distante. Sabia o que sua entrada trazia e sabia também que hoje era o dia para definir o futuro desses encontros.

Ele passeava com os olhos pelo multicolorido das flores e as vezes acariciava com a ponta dos dedos as orquídeas, os jasmins, as rosas, as camélias, begônias, orquídeas, bromélias, ninfeias, ciclames, grevíleas, prímulas e os chefleur que se misturavam nas prateleiras. Dissimulava um vivo interesse, mas tanto ele quanto Irma sabiam se tratar de uma falsa curiosidade pelo mundo da botânica. Seu interesse era mesmo a jovem atendente, com seu vestido cinza e seus cabelos curtos.

Depois de ziguezaguear por entre as plantas da floricultura encontrou Irma no balcão anotando os pedidos para o fim da tarde. Quando colocou a mão sobre o balcão ela fingiu graciosamente uma surpresa, fechou seu bloco de anotações e sorriu timidamente.

– Como vai Irma? Estava passando aqui pela Barros Cassal e resolvi comprar umas flores para minha mãe. Você está bem?

Ela sorriu novamente e respondeu de forma mais fria do que ele esperava.

– Eu estou bem. Quer ajuda para escolher as flores? Temos lindos cravos e crisântemos que acabaram de chegar.

O jovem sorriu mas não se deu por vencido.

– Em verdade, as flores podem ficar para depois. Gostaria agora de saber sua resposta. Meu coração precisa de um repouso. Não posso mais viver nessa dúvida. Olhe, eu trouxe algo para você.

Colocou a mão em uma sacola que trazia consigo e retirou de lá uma pequena caixinha de papelão atado com fita azul. Como ela titubeasse para segurar o presente com suas mãos de dedos finos ele mesmo desatou a fita e tirou a tampa.

– Achei parecida com você. Linda, delicada, recatada e tímida. Quero que fique com ela, pois ela representa o sentimento que tenho por você.

Irma não sabia o que dizer, mas segurou a pequena figura de porcelana e vestido longo que o jovem colocou em suas mãos. A boneca tinha um rosto delicado e pálido, com bochechas vermelhas e cabelos curtos e loiros.

– Irma, você sabe o quanto gosto de você e eu sei que seu coração ainda não é meu. Entretanto, tenho paciência e posso esperar até que você esteja pronta. Além disso eu…

Irma interrompeu sua fala com a mão espalmada à frente.

– Por favor, não insista. Já conversamos sobre isso. Meu coração pertence ao meu noivo, Olintho. O simples fato de falar com você já me parece pecaminoso. Sou uma mulher comprometida e faria muito bem a nós dois que você não viesse mais a esta loja.

O jovem ainda ensaiou uma nova frase, mas foi interrompido com um “não”, seco e definitivo. A ele não restou nada além de levantar a aba do Fedora num gesto de despedida, saindo para nunca mais voltar.

Irma sentiu o peso da culpa saindo de suas costas. Foi até a ponta da loja e serviu-se de um copo d’água do filtro de barro. Ainda tremia de nervosa, mas sabia que fizera a única coisa certa. Respirou fundo, aguardou uns instantes e voltou ao balcão para finalizar a lista do dia.

Só depois de alguns minutos percebeu que a boneca permanecia sobre a mesa. Correu até a porta, olhou por toda a extensão da Avenida Independência, até onde seus olhos podiam alcançar, mas ele não estava mais lá.

Pensou em devolver, pois sabia seu endereço, mas isso a obrigaria encontrá-lo, o que não desejava. Esse encontro definitivo já havia sido por demais angustiante. Por outro lado, jogar fora uma linda boneca de porcelana lhe pareceu um crime, mas sabia que mantê-la consigo seria uma espécie de traição.

A solução veio simples. À noite, ao voltar para casa, deu de presente a boneca de porcelana para sua irmã Erna, que a guardou como a um tesouro por toda sua vida. Por nunca ter se casado sua irmã presenteou a boneca, já no fim da vida, à sua sobrinha Miriam Elisabete, que a guarda até hoje. Um século já nos separa da história de um amor frustrado, uma boneca de porcelana e uma bela moça comprometida que, alguns anos depois, estaria me segurando nos braços e a quem eu chamaria de “vovó Irma”.

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