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Leah

O indicador no canto inferior direito do computador apontava 31 de dezembro, anunciando os estertores do ano que se preparava para findar. Solitária em sua casa, Leah terminara as tarefas de limpeza e se preparava para uma noite solitária na frente da TV. Resolveu como última ação, olhar sua caixa de e-mails. No meio de uma lista infindável de “promoções imperdíveis”, encontrou a mensagem de Karen, uma amiga de muitos anos. Abriu o e-mail e leu a curta mensagem.

Terminou de ler o e-mail e manteve os olhos parados na fissura entre o marco da porta e a parede descascada de seu velho apartamento. Sentada à frente da tela do computador e tendo a janela mais ao lado, podia ver os carros desviando uns dos outros na sua frenética busca por espaço, tentando chegar em casa para a ceia de ano novo. Nada naquela tarde prenunciava o que ocorreria a seguir. A notícia a pegou de surpresa, como uma tempestade de turbulências e tremores que aparece no meio de um dia normal de verão.

“Patrick está morrendo”, dizia o texto curto que ainda jazia parado na tela do computador. Karen obteve informações de seu estado por intermédio de amigos comuns. “Leucemia, estágio final”, continuava o texto, que terminava com um “achei que você gostaria de saber”. Os sentimentos dentro de Leah estavam em ebulição, num profundo contraste com sua face inexpressiva e o olhar que teimava em se manter fixado na pequena rachadura ao lado do marco da janela, como se a procurar algo, escondido ali, que pudesse lhe dizer como deveria reagir.

“Patrick sempre foi um covarde, um traidor”. Era só o que podia pensar. “Não havia em seu ser nenhuma fibra de virtude, nenhuma célula capaz de metabolizar honra e respeito. Todos os humanos recebem, pelo menos uma vez na vida, um teste para provar seu caráter. Patrick teve em suas mãos o grande desafio, e falhou miseravelmente. Diante do júri, sabendo que seu depoimento seria fundamental para estabelecer a verdade, escondeu-se, mentiu com seu silêncio, deixou-se covardemente silenciar, por medo de que a verdade o pudesse comprometer”. Leah ainda tentou fixar em seus olhos, enquanto lhe faziam a pergunta que mudaria o destino dela, mas ele baixou a cabeça diante do seu olhar. “Um covarde, cuja mentira flui por todos os poros”.

Depois de alguns instantes tentando descobrir o que pensar e fazer, abriu sua bolsa e dela retirou o celular. Com rápidos golpes na tela descobriu o nome de seu ex-amigo, que depois desses anos todos ainda dormia na sua lista de números. Ficou olhando para os dígitos à sua frente por alguns momentos até que seu dedo pressionou a combinação numérica. Não era justo que ele morresse sem que fosse possível dizer do desprezo profundo que sentia por ele. Era preciso dizer que seu silêncio, sua mentira muda, sua covardia a haviam marcado por todos esses anos. Queria lhe dizer o quanto de mal havia lhe causado, não apenas com sua separação e os danos financeiros, mas também por sua autoestima destruída, sua descrença na justiça e sua falta de fé na humanidade. Patrick simbolizava o que de pior houvera em sua vida. Uma amizade destroçada pela fraqueza de caráter e a falta de escrúpulos. Uma vida cheia de projetos jogada no lixo, desperdiçada como um papel sujo.

Depois de alguns segundos, ouviu o sinal de chamada. Alguém atendeu do outro lado, uma mulher. Uma namorada, enfermeira, familiar; já não tinha nenhuma importância. Leah disse que era uma “velha amiga” e desejava falar com Patrick. A mulher disse que ele estava muito fraco, mas colocaria o telefone em seu ouvido. Ouviu o som do telefone tocar o ouvido de Patrick e sua voz, mais grave do que se acostumara a ouvir.

– Olá, quem é?

Leah manteve-se em silêncio por instantes, tentando entender seus sentimentos. Do outro lado da linha estava o homem que mais odiou em toda sua vida, um amigo cuja amizade foi degenerada por acontecimentos desastrosos, mas que traiu sua confiança e sua amizade, deixando caírem sobre ela as culpas que, na verdade, lhe pertenciam. Por isso Leah teve a vida destroçada e os seus sonhos sepultados. Era o momento de dizer a ele o quanto de dor ainda carregava, e o quanto a morte prematura que ele enfrentava iluminaria seu espírito. Com voz quase sussurrava, ela respondeu:

– Sou eu, Leah.

Ele ficou em silêncio, talvez chocado pela surpresa. Um tempo depois, respondeu.

– O que deseja Leah?

Agora as lágrimas tomavam conta do seu rosto, correndo livremente pelas suas bochechas rosadas e caindo como uma fina cachoeira de ressentimento sobre o teclado do computador. Suas mãos tremiam e seus dentes crispavam, mas não conseguia dizer palavra alguma. Finalmente, após respirar profundamente, respondeu…

– Apenas desejar um feliz ano novo. Boa sorte.

Não esperou sua resposta e desligou. Colocou as mãos na cabeça e chorou profusamente. Talvez, seu desejo de um ano novo feliz tenha sido a mais sofisticada forma de crueldade que foi capaz de formular. Uma vingança dura e quase tão silenciosa quanto aquela da qual foi vítima.

Edgar Kensington Moore, “Happy New Year” da coletânea “Tales from the Fireplace” (Contos da Lareira), Ed. Rutherford, pag. 135

Edgar Kensington Moore foi um escritor britânico nascido em Sheffield em 1937. Estudou artes cênicas na Escola de Teatro William Shakespeare, na sua cidade natal, ainda quando cursava o ensino médio. Aos 21 anos casou-se com Melinda Fergusson e foram morar em Manchester, onde criaram seus três filhos. Foi em Manchester que Edgar produziu seus livros, em especial seus contos sobre a classe operária inglesa. Em “Tales from the Fireplace”, seu último livro publicado, ele mostra uma coletânea de contos relacionados à solidão das grandes cidades, sendo cada capítulo dedicado aos pequenos dramas cotidianos que surpreendem os solitários, desde o anúncio da morte de um desafeto, um bolo de aniversário para tia Betsy e até um acidente doméstico com o gato “Sparky”. Em todos os contos a temática é a dor e a angústia que se encontram acompanhadas da solitude, a dolorosa falta de um ombro para apoiar nossa cabeça ou para secar as inevitáveis lágrimas. Todas as suas personagens são mulheres, desde adolescentes até as idosas que apenas esperam a morte. É possível que este livro tenha como inspiração sua própria mãe, cujo marido faleceu na Batalha da Inglaterra em 1940, fazendo da viuvez precoce que testemunhou em sua mãe uma cicatriz em sua própria vida. Sua mãe criou seus dois filhos (Edgar e seu irmão mais velho George) solitariamente e jamais se envolveu novamente com homem algum. Pouco antes de morrer em 2020, Edgar contou que ver sua mãe sozinha escutando o rádio, costurando e ajeitando os filhos para a escola o marcou profundamente, em todos os sentidos, e talvez tenha sido por isso que escolheu o ofício da escrita, onde a solidão é a companheira mais constante. Edgar faleceu em 2020 de pneumonia, aos 83 anos, em sua casa em Manchester. Deixou a mulher Melinda e os filhos Harvey, Jeffrey e Andrew.

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