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Os ataques contra Pelé

Pelé, Rei do Futebol, magia nos pés, Imperador de ébano, orgulho da raça, maior esportista do século XX, homem negro, pobre, periférico, humilde, garoto de 3 Corações que levou o nome do Brasil para além de todas as fronteiras….

… mas eu entendo a dor de quem não suporta ter um herói negão.

Estamos próximos de perder Pelé mas é inacreditável a quantidade de comentários racista contra ele, inclusive análises morais fajutas baseadas neste tipo especial de racismo escamoteado e envergonhado. Existe uma horda de racistinhas identitárias e ferozes que contaminam a internet iludindo a todos e a si mesmas de que são progressistas e de esquerda, quando não passam de sexistas e reacionárias, fazendop o trabalho sujo da direita internacional de dividir a organização do trabalhadores e destruir os símbolos e heróis nacionais. Um exemplo diasso é o que circula entre muita gente – infelizmente também da esquerda – a imagem dos familiares do Pelé reunidos no hospital para oferecer o suporte afetivo para ele, que se aproxima de seu desencarne. A legenda diz que “os herdeiros de Pelé aguardam sua recuperação”, de forma irônica, dando a entender que eles apenas desejam sua morte, ansiosos pela partilha dos bens do Rei do Futebol.

Penso que deveria ser justo anotarmos os nomes de todos que divulgam essa crueldade para publicar algo semelhante quando for sua hora de partir. Acreditar que os filhos, netos e noras dele estão angustiados apenas por dinheiro, como urubus aguardando o último suspiro do seu almoço, diz mais de quem divulga essa crueldade do que da própria vida do Pelé. Não esqueçam as lições duras que surgiram dessa última eleição: a esquerda também tem seu gado e ninguém deixa de lado seus preconceitos – em especial seu racismo – apenas por declarar voto em Lula.

E salvem os heróis nacionais…

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Julgamentos

Peço àqueles que julgam a vida pessoal do Pelé, exaltando suas falhas e minimizando suas glórias, que não me julguem por esta mesma lógica quando eu estiver morrendo, pelo menos não em frente aos meus. Espero também que não sejam julgadas desta forma – e com a mão tão pesada – quando seu próprio tempo estiver para chegar. A crueldade sobre os corpos frágeis e indefesos daqueles que estão se despedindo da vida não leva ninguém ao céu; sequer lhes torna melhores, mais nobres ou superiores. Deixem os julgamentos para quem é isento de pecado.

Pelé é o maior gênio do futebol, o esporte que tanto amamos. Por certo que para alguns, que tem as emoções controladas e agem sempre de forma racional, é fácil fazer desaparecer da memória e dos sentimentos décadas de emoções compartilhadas com o maior ídolo do esporte, movidos por um suposto erro pessoal na vida do nosso craque. Eu, infelizmente, não consigo. Para aqueles que não se afetam com a iminente partida de Pelé eu pergunto: será que apenas quando a tragédia lhes atinge pessoalmente ela é digna de lágrimas?

Parece bem claro para mim que, fosse Pelé uma mulher e seria mais fácil perdoar seus deslizes. Todavia, ele é homem e ainda por cima é negro!!! Difícil para muitos sentir algo pelo Rei Negro do Futebol. Melhor e mais fácil seria adorar o Airton Senna, não? Esse pelo menos sempre foi da classe média e bem branquinho.

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Corações e Mentes

Quando eu estava no primeiro ano do ensino médio nossa professora de português nos levou ao cinema para ver um filme recém lançado que se chamava “Corações e Mentes”. Tratava-se de um documentário sobre a guerra do Vietnã, produzido um ano após a retirada das tropas americanas da Indochina e um ano antes da “Batalha de Saigon”, que selou o fim da guerra em 1975. Entre 1 e 3 milhões de vietnamitas perderam a vida nos combates, numa luta insana pelo direito de escolherem seu próprio destino após séculos de dominação estrangeira.

O filme me marcou profundamente pelas cenas de bombardeios, a crueza das torturas, o depoimento tocante dos soldados – que eram obrigados a despejar bombas sobre vilarejos – e tantas outras crueldades. Entretanto, nada me chocou mais do que a fala de um general americano chamado William Westmoreland – curiosamente seu sobrenome significa “mais terras para o oeste” – tanto é que suas palavras e sua expressão apática não me saíram da memória passados já mais de 40 anos. A fala que tanto me impactou se situa no final do documentário. Em breves segundos ele dizia textualmente que “Os orientais não dão o mesmo alto valor à vida que um ocidental. Para eles a vida é abundante e barata. A filosofia do Oriente expressa isso: a vida não é importante”.(minuto 1:43:15 do documentário de 1974 “Hearts and Minds”)

Para mim foi um choque, mas é possível entender perfeitamente as motivações desse general. Para quem pode determinar com um simples aceno de quepe a matança de mulheres e crianças em um vilarejo pobre da Indochina a única forma de suportar tamanha crueldade e covardia é criar a fantasia de que, aquilo que chamamos “vida”, para eles tem um valor menor. Assim, as lágrimas de uma mãe americana sobre o caixão do filho que volta morto da guerra têm muito mais valor do que aquelas vertidas por uma mãe oriental que carrega seu filho sem vida descarnado pelo Napalm. Desta forma, desumanizando o inimigo, é mais fácil cometer as mais brutais atrocidades, pois criamos uma barreira que nos impede o acesso à empatia. Tratamos os inimigos – incluindo seus anciãos, mulheres grávidas e crianças – como gado, ovelhas, para que o extermínio de suas vidas não nos cause dor, culpa ou remorso.

Quando eu presenciava alguém fazendo acusações criminosas contra os palestinos dizendo que usam os próprios filhos como “escudos humanos” – sem uma prova qualquer dessa barbárie – eu sempre lhes perguntava: “Se uma nação estrangeira viesse ocupar sua cidade você colocaria seus filhos na janela de casa para serem o alvo das balas inimigas?” e a reação era sempre um sonoro “NÃO“. Eu, então, questionava: “E por que acha que um palestino faria isso com seus próprios filhos?” e a resposta que se seguia cursava a mesma linha do General William Westmoreland citada acima: basicamente, “a vida tem um valor no centro do Império e outro para as colônias. Matar servos não é muito diferente de sacrificar animais”.

Para perpetuar os massacres covardes contra crianças, bebês e famílias inteiras em todos os lugares destruídos pelo Imperialismo é necessário criar e disseminar um projeto de desumanização dessa população. Só assim o odor de sua carne em brasa se torna suportável, suas perdas insignificantes e seus atos monstruosos aceitáveis. Chamar de “terroristas” todos os povos que lutam por sua terra, por sua autonomia, pela sua liberdade e pelo fim do Imperialismo é tão equivocado quanto usar a mesma palavra para descrever a Resistência Francesa e os bravos Vietcongues, que fizeram exatamente o mesmo. Criar a falsa narrativa de desapego dos insurgentes à vida dos próprios filhos é uma covardia sustentada por uma farsa. O mundo precisa enfrentar o imperialismo e o colonialismo racista que nos asfixia, se é que ainda temos esperança de sobreviver enquanto espécie.

Aqui o link para o documentário completo que pode ser visto no YouTube.

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Selvageria

Qualquer generalização no campo da interpretação dos sintomas pode cair na vala profunda da selvageria – mesmo quando correta. O diagnóstico não pode servir como julgamento ou condenação sumária, por mais que alguma teoria metafísica nos seduza nesse sentido. Uma consulta não pode se transformar em uma brincadeira de adivinhação.

É preciso entender que o cuidado com os pacientes – em especial as grávidas em suas fragilidades – requer uma atenção amorosa, isenta de preconceitos e sem julgamentos de ordem moral. As ferramentas diagnósticas e mesmo a visão ampla e psicossomática da doença não podem ser instrumentos de tortura medieval, imputado culpas e criando ressentimentos.

Mesmo que os sintomas, quaisquer que sejam eles, nos permitam inferir suas origens emocionais ou psíquicas, não cabe aos profissionais usar este conhecimento como arma. A prática do cuidado não pode ser o exercício da crueldade.

Se as terapias de qualquer tipo são “fraternidade instrumentalizada” então qualquer palavra, ato ou silêncio de um terapeuta só podem ser guiadas pelo sentido do cuidado amoroso. Sem esse guia perdemos toda a dimensão humana e fraterna da arte de curar.

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Visita Íntima

Acho curiosas as justificativas de quem defende tratamento violento, agressões, privações, mortes e tortura para internos do sistema prisional. A lógica é sempre a mesma:

“Alguma coisa fizeram”,
“Se tivesse ido a igreja ao invés de assaltar…”,
“Não quer dormir na masmorra, comporte-se”,
“Tratamento humano? E a vítima teve?”,
“Direitos humanos para humanos direitos”,
“Bandido bom é bandido morto”,
“Leva pra casa”, etc…

Também é engraçado ver os defensores dos direitos humanos sendo acusados de “comunistas” e “defensores de bandidos”, quando na realidade estes avanços civilizatórios são conquistas liberais, na justa iniciativa de proteger o cidadão comum do poder imenso do Estado. Sem estas medidas, os Estados teriam poder ilimitado de destruir aqueles que se opõem aos seus interesses.

Os direitos humanos são assim chamados porque se referem à dignidade humana. Isto é: inobstante o delito que tenha sido realizado o Estado não pode agir abaixo da linha da dignidade inata que qualquer cidadão tem por pertencer a está espécie.

“Ahhh, mas o sujeito cometeu um crime bárbaro (estuprou, matou, cometeu genocídio) por quê deveria ser tratado com candura?”

Por uma razão simples: a ação do Estado precisa ser pedagógica. Da mesma forma, uma criança que chuta um adulto não pode receber outro chute como punição. E não é porque a criança é inimputável, mas por ser indigno do ser humano cometer coletivamente um erro que um sujeito solitariamente cometeu. Além disso, não se trata de absolver e sequer perdoar, nem mesmo tratar com carinho e doçura (o que seria bom e produziria benefícios para todos) mas garantir a mínima dignidade que qualquer ser humano merece.

Mais do que isso, e acima de tudo, as medidas violentas contra apenados do sistema fechado são inúteis, ineficazes, indignas e contraproducentes, além de servirem apenas como vingança cruel e estimular sentimentos baixos no povaréu, o mesmo grupo de linchadores que assistia bruxas e punguistas queimando nas fogueiras na idade média.

Penas de morte, prisões perpétuas, tortura, condições sub-humanas de presídios e privação da sexualidade tem o efeito OPOSTO ao que se espera. Ninguém deixa de cometer uma barbárie com medo da pena de morte. Se isso fosse verdade, a pena de morte que existe entre facções do crime organizado faria as chacinas desaparecerem, e o que vemos é o oposto, um ciclo infindável de mortes e vinganças.

É cientificamente comprovado que o distensionamento da sexualidade nos presídios diminui a violência interna e os estupros. Portanto, pedir a extinção desse DIREITO só pode partir de quem se compraz com motins, carnificina, assassinatos, estupros e violência disseminada.

Isto é…. cidadãos de bem.

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Renovação

Minha nora entrou no centro obstétrico com contrações esparsas, bolsa rota, aumento de temperatura e uma ansiedade que compartilhava com todos ao redor. Dos atingidos pela angústia eu era o mais aflito – e o mais dissimulado. Por trás de uma máscara de tranquilidade, dúvidas e perguntas. Por que não desce? O que está havendo? Por que a temperatura subiu? Por que eu?

Não era para estar ali. Sempre deixei isso claro. Pedi a todos o direito de ser apenas avô, mas não foi possível. A gestação de mais de 42 semanas e as férias da obstetra que aceitou atender um parto normal nessas condições me colocavam como única esperança. Senti vergonha pela minha cidade, incompetente para produzir parteiros. Mais de 39 anos depois de “Nascer Sorrindo” de Leboyer e o cenário obstétrico continuava praticamente inalterado, com as mesmas visões anacrônicas dos anos 40. Um atraso que ainda levaremos décadas para recuperar.

Quando ela chegou ao centro obstétrico eu já estava lá esperando, como sempre fazia. Avisei algumas técnicas de enfermagem “amigas da causa” que a esposa do meu filho chegaria carregando meu neto, ainda no ventre. Foram elas que, com ingênua euforia, deixaram que a informação chegasse aos ouvidos da enfermeira chefe.

Sobrinha de uma das diretoras-freiras do hospital ela fazia o papel das antigas “enfermeironas” dos anos 50. Tinha uma política muito clara: favorecia os médicos que não “atrapalhavam” o serviço (os cesaristas). Era simpática e cordial com eles mas guardava todo seu azedume e ressentimento para os profissionais que trabalhavam fora do paradigma tecnocrático, aqueles que ousavam investir na condução natural (fisiológica) dos partos a despeito do tempo despendido para tal.

Nunca escondeu sua desaprovação por mim e pelas teses da humanização. Foi a primeira enfermeira a me dizer claramente que não aceitava o trabalho das doulas e durante os anos que trabalhamos no mesmo serviço sempre deixou explícito seu desprezo pela humanização do nascimento. “Vamos acabar com a farra das doulas“, me disse certa vez.

Quando viu minha nora entrar no centro obstétrico – segurando sua barriga entre as contrações – imediatamente barrou a entrada da doula. Inventou uma mentira ao insinuar que esta teria dito “se eu não entrar a paciente também não entra“. Usou de uma inverdade absurda para justificar sua atitude autoritária e vingativa. Precisei negociar a entrada dela e do meu filho, fazendo um enorme exercício de apaziguamento – exatamente no meio de uma brutal crise existencial.

Acabamos optando pela cesariana, por razões múltiplas, mas essencialmente por uma parada de progressão de várias horas. Depois da cirurgia a enfermeira chefe cruzou comigo pelo corredor do hospital e disse “Não sabia que era sua nora; se soubesse abriria uma exceção“.

Essa frase me deixou ainda mais furioso, mas nada disse para ela. Engoli em seco, como me acostumei a fazer durante 30 anos de bullying. Ela não só agiu de forma cruel tentando impedir o trabalho valioso da doula como confessou que teria se comportado diferente caso soubesse que era meu neto que estava por nascer. Eu pergunto: o que me faria merecer esta deferência? Por acaso neto de médico é diferente dos outros humanos?

Passados quase 7 anos desta cena, ainda guardo muita mágoa e culpa pelo silêncio que me impus – minha condição frágil no hospital não me permitia confrontações. Hoje fiquei sabendo que esta enfermeira-chefe saiu do hospital. Não sei as razões, mas espero que estejam relacionadas à discordância dos seus superiores com sua incapacidade de reconhecer a transcendência dos partos na história de tantos personagens: mãe, pai, bebê e família.

Em seu lugar assume uma enfermeira que sempre guardava um sorriso para receber bebês e recém mães. Que a história desse hospital possa mudar e uma página nova possa ser escrita. Que os pressupostos da humanização possam, finalmente, florescer.

Apesar de tudo, meu neto está aí, mostrando que o clima ruim construído ao redor de um nascimento pode ser revertido.

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Desajustado

linchamento

É, sou um desajustado mesmo. Não consigo ver sentido em achar que a doença de um criminoso poderia ser apaziguada – ou minimamente tolerada – se sobre ele for aplicada outra violência, igualmente desumana e brutal. Quem acha que as notícias de crimes hediondos desnudam um mundo cruel e absurdo deveria esperar os comentários antes de se escandalizar.

Os comentários, eivados de ódio e indignação, são frequentemente mais violentos que o próprio crime a que se referem, emitidos por criminosos em potencial, linchadores embrutecidos pelas frustrações pessoais, mas que ainda não tiveram oportunidade de delinquir.

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Ódio

Ódio

Não gosto o suficiente de você para lhe criticar, muito menos ofender. Sei que uma agressão de minha parte poderia ter como consequência – mesmo que teórica e improvável – uma reflexão e autocrítica suscitada em você. Entretanto, como meu ódio por você é visceral e incontrolável, usarei sobre si a mais mordaz das crueldades: ficarei em silêncio, calado e silente diante dos seus insultos e, assim fazendo, lhe condenarei a continuar exatamente onde está, imóvel e paralisado, infenso aos giros do tempo.

Wesley Hodgkin, “Wind of Time”, ed. Schummer Press, pág.135

Wesley Walter Hodgkin nasceu em Tulsa, Oklahoma e estudou na Booker T. Washington High School. Serviu na Força Aérea Americana após o término do ensino médio e morou em Ramstein, na Renânia, na base americana existente em solo alemão. Foi nesse período que escreveu seu livro de estreia, um romance que conta a história (segundo ele, baseada em fatos reais) da paixão entre um soldado americano e uma dissidente russa. “Nothing to Tell” (Nada a dizer) narra os conflitos éticos, morais e sexuais que se intensificaram com a guerra fria, mostrando o lado humano das diferentes ideologias e a perversidade inerente a qualquer de nossas relações afetivas. Em “Wind of Time”, seu derradeiro romance, ele descreve as agruras de um viciado em crack para dissolver dívidas do passado e resgatar o que lhe resta de vida. Foi casado com James Arlington, e teve dois filhos adotivos. Faleceu em 1994 de causas naturais.

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