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Memórias do Homem de Vidro – 01

Nascimento em Metamorfose

Deitada no leito, sua face esquálida e suada parece ainda mais branca. Os lençóis revoltos encobrem um corpo inquieto. As sombras dançam na parede, tendo a brisa que entra pela fresta da janela como melodia. O teto, a cama, o lampião — nada parece ser exatamente o que é. A casa simples e rude está em sintonia com os personagens da cena. O olhar da mulher busca avidamente por alguém. Pre­cisa de algo. Seu coração sente a necessidade de ajuda. Nem sabe porquê, mas sua alma reclama uma presença. Sua mão se ergue em direção à porta em cujo batente, encostado, está um menino. Com os olhos arregalados pela falta de luz e pelo medo, o frágil menino lhe estende a mão magra e delicada. Ela espera que uma dor cesse, respira fundo e lhe diz com uma voz fraca, porém firme:

— Chame dona Maria, meu filho. Diga-lhe que chegou a hora. Avise que a bolsa já rompeu e que não demora ele vem. Ah, e avise seu pai também.

O moleque escuta e sai em disparada porta afora. Seu coração pula no peito. Ele é um mensageiro. É Feidípedes em sua maratona. Incorpora a gravidade do mo­mento e coloca o coração nos calcanhares. Está orgulhoso e empolgado com a tarefa. O medo se mistura à excitação. Vira quatro ou cinco esquinas, atravessa algumas ruas sem olhar para o lado e chega à casa de Dona Maria. Seu peito pa­rece pular mais forte do que as batidas que dá na porta da velha casa de madeira. Repete o gesto até escutar movimento na casa. Então, a porta se abre e vê apa­recer o vulto de uma velha senhora, nos seus sessenta e muitos.

“Dona Maria… a bolsa… a minha mãe. As dores…”, balbucia. Com fôlego entre­cortado, repete as palavras que pareceriam sem sentido, não fosse a velha se­nhora uma mulher acostumada à cena. Ela sorri um sorriso quase maroto. Olha enternecida para o menino. Pousa a mão calejada em sua cabeça suada. “Calma, moleque! Respire fundo… Já entendi tudo”, diz ela com o mesmo sorriso ainda no rosto. “Corre, avise seu pai. Mas antes tome um copo d’água. Fique tranquilo, vai dar tudo certo. Arrumo minhas coisas e já vou para sua casa.”

As modificações evidentes no entendimento do parto, oportunizadas pelos últimos séculos e principalmente nas últimas cinco décadas, nos obrigam a um questio­namento profundo e crítico sobre o respeito dos caminhos que estamos trilhando, assim como da responsabilidade que temos ao tratar de um evento de tamanha magnitude como processo de reprodução. A cena acima descrita faz parte do nosso imenso repertório de histórias de parto, mas talvez estejamos perdendo aos poucos a possibilidade de reviver essas narrativas no mundo real, pela absoluta invasão da tecnologia sobre esse cenário até então dominado pela natureza e seus desígnios.

Somos inexoravelmente seres culturais. Nossa história foi marcadamente cultural depois do processo de encefalização ocorrido há dois milhões de anos passados. Depois de termos conquistado a bipedalidade, o crescimento cerebral foi o grande processo adaptativo que nossa espécie teve de enfrentar. A necessidade de cres­cimento de massa encefálica foi consequência de uma maior especialização do nosso cérebro pelas crescentes tarefas incorporadas ao nosso dia a dia. Depois disso, a criação do núcleo familiar foi claramente determinada pela altricialidade do recém-nascido. Nossos filhos nasciam cada vez mais dependentes e frágeis, obrigando, por processos adaptativos, a manutenção desse homem primitivo ao lado dessa mulher. Assim, criamos o protonúcleo cultural: a família. Apesar de não ser exclusividade do ser humano (algumas aves a utilizam), ela é única em seus significados e em sua função. A dependência de outros parceiros para a caça, coleta, segurança, manutenção de alimentos e criação de filhos consagrou nossa tendência gregária. Vivemos, sim, amontoados. Esses fatos, encadeados e soma­dos, foram os responsáveis pela nossa sobrevivência como espécie e, mais do que isso, como o grupo dominante na face da terra. Somos seres que procuram proximidade e somos “contadores de histórias”, como diria Stephen Gould. Nesse contexto, construímos o que entendemos hoje por “cultura”, que é a multiplicidade de histórias e maneiras de entender o cotidiano. Aprendemos a usar ferramentas que fazem ferramentas; aprendemos com os erros dos outros; somos os únicos animais que encaram sua finitude e sabem que estão fadados à morte. Temos a capacidade de simbolizar e de articular sons. Criamos a cultura a partir do cresci­mento de histórias e do significado que a matriz da sociedade deu a elas.

A cultura é necessariamente fundada em pilares muito sólidos. Precisamos de re­gras, leis e regulamentos que permitam que o nosso natural instinto egoístico seja mantido sob controle, para que a sociedade como um todo possa sobreviver. Mas nossa cultura repousa sobre uma matriz invisível, criada por nós mesmo em nome dos valores que erigimos como sendo os mais adequados para a nossa sobrevi­vência. Cada local e cada sociedade têm seus próprios valores, com suas caracte­rísticas próprias, apesar de que assombra muito mais a semelhança entre esses valores do que as eventuais dissonâncias. Não existem sociedades sem tabus, nem sociedades sem controle sobre a reprodução. Isso nos dá conta de um pa­drão universal adotado para o ajuste das sociedades crescentes.

Entretanto, o mudar das circunstâncias obriga a reformulação da matriz. Essa mu­dança sempre é muito lenta e gradual, para não solapar a organização que a muito custo criamos. A tecnologia crescente dos séculos XVII e XVIII, juntamente com o humanismo e o iluminismo, nos fez aos poucos derrocar a religião e a ma­gia como direcionadoras dos nossos sonhos escatológicos, colocando a ciência e a tecnocracia como suas fiéis sucedâneas.

Nesse embate, que perdura até hoje, vimos paulatinamente a ciência conquis­tando espaços até então apenas ocupados pelo misticismo e pelas explicações sobrenaturais e religiosas. A instituição passou a ser mais importante do que a natureza, porque a instituição é obra do homem, enquanto a natureza é obra do divino; foi-nos dada de presente. O que foi construído e modificado passou a ser mais importante e valorizado do que aquilo que nos foi oferecido graciosamente.

Na saúde, não poderia ser diferente. Fomos doutrinados a acreditar que a natu­reza é falha e que apenas através de um aporte tecnológico podemos manter nosso equilíbrio orgânico. As crianças ocidentais são, desde a mais tenra idade, bombardeadas de forma incessante por todo o tipo de drogas; dos antitérmicos e antibióticos, passando pelos neurolépticos e até pelos antidepressivos. Somos (enquanto médicos ou pacientes) doutrinados a acreditar em uma visão exógena de doença, cuja solução só pode ser igualmente exógena. O contraponto a essa visão antropológica da doença é, no mundo ocidental, ocupado pela homeopatia e pela psicanálise, que acreditam estar no próprio ser a origem profunda dos seus males. Entretanto, são elas ainda visões minoritárias e contra-hegemônicas na cultura.

A imagem do menino corredor, buscando o auxílio na experiência de uma mulher mais velha, dotada de saber autoritário em uma era pré-tecnológica, parece aos poucos estar desbotando no mural das nossas recordações. Apesar disso, essa cena fez parte do cenário cultural de gerações. Está em nossa memória coletiva, no nosso inconsciente. Ela está nos filmes, nas histórias, nas lendas, nos contos. Está nos estudos de antropologia e nas canções populares. O universo do nasci­mento confundia-se com o universo do feminino, e a geração de um novo ser no claustro materno inseria-se absoluta e inexoravelmente no mundo das mulheres. Era seu destino, sua sina, sua dívida. Aos homens cabia a contemplação e o en­cantamento. E a inveja recôndita, mascarada e escondida. Durante os milhares de anos em que a humanidade se desenvolveu, esta era a regra básica para o en­tendimento do fenômeno: este é um mistério, um mistério divino. Uma coisa de mulher.

Uma série de eventos, entretanto, rompeu esse vínculo do nascimento com a na­tureza. O surgimento de várias conquistas científicas na área da biologia (como a circulação do sangue, a noção mais exata da anatomia pelas dissecações, os es­tudos de patologia, etc.), aliadas ao molde conceptual e filosófico trazido pelo me­canicismo de Renée Descartes, produziu o caldo cultural necessário para a en­trada do saber médico na obscuridade mágica e úmida do nascimento humano. A tecnologia, enquanto ferramenta, começava a ocupar o lugar outrora ocupado pela intuição e pela experiência.

Os homens, a partir de meados do século XVII, iniciavam na tarefa de atender as gestantes e os partos, deslocando paulatinamente as parteiras, curiosas e “bru­xas”, que durante milênios foram as únicas “cuidadoras de mulheres” no momento de parir. Era a “vingança” daqueles que durante milênios estiveram alijados do milagre. Agora os homens também seriam co-criadores. Era a “couvade” (meca­nismo pelo qual os homens se “apoderam” do nascimento nas culturas primitivas, como os índios brasileiros, por exemplo) se manifestando de forma triunfante. Mais do que os homens, o “masculino” entrava no mundo das mulheres, trazendo com ele as luzes da razão, na tentativa de iluminar o obscuro e até então impene­trável mistério do nascer. O marco inicial dessa revolução poderia ser materiali­zado no primeiro grande instrumento masculino no atendimento ao parto: o fór­ceps. Criado pelos irmãos Chamberlain, na Inglaterra, foi mantido escondido dos olhares de curiosos, por ser uma ferramenta tão importante a ponto de tornar-se alvo da cobiça de concorrentes. A entrada dessa ferramenta fálica na história do nascimento determina um divisor de águas na obstetrícia. Nada mais seria como antes.

Com o correr dos anos cada vez mais tecnológica a obstetrícia foi se tornando. Os homens, antes espectadores atônitos e amedrontados, tornavam-se aos poucos condutores do processo. As mulheres passavam de protagonistas a assistentes passivas, seja como auxiliares dos médicos, seja na pele das próprias parturien­tes. O preço que a ciência cobraria para a sua entrada no cenário do nascimento ficou claramente estabelecido. A partir de então, não seria mais a natureza, com seus mistérios e incertezas, a conduzir o processo: a razão e a ciência assumiriam as rédeas. Com isso, muitas vidas poderiam ser salvas, muitas mulheres deixa­riam de morrer; muitas crianças seriam retiradas heroicamente do seu destino cruel pelas mãos (ou instrumentos) que os homens traziam.

Poucos séculos nos separam da obstetrícia “feminina”, mas podemos constatar, através das informações que nos chegam, a guinada que produzimos no atendi­mento às gestantes. Nos dias de hoje, no mundo ocidental contemporâneo, quase todos os partos são realizados em hospitais, estando as mulheres apartadas do seu ambiente e da sua família. O nascimento deixou de ser um evento cultural para se tornar um acontecimento médico. A intervenção passou a ser a regra. Na classe média das grandes cidades, os índices de cesariana chegam a 90%. Nos partos normais, ocorrência cada vez mais rara nos centros médicos do ocidente, cerca de 90% das pacientes usam medicações potencialmente perigosas para os bebês. A analgesia do parto tornou-se quase uma obrigatoriedade nos centros obstétricos. A intolerância com as práticas não-ortodoxas tem aspectos de perse­guição religiosa. A jornada tecnológica adentrou e apoderou-se do evento do nas­cimento, deslocando a própria mulher do papel de protagonista: os médicos e seus instrumentos tornaram-se os atores principais do parto. Às mulheres cabe a tarefa de transportar os “filhos do mundo”, para que no final do trajeto sejam rece­bidos pelos guardiões da saúde e do bem-estar, em nome da sociedade e das instituições. O apoderamento de um fenômeno humano, como o parto, por uma corporação ainda não foi suficientemente debatido para que entendamos as pro­fundas repercussões de tal mudança para a própria civilização, a cultura e a sa­úde.

Depois de um investimento pesado nas conquistas da ciência, temos o dever de reavaliar nossas posturas e no que em verdade avançamos. A ninguém parece plausível que o fenômeno do nascimento seja relegado à desassistência, mas o preço pago pela supermecanização parece estar cada dia mais alto. Surge na ca­beça de muitas mulheres, bem como de muitos profissionais da área, uma ques­tão: pode um fenômeno tão visceralmente feminino como o nascimento ser con­duzido por pressupostos filosóficos tão absolutamente masculinos? Da resposta a essa questão certamente aparecerão novos posicionamentos, novas visões e uma reavaliação do que realmente conquistamos até agora.

Os resultados negativos do tecnicismo nós os vemos todos os dias: epidemia de cesarianas, mortalidade materna alta, morbidade perinatal alta, incidência au­mentada de prematuridade iatrogênica, insatisfação das usuárias e custos estra­tosféricos. Apesar de, no mundo de hoje, uma grande parcela das crianças ainda nascer pelas mãos das parteiras, no ocidente da atualidade a medicalização cres­cente é uma realidade que nos mostra esses índices alarmantes. Ao lado de ofe­recer segurança para as mulheres no momento de parir, está na hora de garantir­mos a elas aquilo que ancestralmente possuíam e que lhes foi retirado pelo modo de vida contemporâneo: o afeto, a parceria, a feminilidade, o calor, a alegria e a sensação de aconchego que outrora recebiam em seus lares.

Nossa medicina obstétrica iatrocêntrica (centrada na figura do médico), etiocên­trica (centrada na patologia e na doença) e hospitalocêntrica (que entende e privi­legia os hospitais como centros disseminadores de saúde) não consegue oferecer a feminilidade que o parto reclama, pela incapacidade de reconhecer as necessi­dades básicas de uma mulher no momento de parir. É chegada a hora de que es­ses conceitos masculinos aplicados ao nascimento, que há alguns séculos po­voam os nossos dias, sejam revistos.

Para que o parto possa novamente ser uma “coisa de mulher”. Com segurança, com alegria e com afeto.

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Nascimento Humano – Aspectos Antropológicos

CURSO DE HUMANIZAÇÃO DO NASCIMENTO

Ric Jones

I. Introdução

As transformações evidentes na atenção ao parto, oportunizadas pelas alterações nas estruturas sociais e pelas descobertas científicas dos últimos séculos – e principalmente nas últimas décadas – nos obrigam a um questionamento profundo e crítico sobre os caminhos que temos pela frente, assim como os significados, as perspectivas e as responsabilidades que temos ao tratar de um evento de tamanha magnitude como este, relacionado ao processo de reprodução. As cenas de um nascimento inserido na comunidade e com o envolvimento da família fazem parte do nosso imenso repertório de histórias de parto, mas talvez estejamos perdendo aos poucos a possibilidade de reviver essas narrativas no mundo real, pela completa invasão da tecnologia sobre este cenário até então dominado pela natureza e seus desígnios.

Somos seres inexoravelmente culturais. Nossa história foi marcadamente cultural depois do processo de encefalização ocorrido há dois milhões de anos passados. Depois de termos conquistado a bipedalidade, o crescimento cerebral foi o grande processo adaptativo que nossa espécie teve de enfrentar. A necessidade de crescimento de massa encefálica foi muito provavelmente consequência de uma maior especialização do nosso cérebro pelas crescentes tarefas incorporadas ao nosso dia-a-dia, assim como a incorporação de proteína animal à nossa dieta. Posteriormente, a criação do núcleo familiar foi claramente determinada pela altricialidade do recém-nascido. O nascimento de bebês progressivamente mais dependentes do cuidado parental incrementou a necessidade de cooperação entre os elementos do grupo. Assim, criamos a base nuclear cultural: a família em todas as suas variantes.

Apesar de não ser exclusividade dos seres humanos, ela é única em seus significados e suas funções. A dependência de outros componentes para a caça, coleta, segurança, manutenção de alimentos e criação de filhos determinou nossa tendência gregária. Vivemos, assim, amontoados. Esses fatos, encadeados e somados, foram os responsáveis pela nossa sobrevivência como espécie e, mais do que isso, determinaram à espécie humana seu lugar como grupo dominante na face da terra. Somos sujeitos que procuram proximidade e somos “contadores de histórias”, como diria Stephen Gould. Nesse contexto nós construímos o que entendemos hoje por “cultura”, que é a multiplicidade de histórias e maneiras de entender o cotidiano. Aprendemos a usar ferramentas que fazem ferramentas; aprendemos com os erros dos outros; somos os únicos animais que encaram a sua finitude pois sabem que estão fadados à morte. Temos a capacidade de simbolizar e de articular sons. Criamos a cultura a partir da multiplicidade de histórias e do significado que a matriz da sociedade deu a elas.

II. Os desafios do parto – Primórdios

A espécie humana, como qualquer outro ser vivo, necessitou passar por duros desafios adaptativos para manter-se capaz de reproduzir-se. O advento da bipedalidade e a utilização dos membros superiores como ferramenta sofisticada, acabaram incorporando aos nossos ancestrais uma série de capacidades ainda não experimentadas por outras espécies. Por outro lado, as modificações anatômicas advindas desta transformação radical, acabaram imprimindo uma nova dinâmica ao processo de parturição. Se antes poderíamos supor que os partos eram fáceis, como os experimentados pelos pongídeos (gorilas, chimpanzés e orangotangos), a partir de nossa modificação postural eles passaram a ser muito mais complexos. A modificação pélvica foi determinante de alterações no funcionamento e no tempo de transcurso do parto. O espaço tornou-se mais exíguo, pela pressão da parte superior do tronco sobre a bacia, mas também pela concomitante necessidade de deslocamento rápido, produzindo o paralelismo dos membros inferiores, que nos permitia correr – uma arma de defesa extremamente útil desde que deixamos as árvores como refúgio principal. Nossa capacidade reprodutiva – portanto, nossa sobrevivência – encontrava um desafio terrível, porque o avanço da verticalização do tronco e a possibilidade de supremacia sobre outras espécies animais nos cobravam um preço muito alto, expresso na metáfora bíblica de “parirás com dor e sangrarás todos os meses”. Como produzir adaptação a estas modificações foi nosso grande desafio inicial.

A crescente especialização cerebral e a sofisticação de nossas relações sociais podem ter sido os grandes impulsionadores para a criação do gênero “Homo” há mais de dois milhões de anos passados. O surgimento do “Homo erectus” se deu às custas de processos adaptativos importantes, mostrando a capacidade dos nossos antepassados de encontrar estratégias de sobrevivência diante das ameaças existentes. Mas o “Homo erectus” tinha um desafio ainda maior. A capacidade encefálica havia aumentado de forma significativa, com a duplicação do volume craniano, quando comparado com os ancestrais autralopitecinos (como o Australopitecus afarensis, ou “Lucy”). A ameaça agora estava ainda mais clara: para uma pelve constrita e com trajeto sinuoso acrescentou-se um recém-nascido com volume craniano por demais avantajado. A desproporção céfalo-pélvica (desajuste entre os diâmetros da cabeça fetal e a ossatura pélvica materna) seria a consequência óbvia e natural para uma espécie que teimava em aumentar o volume craniano para acrescentar circunvoluções cerebrais e neocórtex. É possível que os sentimentos de apreensão experimentados por qualquer mulher que enfrenta uma gestação, e onde um parto se aproxima, são decorrentes das marcas na “memória ancestral feminina”, temores de um tempo onde as possibilidades de sofrimento e morte por desproporção eram comuns e dramáticas. O que fazer para suplantar mais este desafio?

A estratégia utilizada pelos nossos ancestrais há dois milhões de anos é a fundadora de toda a civilização como a compreendemos, e ainda estabelece o arcabouço de nossa estrutura psicológica. Para fugir do risco das desproporções, expulsamos prematuramente os fetos do claustro materno, num fenômeno chamado “fetação”. A fetação nada mais é do que a terminação do processo de maturação fetal fora do útero, ou “exterogestação”, antes do término de processo desenvolvimento neurossensorial.

Recém-nascidos são, antropológica e estruturalmente, fetos fora do útero. Somos, ao nascer, indivíduos com uma deficiência de maturação neurológica que nos coloca à mercê do amor e dos cuidados de nossa mãe.

 Os filhotes de nossa espécie são jogados no mundo extremamente frágeis e incompetentes.  A “altricialidade”, que é como chamamos a característica de extremada dependência dos recém-nascidos aos cuidados parentais, criou as estruturas fundamentais do funcionamento social e psicológico, com a produção de elementos tão básicos para entender a humanidade, como a família e o complexo de Édipo.

III. Os desafios do parto – O início da Civilização

Apesar das mudanças radicais na estrutura das sociedades humanas primitivas, nossos antepassados longínquos conseguiram suplantar o desafio de ter bebês demasiadamente dependentes, organizando sua estrutura social e psicológica no sentido de defender essas pequenas e indefesas criaturas. Seguimos nesse modelo até a chegada da nossa espécie, o “Homo sapiens”, há 200 mil anos passados. Nessa história de conquistas e desbravamentos criamos adaptações e ajustes que nos auxiliaram a continuar como dominantes no planeta. Dentre estas adaptações a racionalidade e a aquisição de linguagem foram os grandes demarcadores de nosso afastamento do determinismo natural. Apesar de estarmos atrelados inexoravelmente à animalidade por nossa herança biológica, nos afastamos para sempre dos ditames da natureza; não seríamos mais subjugados a ela. A partir do acesso à razão e à linguagem ocupamos um posto de controle crescente sobre o meio ambiente. A estratégia de caça e coleta, que durante milhares de anos foi satisfatória, começou a tornar-se pouco produtiva, na medida em que os grandes espaços livres e selvagens (fundamentais para esta atividade) foram escasseando pelo aumento populacional. Nesse contexto, a domesticação de animais e plantas tornou-se a adaptação mais justa para os desafios de populações crescentes, e nos ofereceu ferramentas importantes para alimentar grupos cada vez maiores. O domínio da terra foi uma consequência inevitável. Pela primeira vez, ao iniciar-se o período neolítico, o homem tornava-se possuidor de terra, assim como dos utensílios, ferramentas e armas para defendê-la. O controle sobre os processos reprodutivos não poderia tardar, pois dele dependia o número de novos elementos no grupo, os quais seriam importantes para a defesa das propriedades e animais.

Na esteira de tais modificações sociais surgiu o patriarcado, como o modelo que melhor se adaptava às sociedades guerreiras emergentes, as quais necessitavam de figuras fortes para manter a moral e a coesão dos grupos. As religiões, espelho das aspirações sociais, passaram a procurar uma imagem divina que satisfizesse tais expectativas, e surge o monoteísmo abrahâmico, que traz consigo uma ética centrada na figura da austeridade paterna e na obediência às leis. Nada seria igual a partir de então. As mulheres seriam companheiras dos guerreiros e, em troca de sua autonomia e liberdade exigiam proteção e segurança para si e suas crias. Este modelo social perdura até os dias de hoje, mesmo que o processo civilizatório tenha amainado muita das determinações mais ostensivamente violentas contra a autonomia das mulheres. Hoje o patriarcado é um modelo decadente, pois as forças sociais que o criaram se modificaram radicalmente no último século. A dominação sobre o corpo das mulheres não faz mais sentido em sociedades que exigem liberdade e autonomia. Estamos na aurora de uma sociedade em que a opressão e o domínio sobre as mulheres será apenas uma página em um livro de história.

IV. Os desafios do parto – Modernidade

Apesar da introdução do sedentarismo, da posse de objetos, animais e pessoas, o universo do nascimento ainda se confundia com o universo do feminino. A geração de um novo ser no claustro materno inseria-se absoluta e inexoravelmente no mundo das mulheres. Era seu destino, sua sina, sua dívida. Aos homens cabia a contemplação e o encantamento. E a inveja recôndita; mascarada e escondida. Durante os milhares de anos em que a humanidade se desenvolveu esta era a regra básica para o entendimento do fenômeno: Este é um mistério; um mistério divino. Uma coisa de mulher.

Uma série de eventos, entretanto, rompeu este vínculo do nascimento com a natureza. As várias conquistas científicas na área da biologia (como a circulação do sangue, a noção mais exata da anatomia pelas dissecações, os estudos de patologia etc.) aliadas ao molde conceitual e filosófico trazido pelo mecanicismo de Renée Descartes produziram o caldo cultural necessário para a entrada do saber médico na obscuridade mágica e úmida do nascimento humano. A tecnologia, enquanto ferramenta, começava a ocupar o lugar outrora ocupado pela intuição e pela experiência. 

Os homens, a partir de meados do século XVII, iniciavam na tarefa de atender as gestantes e os partos, deslocando paulatinamente as parteiras, curiosas e bruxas, que durante milênios foram as únicas cuidadoras de mulheres durante o ciclo gravido-puerperal. Era a “vingança” daqueles que durante milênios estiveram alijados do milagre; agora os homens também seriam cocriadores. Mais do que os homens, o “masculino” entrava no mundo das mulheres, trazendo com ele as intervenções sobre a natureza, na tentativa de iluminar o obscuro e até então impenetrável mistério do nascer. O marco inicial desta revolução poderia ser materializado no primeiro grande instrumento masculino no atendimento ao parto: o Fórceps. Criado pelos irmãos Chamberlen, na Inglaterra, foi mantido escondido dos olhares de curiosos, por ser uma ferramenta tão importante a ponto de tornar-se alvo da cobiça de concorrentes. A entrada desta ferramenta fálica na história do nascimento determina um divisor de águas na obstetrícia. Nada mais seria como antes.

Com o correr dos anos mais e mais tecnológica a obstetrícia foi se tornando. Os homens, antes espectadores atônitos e amedrontados, tornavam-se aos poucos condutores do processo. As mulheres passavam de protagonistas a assistentes passivas, seja como auxiliares dos médicos, seja na pele das próprias parturientes. O preço que a ciência cobraria para a sua entrada no cenário do nascimento ficou claramente estabelecido. A partir de então não seria mais a natureza, com seus mistérios e incertezas, a conduzir o processo; a razão e a ciência assumiriam as rédeas. Com isso muitas vidas poderiam ser salvas, muitas mulheres deixariam de morrer; muitas crianças seriam retiradas heroicamente do seu destino cruel pelas mãos (ou instrumentos) que os homens traziam.

V. Os desafios do parto – A Necessidade de Mudança

Poucos séculos nos separam da obstetrícia “feminina”, mas podemos constatar, pelos dados que nos chegam, a mudança radical que produzimos na assistência prestada às gestantes. Hoje em dia, no mundo ocidental contemporâneo, quase todos os nascimentos são conduzidos em hospitais, estando as mulheres apartadas do seu ambiente e da sua família.

O nascimento humano deixou de ser um evento cultural para se tornar um acontecimento médico. A intervenção passou a ser a regra.

Nos hospitais privados das grandes cidades os índices de cesariana ultrapassam os 90%. A ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar – estima que 88 % dos partos realizados na classe média ocorrem através de cesarianas. Mesmo nos partos normais, ocorrência cada vez mais rara nos centros médicos do ocidente, mais de 80% das pacientes usam medicações potencialmente perigosas para os bebês. A analgesia do parto tornou-se quase uma obrigatoriedade nos centros obstétricos, e os anestesias figuras absolutamente corriqueiras nos centros obstétricos. A intolerância com as práticas não ortodoxas tem aspectos de perseguição religiosa. A jornada tecnológica adentrou e apoderou-se do evento do nascimento, deslocando a própria mulher do papel de protagonista. Os médicos e seus instrumentos tornaram-se os atores principais do parto, cabendo às mulheres apenas a tarefa de carregadoras dos “filhos do mundo”. Estes, no final do trajeto, serão recebidos pelos guardiões da saúde e do bem-estar, em nome da sociedade e das instituições. A expropriação de um fenômeno fisiológico, mas também cultural e social como o parto, por uma corporação ainda não foi suficientemente debatido para que entendamos as profundas repercussões de tal mudança para a própria sociedade, a cultura e a saúde. 

Depois de um investimento pesado nas conquistas da ciência temos o dever de reavaliar nossas posturas, e o que em verdade conquistamos.

A ninguém parece plausível que o fenômeno do nascimento seja relegado à desassistência, porém o preço pago pela excessiva medicalização parece estar cada dia mais alto.

Surge na mente de muitas mulheres, bem como de muitos profissionais da área, uma questão: Pode um fenômeno tão visceralmente feminino como o nascimento ser conduzido por pressupostos filosóficos tão absolutamente masculinos? Da resposta desta questão certamente aparecerão novos posicionamentos, novas visões e uma reavaliação do que nós realmente conquistamos até agora. 

Os resultados negativos do tecnicismo nós os vemos todos os dias: epidemia de cesarianas, mortalidade materna alta, morbidade perinatal alta, insatisfação das usuárias, custos estratosféricos. Apesar de que no mundo de hoje uma grande parcela das crianças ainda nasce pelas mãos das parteiras, no ocidente da atualidade a medicalização crescente é uma realidade que nos mostra estes índices alarmantes. Ao lado de dar segurança para as mulheres no momento de parir, está na hora de oferecermos a elas aquilo que elas ancestralmente possuíam e que foi retirado pela civilização contemporânea: o suporte, o apoio incondicional, o afeto, a parceria, a feminilidade, o calor, a autonomia, a alegria e a sensação de aconchego que outrora recebiam em seus lares. 

Nossa medicina obstétrica iatrocêntrica (centrada na figura do médico), etiocêntrica (centrada na patologia e na doença) e hospitalocêntrica (que entende e privilegia os hospitais como centros disseminadores de saúde) não consegue oferecer a feminilidade que o parto reclama. É chegada a hora de que estes conceitos masculinos aplicados ao nascimento, que há alguns séculos povoam os nossos dias, sejam revistos. Para que o parto possa novamente ser uma coisa de mulher. Com segurança, com alegria e com afeto.

Bibliografia

  1. Trevathan, W.R. (1987) Human Birth: An Evolutionary Perspective. Hawthorne, NY: Aldine de Gruyter.
  2. Trevathan, W.R., Smith, E.O., McKenna, J.J. Evolutionary Medicine (1999) Oxford University Press
  3. Jones, R.H. Memórias do Homem de Vidro – Reminiscências de Um Obstetra Humanista (2004) Editora Idéias a Granel.
  4. Ministério da Saúde Brasil. Parto Aborto e Puerpério – Assistência Humanizada à Mulher – MS 2001
  5. Illich, I. A Expropriação da Saúde. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1975. p.59.
  6. Enkin M. & Cols, Guia para Atenção Efetiva na Gravidez e no Parto. 3a Edição – Guanabara Koogan 2000
  7. FEBRASGO. Tratado de Obstetrícia da Febrasgo. Rio de Janeiro, Revinter – 2000. 913p
  8. Davis-Floyd, R. Birth as an American Rite of Passage. 2a Edição (2005) Ed University of California

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Exercícios sobre o Texto (Módulo 1)

Estude cuidadosamente o texto “Nascimento Humano, Aspectos Antropológicos” e responda as questões que seguem de modo objetivo e procurando dar exemplos práticos sobre os assuntos a que elas se referem. Preferencialmente, não utilize mais do que duas páginas para todas as respostas solicitadas neste exercício.

  1. Qual o primeiro desafio apresentado ao parto pelos antepassados do homem e porque você entende que ele foi importante?
  2. Quais as repercussões do aumento do volume cerebral para a dinâmica do parto, e como estas repercussões afetaram a estrutura psicológica e social da humanidade?
  3. Porque a mudança de estratégia para aquisição de alimentos, da caça e coleta para a agricultura, pastoralismo e sedentarismo, produziu modificações no nascimento humano?
  4. Porque, em sua opinião, existe uma crítica crescente à assistência ao nascimento humano e uma tentativa de resgate de valores há muito esquecidos? Explique.

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