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Leite derramado

Não que isso seja uma desculpa, mas um dos principais problemas do Estado é a própria estrutura da democracia liberal; na nossa cultura as pessoas pensam a qualidade dos governos na perspectiva dos seus próprios interesses. É muito comum a gente ver um caminhoneiro, dono de bar, médico, professor, empresário ou funcionário público se dizendo arrependido de ter votado no governador, prefeito ou presidente porque não resolveu os problemas da sua categoria. “Não recebemos aumento desde que fulano foi eleito!! Nunca mais voto nele!!” É o famoso voto egoísta. Assim sendo, mesmo quando o governante é um crápula, canalha, ladrão e incompetente, se contemplou seu segmento profissional, seu bairro, sua identidade, sua cidade, colocou calçamento na sua rua ou deu um cargo em confiança para o seu sobrinho ele automaticamente se torna maravilhoso. Essa é apenas uma das razões pelas quais fazemos este tipo de escolha nas eleições, que se mostram um desastre para o povo. Agora estamos a chorar sobre o leite derramado.

Além disso, quem define o que é um bom governante? Aqui no Brasil sempre se consideram as “obras”, e estas precisam ser visuais, que atinjam os sentidos, que impactem a todos por sua grandiosidade. Um viaduto (prefeitos tem tesão em viadutos), um novo hospital de transplantes ultramoderno (que vai beneficiar médicos especialistas e não mais que 100 pacientes por ano), avenidas, pavimentação, aeroporto, etc. Mas qual governante faria uma rede de esgotos? Quem faria uma reformulação da rede elétrica? Quem pagaria um salário decente aos professores? Quem se arriscaria a fazer transformações profundas na estrutura invisível da sociedade? Quem arriscaria seu mandato fazendo apenas o que precisa ser feito – e não o que dá votos? Como acham que o prefeito ou o governador poderiam fazer propaganda dessas administrações usando como publicidade o conserto das bombas de drenagem estragadas há muitos anos que evitaram algo que – por causa disso – não aconteceu? Quem votaria num prefeito cujo slogan fosse: “Eu consertei o que estava estragado, mas não foi usado ainda”?

Sempre conto a história de uma paciente que teve uma síncope cardíaca no corredor do hospital, mas por sorte caiu na frente de dois médicos que passavam por ali: um cardiologista e um obstetra. Por esta situação fortuita foi possível realizar uma cardioversão (choque) imediata, e assim teve a vida salva. Quando recebeu alta da UTI escreveu uma carta (que foi lida no auditório do hospital) elogiando o trabalho do médico que a salvou. Quando fomos ver seu prontuário notamos que ela estava há vários anos sem consultar para sua condição cardíaca – uma arritmia. Isso nos deixou uma lição: elogiamos os médicos que consertam heroicamente as falhas do sistema, mas nunca damos o devido crédito àqueles profissionais cuidadosos que não permitem que seus pacientes fiquem tantos anos sem assistência; nunca elogiamos os médicos que silenciosamente evitam os desastres. Esses são invisíveis, tanto quanto o são os canos de esgoto, as bombas de drenagem, os diques para represar o rio, a rede elétrica e a rede de água potável que existem nas cidades e ninguém vê.

Para haver um sistema mais democrático precisamos ultrapassar a democracia liberal e a política sazonal, aquela que só ocorre cada 4 anos. Precisamos nos livrar dos políticos populistas e do sistema que se ocupa tão somente na maquiagem superficial das cidades. Mas, por mais que seja duro admitir, precisamos de novos eleitores, novos cidadãos, personagens ativos na transformação da sociedade em que vivem, agentes mais participativos no dia a dia das cidades, dos Estados e do país. Gente que possa enxergar o valor da melhoria coletiva, e não apenas daquelas mudanças que lhe interessam ou afetam. Com o modelo atual será sempre mais difícil.

Sim, agora vamos consertar as bombas de de drenagem estragadas em Porto Alegre. Precisou aparecer a “pedra de tropeço”, a tragédia, o desastre ambiental, e agora choramos sobre o leite derramado. Até quando nossa visão política vai ser apenas para os próximos 4 anos, quando sabemos que na China os planos são para 50 anos?

Pensem nisso.

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Arquivado em Causa Operária, Política