Cancelado

A primeira vez que testemunhei esse fenômeno foi há uns 10 anos ao resolver comprar um produto pela Internet quando estava nos Estados Unidos. Recebi o produto pelo correio alguns poucos dias depois da compra e ele veio com um papel onde se lia algo como: “Se o produto tiver qualquer avaria avise-nos antes de fazer sua avaliação no site. Faremos o possível para resolver a questão e estaremos à disposição para ouvir sua reclamação. Não nos avalie negativamente antes de nos dar a chance de resolver seu problema”.

Percebi, pela primeira vez, o quanto valorizavam minha opinião, minha avaliação do produto e o que achei do atendimento. Eles preferiam mandar um produto novo – sem custos!! – do que lidar com uma avaliação negativa na seção de “comentários” da página. Ficou óbvio que uma avaliação muito negativa deveria afastar centenas de potenciais compradores. Imagine olhar os comentários antes de decidir comprar e ler: “Não compre. Quebrou em uma semana e não devolveram meu dinheiro”. Não há dúvida que manter o comprador satisfeito é a política mais segura. Para alguém que passou a vida inteira sem nenhuma alternativa depois de fazer uma compra, esse empoderamento súbito da minha perspectiva como comprador pareceu um milagre, o que foi possível com a popularização das compras on line. Pois naquele singelo bilhete eu estava, em verdade, vendo as primeiras manifestações de um fenômeno tão significativo quanto novo: o surgimento do sujeito solitário que expressa sua opinião sobre produtos publicamente, mas agora com inédita relevância.

Não há dúvida que o medo do comerciante gerou uma necessidade de melhorar os produtos e os serviços. Já fiz reclamações em compras da Amazon por envio errado de produtos cujo conserto por parte dos vendedores custou mais do que o próprio produto que comprei. Ficou evidente que uma avaliação mordaz e negativa poderia causar muito estrago. E não se trata de criticar a força que a ponta consumidora acabou ganhando, longe disso. Porém, outro fato se associou a este “novo poder” garantido ao comprador: não apenas os produtos passaram a ser avaliados, mas também as pessoas. A partir de então, as figuras públicas passaram a ser vistas e tratadas como produtos que consumimos nas redes sociais. Caso elas não cumprissem nossas expectativas, poderíamos usar da nova ferramenta social chamada “cancelamento“. A partir deste novo modelo de interação social, passamos a cancelar gente “à rodo”, pelas mais diferentes razões, mas em especial pelas escolhas políticas, as posturas morais, o comportamento, as manifestações públicas, etc. “Fez o L?”, cancelado. “Votou no Bozo?” cancelado. “Separou da mulher?”, você não vale mais nada. “Talaricou?”, você está fora. “Foi acusado de algo horrendo, como abuso sexual?” então você será destruído impiedosamente, sem direito a perdão, mesmo que no futuro se prove que era tudo mentira.

Nesse novo modelo, o trabalho das pessoas, sejam elas jogadores de futebol, cantores, pensadores, jornalistas, médicos, etc. passou a ser secundário à persona pública do sujeito. O que você faz é menos relevante do que o que parece ser. Hoje inclusive existem “gerentes de imagem”, funcionários que controlam tudo o que o sujeito pode dizer, de que lado deve se postar, se deve apoiar este ou aquele candidato, o que deve dizer sobre a Palestina, a Ucrânia, o aborto, as mulheres, o machismo, os gays, os negros, as trans, o sexo, etc. Isso determinou que hoje em dia nenhuma opinião é real e verdadeira; todas são, determinadas por aqueles que controlam a imagem do “influencer” e são moduladas pelo interesse dos fãs – que em última análise controlam como seus ídolos devem ser.

Hoje o cancelamento é uma adaga que balança sobre nossas cabeças. A mera suspeita de um malfeito não confirmado causou o cancelamento de PC Siqueira, sua depressão e posterior morte. A menina, sobre quem se criou uma série de mentiras sobre o namoro com um comediante, também não suportou a pressão das redes. Outros fizeram piadas que ofenderam identidades (ou identitários) e foram imediatamente cancelados. Calados, amordaçados, enviados para a “Zona Fantasma”, desapareceram ou foram destruídos, mandados para onde são jogados aqueles cuja opinião não podemos tolerar. Ninguém está livre de ser julgado e condenado pelo tribunal da redes, basta ter uma opinião contra-hegemônica.

Sequer estou me referindo à ação autoritária da justiça, que deseja “regular” as redes sociais para evitar “abusos”. Sobre isso o caso Monark (youtuber cancelado por dizer que era a favor da criação de qualquer partido, até mesmo o nazista) é didático ao nos mostra como o conceito de “abuso” pode ser absolutamente subjetivo e também servir oportunisticamente aos interesses dos poderosos. A censura nos ameaça tanto de maneira formal quanto na informalidade das redes. Não…. aqui falo apenas aqui do sujeito que, na condição de relativo anonimato e segurando um celular nas mãos, decreta a destruição de um outro baseado em antipatia, discordância ou mera implicância. Esse sujeito, empoderado como consumidor, é capaz de gerar pequenas – e até grandes – tragédias.

Como diria o filósofo contemporâneo Roger Jones “…as redes sociais nos jogaram ao mesmo tempo na modernidade e na idade média. Basta abrir o “x”, ex-Twitter, e veremos que todo dia há uma nova vítima jogada à fogueira; é assim que funciona. É o mercado da punição, algo que está enriquecendo muita gente, porque funciona como um negócio. Anotem: semana que vem surgirá um novo “monstro” para ser empalado publicamente, porque esse é o combustível, a força que nos impele a ligar o celular e gozar com o novo linchamento. As redes sociais vivem de pecados alheios; esse é o grande barato e o grande lucro desse negócio”.

E você? Já cancelou alguém hoje?

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