Entrevista Diario La Capital

Rosário - Argentina, dia 20 de agosto 2013
Rosário – Argentina, dia 20 de agosto 2013

1. Em primeiro lugar, o que consideras como humanização do nascimento? Que características consideras fundamentais para caracterizar um parto como humanizado?

O termo correto para este movimento é “humanização”. Todo o parto será “humano” desde que ocorra na nossa espécie. Por outro lado, para ser “humanizado” ele precisa seguir algumas características essenciais. Entendemos o parto humanizado composto por um tripé conceitual como o que se segue:

a) O protagonismo restituído à mulher, sem o qual estaremos apenas “sofisticando a tutela” imposta milenarmente pelo patriarcado.

b) Uma visão integrativa e interdisciplinar do parto, retirando deste o caráter de “processo biológico”, e alçando-o ao patamar de “evento humano”, onde os aspectos emocionais, fisiológicos, sociais, culturais e espirituais são igualmente valorizados, e suas específicas necessidades atendidas.

c) Uma vinculação visceral com a Medicina Baseada em Evidências, deixando claro que o movimento de “Humanização do Nascimento”, que hoje em dia se espalha pelo mundo inteiro, funciona sob o “Império da Razão”, e não é movido por crenças religiosas, ideias místicas ou pressupostos fantasiosos.

“A humanização do nascimento não representa um retorno romântico ao passado, nem uma desvalorização da tecnologia. Em vez disso, oferece uma via ecológica e sustentável para o futuro”.

Humanizar o nascimento é oferecer o melhor de dois mundos: o respeito à fisiologia feminina, processo adaptativo de milhares de anos, e o recurso tecnológico quando a rota de um parto se afastar da normalidade e se aproximar da patologia. A humanização do nascimento está ao lado dos avanços científicos, mas também em sintonia com a natureza e seus sábios desígnios. A harmonia entre essas forças é o objetivo de quem atende partos de forma humanizada.

Se o preceito primeiro é o respeito ao protagonismo, então os partos mais humanizados serão aqueles em que tal aspecto for respeitado e entendido como prioritário. Os países europeus se encontram à frente deste debate, exatamente porque as conquistas na área democrática fizeram com que o mesmo entendimento de “direitos de cidadania” se aplica às gestantes. Para elas são oferecidas várias modalidades de atendimento, e a escolha de qual modelo a seguir dependerá de seus desejos e expectativas. Para além do protagonismo, as intervenções precisam ser baseadas em evidências, e isso já se vê em muitos países da Europa que aboliram a episiotomia de rotina, as tricotomias, enemas, kristelleres e tantas outras condutas sabidamente equivocadas. A presença de um grande número de países na Europa que adotam modelos mais humanizados de atenção ao parto corre ao lado dos esforços destes mesmos países de democratizarem todos os aspectos da vida social. Como diria a professora Robbie Davis-Floyd, “a humanização do nascimento não se desenvolve num vácuo social, mas faz parte de um modelo social mais amplo”.

2.  Qual sua visão acerca da atual situação da humanização do nascimento no Brasil e na Argentina?

A situação na Argentina é semelhante àquela que encontramos no Brasil. O modelo de atenção que existe nos países da América do Sul é importado dos “irmãos do norte”, os Estados Unidos, e por esta razão temos uma tendência a entender o parto como um evento médico altamente especializado, com uso intenso de tecnologia e uma dificuldade de entender os aspectos sociais do mesmo. A demanda por partos humanizados em toda a América está centrada na dificuldade do sistema médico ocidental de reconhecer e trabalhar com as necessidades afetivas, psicológicas, emocionais e espirituais que cercam o nascimento humano e que são a base de sua atenção desde tempos imemoriais. O resultado desta falha se demonstra na altíssima incidência de cesarianas, nas intervenções exageradas, no uso abusivo de medicamentos, na manipulação inadequada e na insatisfação crescente das mulheres com seus partos. No Brasil, Chile, Uruguai e na Argentina as cesarianas estão acima de qualquer consideração, extrapolando em muito os valores preconizados pela OMS, sem que tal investimento em intervenção resulte em melhores taxas de mortalidade materna e perinatal. Por outro lado, um número cada vez maior de ativistas destes países une suas vozes contra o que consideram “violência obstétrica”, e este movimento – de característica popular, pois as lideranças são de usuárias do sistema de saúde – vai acabar por mudar a face da assistência na América Latina.

3.  Quais são as condutas que mais frequentemente nos afastam do parto humanizado e, nesse sentido, quais aspectos poderíamos corrigir ou melhorar?

A alta incidência de cesarianas é a mais evidente, é claro. O Brasil ultrapassou no ano de 2011 o limite dos 50%, acendendo a “luz vermelha” do intervencionismo. Já contamos mais de 52% de cesarianas no país inteiro, entre nascimentos em hospitais públicos e privados. Os partos nos hospitais privados a situação é ainda mais grave: a classe média brasileira tem incidência de mais de 85% de cesarianas. Entretanto, o abuso inequívoco desta cirurgia não é o único problema. Como falamos anteriormente, o pilar central da assistência humanizada é a restituição do protagonismo à mulher, e o impedimento da presença de acompanhantes é uma falha GRAVE do modelo, pois impede exatamente a essência da assistência, qual seja, o suporte emocional à grávida. O Brasil tem leis que garantem o direito ao acompanhante, mas infelizmente ela ainda não é plenamente cumprida por hospitais públicos e/ou privados.

Também é digna de nota a utilização exagerada de medicamentos durante o parto, artificializando o processo (geralmente na tentativa de apressar o parto) e incluindo riscos ao nascimento. O uso de episiotomias, manobras de Kristeller (pressão no fundo uterino), raspagem de pelos, enemas e outras manobras inúteis e perigosas precisam ser questionadas para melhorar a atenção ao parto nos países ao sul da América.

4.  O que aconselhas aos obstetras, enfermeiras e obstetrizes para que não alterem o processo natural do parto e para que ofereçam um adequado suporte às gestantes?

O principal conselho é escutar as mulheres, respeitar a fisiologia do nascimento, entender as múltiplas disciplinas que se envolvem com este evento, conhecer a história do nascimento humano e dedicar-se a utilizar as práticas recomendadas pela medicina baseada em evidência. Qualquer profissional que seguir estas regras simples poderá se considerar “humanizado”. Para tanto é preciso entender que a principal ação de um obstetra é “vitrificar-se”, fazer-se vítreo, de vidro. Apagar sua natural propensão à intervir e permitir que a mulher seja a “estrela” do processo, sendo a protagonista do evento. Com isso poderemos fazer do parto um processo de profundo empoderamento desta mulher/mãe que acaba de passar por um fantástico rito de passagem, com claras e positivas repercussões na difícil tarefa que se segue: a maternidade.

5.  Acreditas que a medicalização nos levou a descuidar dos aspectos naturais do nascimento e das necessidades de mães e recém-nascidos?

Certamente que o ingresso do conhecimento científico na atenção ao parto produziu um reforço nas questões médicas e na intervenção nos mecanismos do parto, com o objetivo de auxiliar mães e bebês que, sem estes recursos, teriam um péssimo desfecho da gestação e parto. Assim, a intervenção em si não é ruim, nem prejudicial. Não existe qualquer antagonismo entre uso de tecnologia e humanização do nascimento. Entretanto, a “desnaturalização” do parto acabou ocorrendo pela visão coisificante da mulher, sua objetualização e sua parcial “exclusão” das decisões a respeito do parto, e isso teve consequências negativas para ela e o seu bebê. Os movimentos de humanização vieram exatamente para propor um novo equilíbrio entre cultura e natureza. A humanização do nascimento vem propor a síntese das teses antagônicas que vigoram na atenção ao parto. Não apoiamos a desassistência e nem a exagerada manipulação e intervenção sobre a mulher, seu corpo, suas emoções e seu bebê. Todavia, reconhecemos a importância da ciência e das intervenções técnicas salvadoras, mas acreditamos que elas só devem ser utilizadas quando seus riscos forem menores do que o respeito pela fisiologia do parto. Assim, podemos ter o melhor de dois mundos: a qualidade que a ciência nos oferece nos casos patológicos, e o respeito à natureza que a fisiologia do parto nos ensina, quando conhecemos e respeitamos o fluxo natural das forças do nascimento.

6.  Na Argentina nos últimos anos se nota uma tendência a humanizar o parto. Que conselhos nos daria para seguir avançando neste caminho?

Apostem nas mulheres. As mulheres serão as grandes e únicas revolucionárias. Os profissionais de saúde, sejam eles os médicos, parteiras, enfermeiras, doulas, psicólogas e outros, apenas seguirão o que as mulheres decidirem. Toda a violência institucional contra as mulheres acabará como por encanto no dia em que as mulheres decidirem que é preciso dar um BASTA. As cesarianas em excesso, os confinamentos hospitalares, a solidão, a objetualização e todas as ações contrárias à dignidade das mulheres também vai acabar quando elas assim decidirem. A forma de mudar este panorama é através da conscientização, da informação e da organização. No Brasil existem centenas de grupos de apoio às gestantes, e um pequeno exército de mulheres que se empoderam através de cursos, encontros, grupos de mães e de mulheres. Creio que na Argentina estas “voluntárias” estejam também surgindo. O foco, em minha opinião, será sempre aquelas que mais se beneficiam das mudanças: as mulheres. Isso não significa que devemos deixar os cuidadores de lado, mas estes terão um estímulo especial de modificar sua atitude e suas práticas quando as mulheres bem informadas começarem a pressionar por uma troca de modelo.

7. Quais temas pretendes desenvolver na jornada que darás em Rosário na Jornada de Introdução à Humanização do Nascimento, no dia 20 de agosto de 2013? Quais os objetivos deste encontro?

Vou desenvolver quatro temas fundamentais e mais um tema extra, se for possível e houver tempo.

a) Antropologia do Nascimento: Uma viagem de 5 milhões de anos na história do nascimento humano e os seis grandes desafios que tivemos que vencer para chegar onde estamos. Uma aventura audiovisual pelas espécies que nos antecederam e os grandes saltos adaptativos para a adequação do parto da espécie mais delicada e sofisticada do planeta: o ser humano.

b) Humanização do Nascimento e Equipe Interdisciplinar: O trabalho de equipes interdisciplinares compostas de médicos, enfermeiras obstetras e doulas na atenção ao parto, para oportunizar uma abordagem completa do nascimento, incluindo seus aspectos técnicos, psicológicos e sociais. Um mergulho na fisiologia do parto e sua expressão hormonal, mostrando as variações de ocitocina, prolactina, progesterona, estrogênio, endorfina e adrenalina. Um olhar sobre as reais necessidades de privacidade e cuidado que todas as fêmeas compartilham.

c) Obstetrícia e Ciência: A importância do olhar científico sobre as ações médicas, em especial aquelas do parto humano, mostrando a mitologia e os rituais que compõe a assistência ao parto no mundo ocidental. Mitos, crenças e razão: da dança desses elementos claramente humanos emerge a realidade do parto.

d) Obstetrícia e Medicina Baseada em Evidências: Uma explanação sobre a grande revolução médica do final do século XX, a Medicina Baseada em Evidências, e sua repercussão na obstetrícia contemporânea. Esta nova atitude frente aos procedimentos no parto abriu as portas para a ciência, afastou as mitologias indesejáveis e clareou os procedimentos rotineiros, mostrando quais poderiam permanecer e quais deveriam ser evitados na atenção ao nascimento. Apesar de sua característica revolucionária, muitos profissionais tem dificuldade de adotar a nova metodologia e as novas práticas em benefício das mulheres. Este seminário vai poder oferecer respostas para tal resistência.

e) Entre as Orelhas – O nascimento na perspectiva do Sujeito (aula extra): Após as conquistas de grandes avanços no pensamento sobre o parto, a descoberta dos hormônios responsáveis pelas várias fases do processo e os mestres de tempos passados que mostraram a importância de oferecer calma, tranquilidade, privacidade, suporte e cuidados técnicos, qual será o modelo de atenção do século XXI? Será que teremos “o fim da história”, e nada mais temos a acrescentar na visão do nascimento. Este seminário oportuniza uma reflexão sobre o modelo de atendimento baseado no sujeito, e os caminhos que ainda temos a percorrer para chegar a este ponto.

O objetivo desse seminário é oferecer uma visão o mais abrangente possível do cenário do nascimento: passado, presente e futuro. Tem como foco o parto humanizado, sua origem, suas propostas e seu caminho. Sabemos que as mulheres do século XXI estarão cada vez mais conscientes e informadas quanto aos seus direitos e capacidades. Caberá a nós, profissionais de saúde que atendemos este evento, oferecer a elas o que a ciência nos mostra como seguro e o que a ética nos garante como atendimento digno e respeitoso.

Tenho apresentado este seminário em muitas cidades brasileiras e posso ver que aos poucos existe uma consciência crescente sobre a “nova ordem” da assistência ao parto. Minha experiência no Uruguai, com um seminário maior (de 40 horas) foi igualmente gratificante e estimulante. Estou com grandes esperanças de que a Argentina será mais um local fértil para o pensamento renovador sobre o parto, a mulher o bebê e a família. Para dizer uma frase conhecida de Michel Odent, “Para mudar o mundo é preciso mudar a forma de nascer”. Eu acrescento que, para mudar a forma de nascer é também necessário que nós, que estamos ao lado deste milagre todos os dias, mudemos nossa atitude em direção a um respeito maior e um cuidado mais doce com as mulheres e seus bebês, para que desses nascimentos renovados surja uma nova humanidade, onde a fraternidade, a igualdade e a justiça prevaleçam.

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