Fiquei um pouco surpreso ao ler um texto escrito por um médico e que parece ter sido escrito nos anos 80. O articulista parece estar genuinamente preocupado com a questão da humanização e o problema da violência obstétrica, mas curiosamente o texto fala pouco das questões contemporâneas de violência contra a mulher no momento de parir, e preocupa-se mais com a questão por um viés corporativistas e de proteção do mercado para os médicos. Desta maneira, o colega parece ter descoberto que a humanização do nascimento não deve prescindir da tecnologia e dos médicos.
Eureka !!! No texto ele parece ter avistado a América e ficou maravilhado com sua descoberta, mas ainda não teve tempo de se dar conta que tudo isso já é velho, e que logo ali na frente está o porto e a cidade, construídas há muito tempo.
No texto aparece a frase “…e fôssemos falar em parto e quiçá gestação totalmente “humanizada”, conceituando mínima ou ausente tecnificação..”
“Mínima ou ausente tecnificação?” Diante desta insinuação eu pergunto: A quem ainda interessa este conceito anacrônico de confundir humanização com desassistência e repulsa à tecnologia? Tal confusão foi sepultada há anos !!! O articulista prefere se defender de algo que não interessa a mais ninguém, ou seja, a falsa idéia de que a humanização do nascimento prega a ausência de atendimento e a supressão da figura do médico.
Desinformação ou interesse em criar confusão?
No mais o texto revela mais pelo que não diz do que pelo que expressa. A simples existência de um texto em defesa da boa prática médica demonstra uma preocupação crescente da corporação com as acusações cada dia mais consistentes de que o nascimento é local frequente de práticas envelhecidas, inconsistentes e com muita violência. Isso é positivo.
Espero que os equívocos do texto não desmereçam a nobre e positiva tentativa do seu autor em ajudar na construção de uma assistência mais digna e respeitosa às mulheres.
A quem realmente interessa a manutenção desses mitos? A quem interessa a ideia de que a humanização despreza tecnologia e médicos? A quem favorece a noção anacrônica de que a tecnologia pode ser aplicada indiscriminadamente, pois ela representaria o “progresso” e a “evolução” , e que só através dela poderemos nos proteger das incertezas da natureza?
Ora… a pergunta é: Quem se sente ameaçado com a justiça e a dignidade restituída às mulheres? Quem?
O texto nos remete a um falso dilema: Se quisermos a modernidade e o progresso, a alienação e a violência entram no pacote. É uma venda casada, na qual os médicos são os proprietários do parto, e a mulher um objeto sobre o qual eles atuam. Caso queira o parto natural, sem violência e protagonismo, então nós médicos não faremos parte, e seu destino é a selva e a desassistência.
O texto do colega sonega EXATAMENTE a humanização do nascimento, que vem propor a “terceira via”, o protagonismo restituído à mulher, a visão complementar e integrativa e acoplada às EVIDÊNCIAS científicas. Falta tocar no nervo exposto da assistência: a incapacidade crescente dos médicos de entenderem o parto normal como um direito das mulheres e um evento humano, para o qual a sua ajuda é bem vinda, mas não fundamental para a assistência direta.
Falta CORAGEM para olhar este cenário de frente. Por isso é que se cria essa dicotomia falsa e interesseira entre violência e tecnologia X desassistência e barbárie. MENTIRA. É possível oferecer partos humanizados, para todos os setores, públicos e privados, mas para isso é preciso sair das trevas, parar de pensar sobre conceitos estapafúrdios e anacrônicos, e encarar o desafio de oferecer a ética conjugada com a técnica, resguardando as mulheres de intervenções inadequadas no transcurso fisiológico dos seus partos.