Renascimento do Parto

Renascimento

Eu estava à noite em casa quando Erica de Paula me ligou falando de um projeto sobre um filme. Esta era uma ligação razoavelmente comum há alguns anos. Eu vinha recebendo mutos convites para pequenos depoimentos sobre parto humanizado e, desde o lançamento do livro de Robbie “Birth Models that Work“, eu também era convidado a fazer isso em outros lugares, fora do Brasil. Na maioria das vezes eu nem sabia o que viria a acontecer, ou mesmo se o documentário seria ou não lançado. Devo ter algumas horas de material espalhado por aí que jamais foi usado. O que Erica me contou foi que havia o desejo de apresentar no programa do Eduardo Chauvet (SBT Brasília) uma inserção de depoimentos sobre o parto normal. Como Erica é doula, além de acupunturista, juntaram-se duas energias que se complementavam: por parte dela a vontade de criar algo pela humanização; da parte do Eduardo, a possibilidade de usar um canal muito potente de divulgação de ideias.

Entretanto, logo se percebeu que com a multiplicação de depoimentos e entrevistas o conteúdo ultrapassou sua forma original prevista. Já não era possível conter décadas de experiências, histórias, dores e alegrias em 10 minutos de programa. Ficou claro também que mesmo um curta metragem seria inviável. Para que a paixão de tantos sonhadores pudesse entrar numa tela seria necessário espichar o tempo e esticar as expectativas, e a única solução, ainda que com dolorosos cortes, foi a produção de um documentário de longa metragem.

A ligação de Erica nem foi muito longa, constando de uma breve explanação do projeto: um filme que conteria – entre outros convidados – a minha visão sobre parto, humanização, nascimentos e os desafios que este movimento mundial tem pela frente. Houve, entretanto, simples pedido: pela escassez de recursos seria muito mais barato que, ao invés da equipe toda vir a Porto Alegre me entrevistar, que eu fosse a Brasília e ficasse por lá um dia inteiro gravando minha participação.

Respondi afirmativamente, claro. Posso entender as dificuldades de iniciar um projeto dessa natureza sem financiamentos ou patrocínios de multinacionais. Não temos drogas ou aparelhos para vender, mas temos um grande desejo e, quando isso ocorre, as coisas acontecem. Acompanhei as mesmas dificuldades no documentário de Debra Pascali-Bonaro chamado “Orgasmic Birth” e estava bem consciente de que era necessário que todos oferecessem algum tipo de sacrifício. Topei na hora.

– Hummm, disse Erica. Pode ser WebJet?

– Claro, pode ser sim. Vou e volto no mesmo dia.

E assim foi. Um dia inteiro perambulando por Brasília, num dia acolhedor e ensolarado, procurando o melhor ângulo, testando o som, esperando a luz adequada e tentando não tropeçar nas palavras. Ao mesmo tempo Erica e Eduardo me contavam das outras entrevistas, de Michel, Robbie, Melania, Ana Cris, Daphne, Helô, Ricardo Chaves e tantos outros que me fogem à memória, todas curiosas, criativas, intensas e acima de tudo absolutamente apaixonadas. Se existe algo que nos conecta, nos inspira e nos atrai é a paixão de participar de um grande movimento de transformação, o câmbio paradigmático do nascimento que aos poucos se configura no mundo.

Alguns poucos anos nos separam daquela tarde em Brasília, onde gaguejei sem parar e perdi algumas vezes o rumo da fala. Por misericórdia e condescendência inacreditáveis minhas falas não foram cortadas, o que me deixou endividado e agradecido. De lá para cá, e em especial depois que o filme foi lançado, vimos uma explosão positiva no debate sobre a humanização. Hoje vivemos um sonho que há muitos anos acalentávamos: os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres parindo estão na ordem do dia. O governo federal é cada dia mais parceiro, e entendeu nossa luta de mais de 20 anos. A “Caixa de Pandora” da violência obstétrica foi aberta a machado, permitindo que nossos monstros saíssem para a luz do dia, onde sabemos que, mais cedo ou mais tarde secarão com a luz das evidências e o brilho das demandas das mulheres.

Hoje, quando o Brasil pela primeira vez pôde assistir este documentário em TV Aberta, minha homenagem à Erica de Paula e Eduardo Chauvet, pelo brilhantismo, qualidade e persistência. Espero que daqui algumas décadas minha humilde participação possa ser lembrada como um depoimento honesto e sincero sobre o futuro do parto no Brasil. Mas todos nós, os sonhadores, os malucos, os “comedores de placenta”, os naturebas e os “doidos da MBE” e aqueles que sonham com partos dignos e seguros estamos de parabéns.

Um novo momento para o parto já é realidade no Brasil.

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