Velho Rabugento

O rapaz no aeroporto se aproximou pelo lado direito, e chegou perto o suficiente para que eu percebesse que queria falar comigo. Entretanto, não conseguia tirar os olhos da tela do computador, já que uma torrente de ideias me invadia para a feitura do texto que Robbie havia me pedido.

– Posso incomodar?

Eu continuei escrevendo, pois não queria perder o fio do raciocínio. Mantive os olhos grudados na tela do computador e respondi secamente: “Claro“…

– Preciso colocar o meu celular para carregar. Posso usar a mesma tomada que você está conectado para ligar o meu telefone?

Meu rosto não se mexeu. Continuei escrevendo e falei: “Pode“.

Só nesse momento eu percebi a imensidão da minha grosseria. É verdade que eu estava ocupado e tentando me manter focado. Tinha medo de perder o fio da meada, e não conseguir desenvolver minha ideia. Tinha que terminar este texto antes que Robbie chegasse em casa. Mas o que custaria levantar a cabeça, sorrir e deixar claro para ele que isso não me incomodava de maneira alguma e que eu faria questão de dividir a tomada da parede com ele?

Tentei reverter a má impressão deixada pela minha rudeza e me voltei em sua direção, quando ele já voltava para seu lugar após conectar o telefone. Percebi que sequer era um rapaz; era um senhor um pouco mais jovem que eu. “Nem o rosto eu havia visto, pensei. Quer vergonha!“.

Há muitos anos que tenho esse fantasma a me perseguir. Durante décadas tentei esconder de todos um problema genético que ataca a mim, meu pai e meu irmão menor. Somos afetados por uma moléstia muito comum, mas que é facilmente dissimulada, como uma doença que se esconde ao olhar dos outros e da qual temos vergonha em admitir. Nossa doença é a fobia social.

Meu pai talvez seja o mais acometido. Incapaz de ir a festas, divertir-se em público, frequentar lugares, andar em uma multidão e (em especial) entrar em uma fila, hoje em dia tornou-se um ermitão. Apesar de ser extremamente afável com todos eu percebo facilmente seu desconforto com a aproximação de pessoas desconhecidas. Nas obrigatórias festas de aniversário é notável seu desconforto com a balbúrdia, a gritaria e até as conversas superficiais. Meu irmão menor também tem sofrimentos análogos. Durante muitos anos era difícil tirá-lo de casa, e só com muito esforço eu o arrastava para alguns encontros sociais. Também ele não gosta de pessoas que não conhece, tem medo de festas, odeia conversas recheadas de superficialidades e com pessoas estranhas ao seu meio.

Eu sofro do mesmo mal, mas numa forma mais branda. Assim como meu irmão menor, encontrei na palavra escrita um refúgio. A forma compulsiva de escrever me faz parecer sociável ou “expansivo”, mas é apenas uma fachada falsa e que não se sustenta facilmente quando o encontro com as pessoas é inevitável. Nunca cultivei amigos próximos, nem sou fácil de me relacionar com os colegas. A festa de 30 anos de formatura da minha turma da faculdade terá uma ausência certeira este ano…

Quando vejo artistas na TV participando de programas de variedades eu nunca invejo seu talento e muito menos o dinheiro. O talento é sempre duvidoso e o dinheiro é “merda”, como diria minha antiga psicanalista. Quem valoriza dinheiro a ponto de endeusá-lo é porque perdeu todas as esperanças de ser feliz. Pessoas verdadeiramente felizes quase não precisam de riqueza material. Para consumir, ter coisas e colecionar objetos é fundamental cultivar desde sempre a infelicidade. A propaganda é a arte de nos fazer infelizes, vendendo a seguir a cura através de um objeto.

Não, nem o talento questionável e sequer o dinheiro inútil: o que eu invejo é o sorriso, a espontaneidade e a facilidade de se relacionar com as pessoas. O que eu mais gostaria na vida é ser simpático. Gostaria de sorrir para todas as coisas, ser explicitamente feliz (mais do que interiormente). Gostaria de ser extrovertido, brincalhão e jovial, e preferia não ter herdado esse humor inglês soturno e melancólico. Como diria Woody Allen, “é por contar piadas como esta que você não é convidado para festas desde 1938“. Gostaria de gargalhar com felicidade e ter sempre um sorriso para retribuir às pessoas.

O fantasma que me persegue é a rabugice que acompanha os velhos.

Tenho medo que minha doença antissocial me leve a um final triste. Temo que meu olhar soturno se transforme em ressentimento com o mundo, na incapacidade de vislumbrar a esperança e na impossibilidade de vencer as dores na alma quando a desilusão chegar. Tenho pânico de imaginar minha velhice solitária sentado em uma cadeira, reclamando dos políticos ladrões, do barulho da vizinha, dos netos que não param quietos e do chato que veio me interromper quando eu estava concentrado.

No aeroporto eu vi o que poderia vir a ser, e morri de medo.

Eu sei, eu reagi. Sim, a consciência de minha sina genética e das minhas tendências mórbidas pode me dar um alento, uma tênue esperança de poder vencer minhas fragilidades e afastar o espectro da indignação desesperançosa e triste que me espera.

Se houvesse uma escola de risos eu me inscreveria. Se houver como ser explicitamente feliz, trazendo no sorriso e na expressão acolhedora uma mensagem de paz, eu desejaria aprender. Ok, eu sei que alguém vai dizer que essa escola existe e que eu até já me matriculei. A ela chamamos “netos”…

Espero que assim como meus filhos foram meus grandes professores para o aprendizado da maturidade, meus netos possam me ensinar a ser um velho decente, otimista e simpático.

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