Ainda muito jovem, conheci uma jovem através de um intercâmbio da escola. Nossa professora nos estimulava a trocar correspondência com alunos de outras escolas para exercitar a escrita e coube a mim estabelecer correspondência com uma jovem de nome Alethea que vivia em uma cidade próxima. Nosso contato começou com conversas nas quais falávamos de nossas famílias, gostos pessoais, hobbies, músicas preferidas, esportes, etc. Todavia, com o passar tempo, e à medida em que adentrávamos na adolescência, nosso contato se tornava mais relacionado às nossas questões afetivas e nossos assuntos mais profundos. Durante todo esse período de intercâmbio de cartas nunca nos encontramos pessoalmente, mas as cartas acabaram nos aproximando de uma forma muito intensa. Através delas eu havia construído a imagem de uma jovem culta, doce, recatada, sincera, dedicada aos livros e com ambições intelectuais. Desejava ser uma professora, iluminar com o conhecimento as mentes que vagavam pelas trevas da ignorância.
Um dia, tocado por uma coragem pouco comum, resolvi perguntar-lhe da possibilidade de conhecê-la pessoalmente. Sua cidade ficava distante da minha 1 hora por trem, o que tornaria possível visitá-la chegando pela manhã e voltando no último trem, o das 19h. Aguardei ansiosamente sua resposta e, quando o carteiro trouxe a carta confirmando minha solicitação, nas letras bem desenhadas e redondas de uma folha sem linhas, fiquei tomado de entusiasmo e…. pânico.
Decidi que deveria deixar o medo de lado e confirmar a data por ela proposta. Comprei sapatos novos com o dinheiro pouco que dispunha. No dia da viagem passei a camisa “de sair” e exagerei na água de Colônia. “O vento pelas janelas do trem vai tirar quase tudo“, pensei. “Melhor uma dose extra.“
Chegando na estação férrea da sua cidade já me apressei a comprar o bilhete de volta, pois sabia que não haveria chance de voltar que não fosse na manhã seguinte. Aguardei o ônibus que me levaria à cidade segurando a caixa de bombons que havia comprado para lhe presentear.
Nosso encontro foi a revivescência de um sonho. Alethea era exatamente a imagem construída em meus pensamentos e devaneios. Bonita sem exageros, sobriamente tímida, estudiosa, delicada, sensível e com um humor sutil e inteligente. Sentava-se com recato e falava com educação. Deixava as pernas juntas e levava as mãos espalmadas para o alto sobre as coxas. Era segura e otimista, e seu sorriso tinha os adornos de duas pequenas esferas de azul Calypso, tomadas emprestadas da luz dos oceanos.
Nossas conversas passaram por nossas vidas, famílias, esperanças, projetos e desejos. Alethea ansiava por ensinar, queria ser uma professora de ciências. A tudo o que dizia me deliciava com sua doce firmeza. Meu estado de espírito era puro encantamento.
A tarde passou voando e próximo das 18h senti em Alethea uma certa preocupação. Olhava pela janela da sala com frequência como que aguardando por algo. Perguntei-lhe de sua tensão e ela me disse que se preocupava com o trem, que eu deveria pegar o ônibus para a estação, sob pena de ficar trancado na cidade. Senti que era a hora de ir e me levantei das poltronas aveludadas da casa de seus pais para me dirigir ao portão. Lá chegando Alethea me abraça, me beija as faces e sorri.
– Estou muito feliz com sua visita, moço bonito.
Ainda tonto e com o coração disparado pelas suas últimas palavras entro no ônibus acanhado que me leva à estação. Lá espero a chegada do derradeiro comboio que me levará de volta para casa. Envolto nas emoções do dia trago à memória o sorriso de Alethea, sua risada tímida, sua cultura, seus livros, suas mãos bem cuidadas. Seria essa sensação amor verdadeiro ou apenas uma embriaguez passageira com o nome de paixão? Estaria eu encantado demais, enfeitiçado em excesso pelo azul de seus olhos?
O tempo passou e o trem chegou à estação. Era hora de voltar. Como meu bilhete era numerado resolvi aguardar sentado no banco até que todos os passageiros saíssem do trem e que os que aguardavam para entrar se acomodassem. Ainda tinha as pernas bambas das emoções do dia, e a aragem da noite me oferecia um frescor agradável. As lembranças pulavam umas sobre as outras, as vezes confusas (“foi assim mesmo que ela falou?”) as vezes nítidas como a imagem do trem parado à minha frente.
A multidão escasseava na plataforma. Nesse momento um jovem saído do trem senta ao meu lado e pergunta como chegar à cidade. Aponto para a porta verde escura na lateral da estação e só então noto o lindo buquê de flores que carrega. Explico como pegar o ônibus mas meu olhar não consegue se afastar das rosas vermelhas que brotam do embrulho. Ao lado, grudado no papel amarelo com bordas douradas, um envelope branco. Com letras desenhadas pude ler:
“Flores para uma flor. Alethea”
O som dos pássaros anunciava o recolher do sol e a chegada do breu. Ao longe vislumbrei a silhueta do maquinista acenando para os vigias. “Todos a bordo!!!”, gritou ele enquanto minhas mãos frias e trêmulas procuravam o bilhete no bolso da camisa branca.
Mario Schiffino, “Quelli che non ho Dimenticato” (Aqueles a quem não esqueci), ed. Vesuvio, pág. 135
Mário Schiffino é um contista italiano, nascido em Salerno, em 1948. Teve uma infância muito pobre e foi marcada pela morte do pai por suicídio em 1955. Sua família foi obrigada a se mudar para a pequena localidade de Potenza, onde moravam seus avós maternos. Sua infância foi toda marcada pelos comboios que ligavam sua cidade natal às localidades conectadas pela via férrea. Em seu primeiro romance “Il Ragazzo della Stagione” descreve de forma detalhada os pequenos acontecimentos de sua vida até a adolescência, tempo em que circulava vendendo balas e biscoitos nas estações férreas. Já em “Aqueles a quem não esqueci” ele apresenta uma colcha de retalhos de contos marcados pela vida pacata do interior da Itália, alguns deles expressamente verídicos. Mora em Modena e é casado com a maestrina Marieta Schiffino. Tem dois filhos, Pietro e Isabella.