A Grande Tempestade

A noite escura era pontuada por esparsas centelhas cujas luzes driblavam a cortina de nuvens. A tormenta que se aproximava deixava o ar denso, entrecortado pelos silêncios que se faziam após cada relâmpago riscar o céu. Abrigados da chuva, mas ainda receosos do que estava por vir, Russel e Samya escoravam as costas na parede de cor salmão do porão do Centro Comunitário de Naples. O vento soprava pelas frestas da porta enquanto a rádio local anunciava para todos a distância que o furacão se encontrava. Mulheres agarradas aos seus filhos pequenos se amontoavam entre a larga escadaria e a pilha de água mineral trazida pelo Bispo Jameson.

– Vai nos atingir de madrugada, disse Russel, sem desviar o olhar da caixa de madeira repleta de biscoitos à sua frente.

– Melhor assim, estaremos dormindo. Quando a manhã chegar subiremos para ver o estrago. Procure dormir, você está cansado. Trouxe todas as crianças da escola, deve estar exausto.

Samya abraçou seu marido e repousou o queixo sobre seu ombro. Russel manteve o olhar fixo à frente mas deixou que sua voz escapasse pela fresta dos lábios.

– Nesses momentos eu penso se algum dia haverá justiça. Se todos morrerem acaba também a possibilidade de que a verdade venha à tona. Mais do que as vidas que se vão é a verdade a morte mais temida.

– Não pense nisso agora, sussurrou Samya. Procure dormir.

– Todos esperam que a posteridade por fim os absolva. Um ano, dez anos, cem. Mil anos talvez. Quem sabe uma perfuração arqueológica alienígena que desvende um mistério de nossa civilização. E lá está você, milhares de anos depois de ter virado cinza, recebendo por fim seu reconhecimento e seu perdão. Um jovem pesquisador de antenas na testa traduz os hieróglifos de sua vida e, por fim, lhe concede o perdão póstumo, aquele que sua alma ansiava por receber.

– Você deveria deixar de …

– Mas se tudo acabar, seguiu Russel, quem poderá conceder o descanso para esse espírito? Quem oferecerá o veredito final, que fará a justiça por fim triunfar?

– Nada vai acabar, Russel. Não seja negativo. Eu estarei aqui com você para toda acabar eternidade. E o meu coração sabe a verdade.

Samya abraça o marido enquanto a silhueta de seu rosto contrasta com a luz da lâmpada balançando no teto.

Antes das luzes se apagarem, seguindo-se ao estrondo colossal que fez as paredes do porão acanhado sacudirem, Russel segurou firme na mão da esposa e ainda pôde dizer:

– Talvez não seja possível que o perdão e a justiça cheguem; melhor então aceitar que nem todos terão a chance de alcançá-los.

Manny Peyton Hodgson, “The Great Tempest”, Ed. Flamboyant, pág 135

Manny Hodgson é um escritor americano nascido na Geórgia. Dedicou-se aos contos e ensaios. É professor na University of Georgia, em Athens. Escreveu vários livros de contos, entre eles “Na Casa de Madeleine” e “Vampiros de Luz”. Em seus contos e crônicas aborda em especial a vida no campo, a simplicidade, as coisas comuns da vida e os ambientes bucólicos e simples da “countryside” americano. É casado com Debbie Harris e tem um filho, Albert.

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