Arquivo do mês: janeiro 2020

Dois papas

A caracterização dos dois papas foi soberba. A interpretação de Bento XVI por Anthony Hopkins foi genial. Os diálogos foram bem construídos e a trajetória de Francisco elegantemente traçada. Depois de ver o filme a gente sente saudade da Igreja engajada, da Teologia da Libertação e das Comunidades Eclesiásticas de Base. É muito triste ver o cristianismo e sua potência renovadora serem dominados por canalhas pentecostais, aproveitadores, vendilhões do templo e mercadores da fé.

Apesar de não ter religião sinto que o catolicismo pode ser um ponto de inflexão para a volta a uma religiosidade a favor dos pobres, famintos, miseráveis e desvalidos que são produzidos pelo capitalismo. Para isso o Papa Francisco pode desempenhar um papel fundamental.

É evidente que eu acredito existirem inúmeros elementos ficcionais no roteiro, incluindo as conversas – que seguramente foram construídas a partir de relatos unilaterais ou mesmo especulações sobre diálogos privados. A própria causa da renúncia de Bento XVI apontada no filme – o descontrole sobre os escândalos sexuais que manchavam como nunca a reputação da Igreja – é controversa. Alguns dizem que as razões pela renúncia recaem sobre questões mais mundanas, como os escândalos do Banco do Vaticano e a prisão do seu auxiliar direto. Entretanto, é evidente que a trajetória de Francisco está centrada no retorno da Igreja para as reivindicações do povo. Foi a escolha clara de uma Igreja que testemunha o grave enxugamento de quadros e a perda de fiéis para o pentecostalismo.

O retorno para os “braços do povo” seria o movimento óbvio de uma Igreja que perdeu sua conexão com os pobres, assim como se preconiza a mesma volta às origens para a esquerda brasileira. A própria escolha do “nome fantasia” do novo papa nos aponta nessa direção, além da origem jesuíta e terceiromundista do Bispo Bertoglio. Também não duvido que haja um claro “passar de pano” para a possível condescendência do padre Bertoglio com a repressão brutal na Argentina, mas sobre isso pouco mais se pode especular.

Ainda prefiro acreditar no papa quando diz “Eu mudei“.

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Consciência de Classe

Marx dizia que a identificação de classe de um sujeito é onde ele está, e não de onde veio. Para reconhecer-se como originário de uma classe à qual não mais pertence é necessário um esforço que só se produz com uma enorme dose de humildade. Tenho conhecidos próximos cuja origem é muito simples, próxima até da pobreza, mas suas habilidades, talentos e uma boa dose de ajuda externa os fizeram subir na escala social. Em sua história pessoal nota-se uma mistura de aspirações, capacidades e privilégios ocultos que produziram a potencialização de suas chances de sucesso.

Hoje são sujeitos de classe média alta, com curso superior e viajam pelo mundo inteiro. Não são ricos, pois essa classe dificilmente permite intrusos. Todavia, apesar da origem cercada de muitas necessidades, ostentam um olhar aristocrático, um desprezo pelo Brazil, uma visão superior e um rechaço à toda e qualquer iniciativa de equidade social. Odeiam o PT e as “esmolas” oferecidas em nome da distribuição de renda. As esquerdas são, para eles, antros de fracassados e invejosos. “Façam como eu“, dizem eles, sem reconhecer a imensa ajuda que obtiveram de circunstâncias e pessoas diversas em suas vidas, ajudando-os, assim, a alcançar e usufruir do estrato social em que se encontram.

Muitos são o espelho fiel do “oprimido que se identifica com o opressor“, a velha história do sujeito que, ao alcançar o tão sonhado sucesso, esquece sua origem, seu sotaque, suas histórias, sua família, sua vila e sua memória. “Eu venci, e tudo isso devo apenas a mim”.

Isso me faz lembrar a antiga piada do anglófilo brasileiro, cujo sonho era ser um perfeito britânico e morar em Londres. Depois de uma vida inteira estudando o idioma, os dialetos londrinos, a culinária, sua história e geografia, visita a cidade pela primeira vez. Deslumbrado com o cenário, sai à rua vestindo um casaco de tweed, uma calça de lã, um chapéu anos 40 e assim desfila pelas calçadas próximas de Picadilly Circus. Depois desse mergulho no coração da capital do Império Britânico resolve voltar ao hotel e gesticula para um táxi, um black cab, modelo Austin FX4, pintado de preto e levemente azulado, característico de Londres.

Qual não foi sua surpresa quando, ao entrar no carro, o motorista volta o pescoço para trás e comenta:

– Fala patrício!! Deixa eu adivinhar… paulista? Mineiro? Ou será catarina? Gaúcho talvez? Deixa ver…. gremista ou colorado?

Estupefato e desapontado, nosso herói exclama:

Bloody hell, my dear!!! Como você descobriu que eu era brasileiro antes mesmo de falar qualquer coisa??? For God’s sake!!! How disappointing…

O motorista “brazuca” dá uma risada e diz:

– Olha, veja bem… o chapéu está ótimo, o guarda chuva perfeito, o casaco trespassado de tweed muito chique, a gravata, o lenço branco no bolso, tudo maravilhoso, mas….. aquela coçadinha no saco parado na esquina revelou na hora qual o seu verdadeiro CEP…

Para os meus amigos, novos ricos e esnobes, que debocham das lutas sociais e desprezam sua origem humilde, a coçadinha no saco é a falta de consciência de classe. Ela é a marca mais persistente de subdesenvolvimento…

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