Dia da Morte

Voltando aos clássicos, nesse tempo de aprisionamento, me deparo com a fantasia de Jacob no livro “Le Palais du Haine” de Jules Marie-Vermont. Sua ideia de morte sempre me seduziu e, desde que li essa passagem na adolescência, imaginei minha morte seguindo um roteiro muito parecido.

– Eu sei como seria o meu jeito escolhido de morrer, disse Jacob enquanto comia um pedaço de pão dormido com a manteiga que Daliah havia deixado sobre a mesa.

– Mal posso esperar para saber, respondeu Hannibal sem desviar o olhar da lareira acesa à frente.

– Diga Jacob, diga para nós como pretende morrer. Quem sabe criamos coragem para lhe ajudar, continuou com seu habitual sarcasmo.

Jacob largou o pedaço de pão sobre a mesa e olhou para o teto do quarto, como se as imagens que descrevia estivessem projetadas sobre o madeirame corroído e sujo de fuligem

– Eu escreveria um texto contundente e acusatório contra o Rei, cheio de ofensas hepáticas e indignações intestinas. Não pouparia nem sua família imunda das minhas lanças de fogo; sua mulher nojenta, sua mãe estúpida e nem mesmo Estelle, sua concubina. Sairia no breu da madrugada colando meu ódio com cuspe em centenas de postes próximos ao Palácio. Depois, voltaria para cá, tomaria uma taça de Bourbon, colocaria minha melhor roupa, guardaria um canivete no bolso, deitaria nesta cama suja e aguardaria a chegada da guarda real para lutar minha derradeira batalha.

– Que lindo Jacob, que heroico, sorriu Hannibal fazendo um muxoxo debochado..

– Caído no chão, crivado de balas, ainda teria tempo para um sorriso. Olharia no rosto do soldado que chegasse primeiro, aquele que daria o tiro de piedade, e diria: “Toma aqui meu escarro de sangue. Sente o cheiro da minha pele queimada. Escuta o chiado do meu pulmão que se esvazia. Olha o sangue que pinta de rubro minha palidez. Aqui está um homem cujo ódio nenhuma bala pode matar. Ele seguirá depois que está carne apodrecer, e vai levar ao inferno aqueles que hoje riem de minha morte.”

Hannibal cortou o último pedaço de fumo e olhou seu amigo por cima do ombro. Ele sabia que a visão de Jacob poderia ser uma fantasia mórbida de glória, mas não estava longe de se tornar um dia verdadeira. Talvez mais próximo do que desejava.

Jules Marie-Vermont, “Le Palais du Haine” (O Palácio do Ódio), ed. Hachete, pág. 135

Jules Marie-Vermont nasceu em Calais, França, em 1947, apenas poucos anos após a vitória aliada na Europa na segunda guerra mundial. Passou sua infância próximo ao mar e junto aos escombros da Batalha de Dunquerque. Suas memórias mais remotas são angústias derivadas do desastre guerra, mas também dos sonhos de reconstrução. Estudou literatura na Universidade Lille Nord, na cidade de Lille. Escreveu basicamente contos, ensaios, crônicas e roteiros para a televisão. É um amante da ópera, em especial da obra de Jules Massenet (de quem dizia ter herdado o prenome) tendo escrito uma biografia do grande mestre francês da ópera. É casado com Dominique e tem dois filhos: Manon e Thais (nomes de óperas famosas de Massenet).

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