Certa vez uma amiga publicou uma foto “agressiva” em seu Facebook e recebeu imediatamente uma chuva de críticas. Eu achei que a foto era mesmo desnecessária, e que a reação das pessoas – embora grosseira e machista – era esperada diante do contexto preconceituoso em que vivemos. Seria como chegar na frente de uma comunidade pobre e começar a xingar e ofender os chefões da milícia e do tráfico. Um tiro seria uma consequência óbvia, mesmo sendo um crime.
Expliquei minha perspectiva para ela, que é basicamente essa: quando você se posiciona de forma contundente precisa estar preparado(a) para a reação. É pura ingenuidade imaginar que vai questionar poderes estabelecidos e as pessoas vão assistir impávidas. Não; a reação – inclusive violenta – é a REGRA e quem produz vanguarda precisa estar fortalecido ANTES de se aventurar. Os xingamentos que ela recebeu não poderiam produzir surpresa, mas deveriam ser absorvidos e reciclados.
Ela não aceitou a minha ponderação e ficou profundamente ofendida por não tê-la “defendido” e feito coro contra os que debochavam dela. Eu achei apenas que defendê-la seria infantilizá-la, ao estilo “Eu faço isso porque depois meu irmão mais velho vem aqui distribuir porrada em vocês”. Achei que ela estava preparada para o “backlash” que eu sabia ser inevitável. Não estava….
Depois disso ela passou a ser minha inimiga expressa, disparando rancor e ressentimento em todos os lugares que escrevia. Mais de uma vez recebi avisos de amigos em comum mandando prints e dizendo que eu deveria abrir um processo. Não, não me interesso por isso, até porque eu me acho razoavelmente preparado para dizer coisas sabendo que alguns (ou muitos) não vão gostar. Espero, sinceramente, que ela esteja em paz e que um dia possa me perdoar.
Foi este fato que me fez (re)pensar em Jiddu Krishnamurti e sua importante perspectiva sobre os mestres, as autoridades superiores e os gurus:
“Esta é uma das questões mais importantes. Invariavelmente, desejamos achar um instrutor, um guia, para moldar a conduta de nossa vida; e, no momento em que vamos pedir a outrem uma norma de conduta, uma maneira de viver, criamos uma autoridade e a ela ficamos escravizados. Atribuímos a tal pessoa uma alta sabedoria, extraordinária ciência. E com essa atitude gera-se, invariavelmente, o medo. E ela não determina também o disciplinamento de nós mesmos, de acordo com a autoridade de uma ideia ou pessoa?
Ora, não vos parece de todo fútil essa busca? Estar-se cativo na gaiola de uma disciplina, o ser impelido de uma gaiola (…) para outra, isso, evidentemente, não tem significação alguma. Assim sendo, devemos investigar por que buscamos. A busca pode ser um “processo” totalmente errôneo. Pode ser justamente um desperdício de energia.
Nenhum guru nem sistema pode ajudá-los a se compreenderem a si mesmos. Sem a compreensão de si mesmos, não tem razão de ser o descobrir aquilo que constitui a ação correta na vida que é a verdade.” (Jiddu Krishnamurti)
Buscar um “mestre” é procurar escravidão voluntária. Aceitar a posição de Guru é uma postura perversa que viola a autonomia alheia. “A mão que afaga é a mesma que apedreja”, como dizia Augusto dos Anjos, e assim ocorre porque o pupilo cobra do guru a absoluta fidelidade. No momento em que essa fidelidade é quebrada – quando se afasta de um ideal imaginário – ocorre a queda. A partir daí surge o ódio, a raiva, os ataques e o cancelamento. Em verdade, o pupilo exige o pagamento que considera devido pelo amor devotado. E o guru, envolto em um manto ilusório de saber, aceita essa relação movido pela vaidade e pelo poder sobre seus seguidores.
A regra, em minha opinião, é a permanente “desinstituição“. É a prática diária de fugir da posição de mestre, de guru, de professor, de proprietário de um “saber superior” ou de uma pretensa infalibilidade. É acostumar-se a falar o que pensa, em sintonia com sua consciência, a despeito do que as pessoas vão pensar, inobstante sua concordância, cultivando os inimigos e desafetos que naturalmente surgem quando se toca nos poderes sacramentados de uma sociedade.