Nikolai havia acordado mais cedo do que todos nós. Senti entrando por debaixo do lençol puído o cheiro de sopa de pacote que ele havia esquentado. Graças às mãos delicadas e ágeis de Petrov foi possível puxar dois fios da tomada acima da pequena mesa encostada na parede descascada e adaptar uma resistência, que usávamos para esquentar o chá, mas também uma sopa.
Coloquei os pés para fora da cama e toquei o chão gelado da cela com as meias que Zoya havia me trazido na visita do mês anterior. O chão feria a sola dos meus pés como lanças de gelo a penetrar o espaço entre os dedos. E ainda não era o pior do inverno em Vladimirsky, onde não era incomum que os prisioneiros perdessem os dedos pelo frio. Olho para o lado e encontro Petrov dormindo envolvido em um edredom cinza, enquanto Aleksei mantinha-se sentado em sua cama olhando para um ponto perdido na parede à frente. Ninguém falava, e aos poucos a luz externa aparecia pelas aberturas superiores da parede de nossa cela.
O silêncio matutino foi quebrado pelo som metálico da porta de ferro sendo aberta. Um carcereiro apenas falou em voz alta o nome de Nikolai e colocou no chão um envelope de papel amarelo escuro. Logo depois a porta se fechou mais uma vez deixando o breve eco do metal chocando-se com o batente em nossos ouvidos.
Nikolai deixou a sopa sobre a mesa e curvou o corpo para apanhar o envelope. Abriu-o lentamente e passeou os olhos sobre o documento. Poucos segundos depois fechou o envelope e voltou a sentar-se no banquinho tosco que puxou debaixo da mesa. Segurou a xícara com ambas as mãos e continuou captar seu calor sem dizer palavra.
– Negado?, disse eu
Ele se limitou a balançar a cabeça afirmativamente, como a dizer que nada do que se encontrava naquele papel era surpresa. Fiquei em silêncio alguns minutos e me limitei a dizer em voz baixa “bastardos” e “canalhas“.
Nikolai sorveu mais um gole de sua sopa e, sem olhar para mim, me disse:
– Sabe o que eu queria, Sergey? Nenhuma utopia política, e muito menos bens materiais. Estou velho para desejar o que sabemos ser inútil ou fugaz, como um carro, uma casa ou que o mundo seja controlado por um sistema político mais justo. Em verdade, meus sonhos são todos tolos, inocentes e de uma ingenuidade dolorida e triste.
Sorveu um gole a mais, mordiscou um pedaço de pão e continuou.
– Nós tivemos uma infância dourada, Sergey. Fomos a última geração a ter uma mãe em casa cuidando de nós. Eu era capaz de dizer o que minha mãe preparava para o almoço antes mesmo de chegar, já a meia quadra de distancia, só de sentir o cheiro da comida. Éramos recebidos como heróis, recém chegados da batalha diária da escola. Cansados, famintos e eletrizados, nossa mãe nos tratava como reis; éramos o centro de sua vida. Isso é amor Sergey…
Baixei os olhos e sacudi a cabeça afirmativamente. Ele seguiu.
– Elas se sacrificaram por nós, camarada. Hoje as mulheres tem vida própria, para além de sua família. São empresárias, médicas, engenheiras, advogadas e – apontando para o documento – juízas. Não há nada que seja interdito a elas, e bem sei não há como voltar atrás, resgatando nossa infância idílica. A nós resta apenas a saudade de um mundo construído para sermos felizes.
Suspirou olhando para a fumaça que saía de sua caneca de metal e continuou com seu desabafo.
– Pois eu queria apenas cinco minutos daquela vida, camarada. Sentir o cheiro da comida de minha mãe e encontrar seu sorriso na porta de casa. Nada mais.
Eu respondi, mas com cuidado, pois sabia que seu mundo havia desmoronado há apenas alguns poucos segundos.
– Sua vida foi digna, Nikolai. Nossas mães nos prepararam para a felicidade, mas nós escolhemos uma vida de luta e valor. Mais importante do que ser feliz é dar sentido à esta breve existência na terra.
– Não tentem descobrir sentido algum para a vida, camaradas. Se há um sentido ele nunca se mostrou para nós. Somos os que perderam, os derrotados, os desvalidos. Não haverá história a contar.
Era Petrov a falar, ainda de olhos fechados e envolto em seu cobertor cinza. Aleksei, por sua vez, se mantinha observando o ponto fixo no meio da parede descascada. Talvez ali estivesse escondido algum sentido para a vida, que a nós todos escapava.
Genny Sidorov, “Vladimirsky Central”, Ed. Belaya skala, pág 135
Genny Sidorov, batizado Gennady Sidorov, nasceu na cidade russa de Leningrado (atual São Petersburgo) e fez seus estudos na tradicional Universidade Estatal de São Petersburgo, onde cursou engenharia de minas. Depois de trabalhar durante 15 anos como engenheiro abandonou a profissão depois do acidente na mina de Osinniki, em 2004 na Sibéria. Escreveu um livro contando os detalhes da tragédia, onde morreram 28 mineiros – entre eles seu amigo e protagonista no livro, Rodion. “O último suspiro”, seu livro de estreia, lhe rendeu o prêmio de jovem escritor e o impulsionou a abandonar a engenharia para se dedicar à literatura. Ainda nessa década escreveu 2 livros de ficção (“No fundo do Neva” e “Sob o olhar de Yekaterina”) e um de ensaios (“Galina e outras histórias frias”). Hoje tem mais de 20 livros publicados e escreve em colunas de jornais por todo o país. É casado com Yelena Pavlova e tem dois filhos, Natalya e Mikhail. É filiado ao Partido Comunista da Federação Russa.