Martyn pediu uma cerveja e dois copos ao garçom e ajeitou-se na cadeira do restaurante, como que a procurar espaço para poder dizer o que queria.
– Terry, você lembra da minha queda na cozinha, não? O hospital, a mancha roxa, o seu colega médico mal educado, a minha bronca. Pois eu lembro muito bem, parceiro, inclusive da sua gentileza em me buscar em casa na madrugada. Nunca pude lhe agradecer o suficiente por isso.
Ensaiei um “que é isso, amigo é prá essas coisas”, mas ele me interrompeu com um tapinha no braço.
– Era mentira, Terry. Era tudo mentira. Hoje resolvi lhe contar a história toda. Não fique bravo comigo, tenho certeza que você vai entender as minhas razões para ocultar a verdade.
Mentalmente minha memória viajou dez anos para trás, e pousou exatamente no dia em que, no início da madrugada, Martyn me ligou pedindo socorro.
O ponteiro maior do relógio já havia completado quase uma volta inteira depois da meia noite quando o telefone berrou nos meus ouvidos enquanto eu saboreava Nabocov na cama. Por sorte Ellen continuou dormindo sem se impressionar com a estridência do aparelho. Seu sono pesado era uma lenda conhecida por toda a sua família. No dia em que o mundo acabar ela só vai acordar do outro lado da vida. Imaginei que se tratava de uma chamada do hospital, mas eu não estava de sobreaviso.
– Terry, preciso de ajuda. Não é uma emergência, mas preciso que você venha aqui em casa agora.
– Martyn, é você? Alguma coisa que eu deva me preocupar?
– Um acidente doméstico, não precisa se preocupar tanto, mas não há como lidar com isso sozinho. Você pode vir aqui? Tipo, agora?
– Claro, claro. Fique aí. Espere só eu me vestir.
Martyn é meu amigo de infância, talvez meu único grande amigo. Crescemos juntos, e frequentamos as mesmas escolas apesar de eu ser mais velho uma meia dúzia de anos. Seu irmão, Mark, foi meu colega de escola, na mesma sala de aula, mas ele acabou se afastando de mim pelas derrapagens que a vida dá. Não foi o caso com Martyn. Fizemos muitas coisas juntos, torcíamos pelo mesmo clube, festas, conversas, bebedeiras, filosofias… mas também porque tínhamos uma perspectiva de vida igualmente sombria e pessimista. Nossas sombras eram carregadas com as mesmas tonalidades de cinza.
Martyn era casado com Anna, uma mulher inteligente e ambiciosa. Trabalhava na Bolsa de Valores e era uma espécie de expert em alguma coisa que ela um dia me explicou, mas não guardei na memória. Minha cabeça de cirurgião não tem nenhum contato com o mundo do comércio, valores, poupança, ativos, lucros. Em verdade, sequer o dinheiro exercia qualquer atrativo especial para mim. Minha mulher Ellen reclamava que eu poderia ganhar muito mais com as minhas cirurgias se tivesse um pouco mais de habilidade para cobrar, mas não há dúvida que nessa área sempre fui um fracasso.
O prédio onde Martyn morava não ficava mais do que 15 minutos de distância. Quando cheguei lá ele estava parado na rua, na frente do edifício. Achei estranho que ele não ficasse dentro de casa esperando minha chegada, mas talvez não quisesse acordar Anna. Quando parei o carro ao seu lado na rua percebi que ele abriu a porta de forma um pouco estranha. Deduzi que havia machucado o braço
– Então Martyn, o que houve? Foi algo no braço?
Ele deu um meio sorriso.
– Você sabe o quanto consigo ser desajeitado quando quero. Fui pegar algo na prateleira da cozinha e desabei do banquinho que coloquei para subir. Bati com o pulso na borda do balcão. Já faz umas duas horas, mas agora a dor apertou e eu temo que tenha quebrado algo.
– Posso ver?
Meu amigo levantou com cuidado a manga da camisa e pude ver uma grande mancha que coloria de roxo a parte inferior do seu braço direito. Era grande, e mostrava que algum vaso havia se rompido.
– Martyn, não sou ortopedista, mas sei que isso aí é uma fratura. Sua religião faz alguma restrição a amputações?
Martyn sorriu do meu característico humor negro. Em seguida explicou que não pensava me chamar mas não conseguia nem segurar a chave do carro, quanto mais dirigir até o hospital.
– Não sabia o que fazer, então resolvi lhe chamar. Sei que só mesmo um outro idiota como você entenderia minha patetice.
Rimos um pouco e lembramos de alguns fatos engraçados que passamos juntos na escola. Martyn, entretanto, parecia mais sério do que de costume, mas acreditei que sua face circunspecta era o reflexo da dor que por certo estava sentindo.
Ao chegarmos ao hospital não tardou em ser atendido. Pedi para entrar junto e me apresentei como médico. Aquele era o hospital em que eu fizera minhas primeiras cirurgias, meus primeiros atendimentos de emergência há mais de 20 anos. Ainda guardava nas narinas o cheiro das salas de clínica, onde o odor de sangue e vômito se mistura com os desinfetantes poderosos utilizados. Martyn explicou para o plantonista da ortopedia o que havia ocorrido. Este, depois de um breve exame físico, pediu uma radiografia.
Alguns minutos depois ele voltou com a radiografia e, com um sorriso no rosto, anunciou:
– Muito bem Sr. Martyn, sua travessura foi premiada. Conseguiu o que desejava: uma fratura no rádio distal. Agora o senhor vai ficar alguns dias sem fazer os deveres da escola.
Martyn fuzilou o médico com os olhos e disparou:
– Quem sabe o senhor se mete com a sua vida, seus pacientes, e me deixa em paz? Quem é você para vir aqui debochar de mim? Vá fazer piadas para a sua turma!!
Segurei o braço do meu amigo e o puxei para trás. O ortopedista ficou perplexo e balbuciava coisas como “hei, eu estava só brincando, calma, desculpe”. Coloquei Martyn sentado em uma cadeira próxima e fui falar com meu colega médico.
– O que há com seu amigo? Não sabe brincar?
Expliquei que ele deveria estar com dor e que o desculpasse. O médico fez um muxoxo e disse que ele seria transferido para uma sala ao lado onde colocariam uma tala, mas que deveria procurar uma clínica em uma semana para o gesso definitivo. Entregou-me uma receita de analgésicos, despediu-se e saiu caminhando pelos corredores do hospital.
Perguntei a Martyn o que tinha acontecido e por que dera aquela resposta.
– Ahh, desculpe aí Terry, mas não aguento esses seus colegas. São uns arrogantes, metidos a besta. Ficam fazendo piadinhas com os desastres que acontecem com as pessoas. Agem como se fossem superiores, como se fossem adultos rodeados de crianças travessas; eles são os infalíveis enquanto nós somos os tolos e idiotas.
Pedi que tivesse calma, e ele deu de ombros. Caminhamos até o estacionamento e pegamos o meu carro. Já passavam das 3h e eu tinha que atender o ambulatório pela manhã. Ele ficou em silêncio até chegarmos no seu edifício. Quando estacionamos na frente ele olhou para cima pela janela do carro, para saber se havia luz no apartamento.
– Não quero acordar Anna, Terry. Obrigado por tudo. Não sei o que dizer e nem como lhe agradecer. Falamos depois. Boa noite e durma bem.
Dirigi e voltei para casa. Entrei no quarto e Ellen permanecia dormindo. Lolita teria que esperar mais um dia para que eu voltasse a me ocupar dela.
A lembrança dessa cena permaneceu adormecida, num canto da gaveta de memórias, e foi despertada apenas agora pelas palavras de Martyn. Já haviam se passado dez anos da cena.
– Foi a estatueta e não uma queda do banquinho numa travessura na cozinha, Terry. E por trás da estatueta estava Anna.
Pedi que explicasse melhor.
– Foi Anna, Terry. Foi apenas mais um acesso de fúria contra mim. Durante anos eu havia me acostumado às suas agressões, e colocava na conta da vida estressante que ela tinha na Bolsa de Valores. Aquele dia havia sido especialmente ruim para ela. Perdeu dinheiro e clientes. Estava frustrada. Eu fui pegar pratos para a gente jantar e um deles escorregou da minha mão e caiu. Era um prato que havia ganhado de sua mãe no enxoval do nosso casamento. Aquilo a enfureceu. Passou a gritar como se fosse a maior tragédia da sua vida. Quando tentei acalmá-la passou a mão na estatueta que estava na sala e a jogou contra o meu rosto. Sabe aquela meia face pedindo silêncio? Essa mesma. Tive tempo apenas de me defender com a mão. Ela se assustou com o som do objeto batendo contra o meu braço, mas mesmo assim nada disse e se trancou no quarto. Fiquei mais de uma hora sentado na sala esperando a dor passar, e só então resolvi ligar para você. Eu até pretendia lhe contar, mas não queria que você me julgasse e muito menos que tivesse sentimentos contra Anna. Bem sei o quanto você gostava dela e não desejava que esse acidente se tornasse uma barreira entre vocês.
Eu apenas escutava e não me atrevia a dizer nada. Martyn continuou.
– Essa não foi a primeira e nem a última agressão que sofri. Sequer foi a mais dolorosa. As violências morais eram muito piores e muito mais cruéis. Eu tinha vergonha daquele comportamento dela mas, como uma boa vítima, acreditava que eu tinha culpa, que deveria ganhar mais, não quebrar coisas, ser mais impositivo no trabalho ou ser mais romântico. Sei lá… a gente não sabe exatamente o que nos falta, mas acredita carregar essa culpa, pelo menos em parte.
Martyn continuava seu relato e eu não ousava interrompê-lo.
– As violências eram diárias e eu não sabia o que fazer. As brigas continuaram até eu descobrir do caso que ela teve com Peter. Essa foi a gota d’água, e foi quando eu fui até sua casa e pedi para dormir lá por uma noite. Na semana seguinte nos separamos.
– Sim, lembro bem que você anunciou o fim do casamento e me pediu para não insistir ou tentar contemporizar. Percebi que algo de muito sério havia ocorrido e resolvi oferecer apenas a minha mão para ajudar.
– Esta foi a derradeira violência, mas as brigas foram um problema que perdurou a exata extensão do nosso casamento. Depois disso nos separamos, eu casei de novo e nunca mais a vi. Queria lhe dizer mais uma vez obrigado pela sua compreensão, por não ter insistido com perguntas quando eu não tinha condições para responder. Obrigado por ter ficado em silêncio ao meu lado; significou muito para mim. Eu nunca falei disso para ninguém, e por razões óbvias. Um homem apanhar em casa é algo vergonhoso em uma cultura machista. Nunca falei para ninguém desses fatos, e jamais ameacei Anna com essa verdade, mesmo quando ela tentou me tomar um dinheiro indevido em nossa separação. A minha vergonha era tanta que nenhum dinheiro pagaria isso.
Eu continuava a olhar para Martyn para entender o significado dessa confissão. Não acredito em casos de violência e abuso onde não exista a participação de ambos na construção do enlace doentio, e no caso de Martyn não poderia ser diferente. Mas por certo que ele era a parte frágil do casal, o espírito mais dócil e submisso. No seu caso ficou bem claro como a questão física – aparte de ser importante – não é o único determinante para os casos de violência, inclusive física. Agora, depois da separação de Martyn e Anna (por quem eu até nutria amizade e afeto), ficou bem mais clara a verdadeira imagem de Anna. Em minha mente ela era uma perversa de funcionamento neurótico, com um longo histórico de perversão e abandono na família. Afastada de ambos os pais foi criada pela avó, que também recebeu seu quinhão de maus trator por parte dela. O que ela fez com Martyn durante os anos em que estiveram casados teve características de pura crueldade. Até hoje, sempre que penso em Anna, imediatamente me vem à mente a personagem de Juliette Binoche que contracena com Jeremy Irons no filme “Perdas e Danos”. Um filme brilhante e sombrio, que eu sempre lembro, mas não consigo rever. As histórias de mulheres agressoras não são muito exploradas em um mundo infestado de machismo, e numa cultura violentamente patriarcal a escuridão que emana da agressividade masculina eclipsa a sombra da violência feminina.
Martyn recebeu as garrafas da mão do garçom que imediatamente as abriu. Serviu meu copo e saboreou um pouco da cerveja, enquanto olhava para a rua cinzenta que aos poucos perdia os últimos raios de sol. Violências domésticas com “sinal trocado” é um tema que eu tenho contato há muitos anos por causa de alguns textos que li e por inúmeras histórias de consultório. No ambiente feminino em que circulei durante décadas o tema é tabu. Falar de “misandria” é como falar de “racismo reverso”; quando eu tocava no assunto a reação variava do escárnio à fúria, em especial perto de colegas feministas. Entretanto foram tantos os casos de abuso contra homens que eu acabei por me interessar pelo tema. Apesar de ser um assunto que me atrai reconheço que no contexto em que vivemos este será por séculos um assunto “marginal”, mas não menos doloroso.
Toquei no ombro de Martyn e disse com meus olhos o que ele já sabia: “Conte comigo sempre, parceiro. É para isso que servem os amigos”.
William F. Prescott, “So down there I can’t even see” (Tão lá em baixo que nem consigo ver), ed. Panacea, pág. 135
William Francis Prescott é um escritor, ensaísta, jornalista e produtor teatral americano nascido em Westbrook no Maine em 1965. Filho de um pastor protestante e uma enfermeira ele começou a escrever desde muito cedo para os jornais da escola. Em 1983 foi estudar na University of Maine em Augusta, onde cursou jornalismo. Logo depois da graduação casou-se com Lorraine Madison, e mudaram-se em 1995 para Nova York para trabalhar na Revista New Yorker como assessor de Roger Angell, quando então começou a se dedicar à reportagem esportiva, especialmente o Baseball. Pelos contatos na revista tornou-se amigo de Woody Allen, uma amizade que perdura até hoje. Escreveu seu primeiro livro de ficção, “Até que horas posso ficar?” em 1998 que logo se tornou um sucesso de público e de crítica, para posteriormente fazer carreira na Broadway, tendo sido estrelado por Patrick Wilson no papel do coronel Samuel Bakerston. Seu segundo livro, também uma comédia dramática, foi “Azul não lhe cai bem”, onde narra as desventuras de uma vedete do teatro de revista que se envolve com um cirurgião plástico apenas para conseguir uma cirurgia de mamas por preços módicos, mas percebe que seu namorado é um traficante de drogas cuja clínica médica é apenas uma fachada. Seu terceiro livro foi “Tão lá em baixo que nem consigo ver”, que é seu único livro de contos, recolhidos de histórias verídicas que colheu enquanto jornalista no New Yorker. Mora em Washington com sua esposa Lorraine e os filhos Jeremia e Alicia