Arquivo da tag: misandria

Para facilitar o cancelamento

O sexismo é irmão dileto do racismo e de todas as formas de preconceito. Acreditar que os ataques a um determinado gênero e condição seja “justo” em função de questões dramáticas que vivenciamos no cotidiano acaba por legitimar os ataques às raças, às orientações sexuais e às identidades, ao invés de produzir um arrefecimento dessas ações. Aceitar que homens sejam tratados como “malévolos e inferiores”, “estúpidos e grosseiros” baseando-se na experiência pessoal com eles é o mesmo que tratar negros, gays, mulheres, imigrantes e qualquer outra minoria de forma violenta ou diminutiva baseando-se em generalizações ou em sua experiência pessoal negativa.

Eu não tolero preconceitos que colocam gênero, classe, raça, origem, orientação sexual etc. em uma escala de valores, dos mais nobres aos mais perversos. Não acredito que nossos genes produzem diferenças no que diz respeito às condições morais e intelectuais. Diante disso deixo bem claro que qualquer pessoa que escreve a frase sexista “Nem todo homem, mas sempre um homem”, está convidado a me cancelar peremptoriamente; não precisa sequer se despedir. Lutei contra todos aqueles que tratavam pequenos deslizes naturais de mulheres em ambiente de trabalho dizendo coisas parecidas com isso (“tinha que ser mulher”, por exemplo), portanto não vejo porque deveria aceitar que este tipo de manifestação abjeta, asquerosa, nojenta e que atenta contra metade da população do mundo possa ser válida.

A criação de um mundo de equidade não vai passar por derrubar o poder dos homens para a criação de uma opressão por outro gênero, mas através da abolição de qualquer opressão baseada no sexo, na cor da pele, na classe social, na origem e na identidade sexual dos sujeitos que coabitam conosco neste planeta. Atacar os homens e o masculino, creditando a eles todo o mal do mundo (e fazendo vista grossa para as perversões cometidas por mulheres) é um dos mais importantes fatores para a manutenção dos preconceitos, pois que ataca a essência imutável de todos nós – nossa estrutura de sujeito – algo que não pode ser modificado e elaborado.

Quem ataca os homens e o masculino, tratando-os como inferiores e tolos, não honra seu pai, seus irmãos, seu marido, seus filhos homens e tudo o que o masculino criou na humanidade. Quem faz o mesmo com as mulheres, desonra todas aquelas que lutaram e se sacrificaram para que estivéssemos aqui.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Meras empregadas

Sabe qual a semelhança nessas propagandas? A ideia de que os comportamentos são determinados pelo gênero. Assim, o comportamento inadequado (ou anacrônico) de um homem seria um modo de ser “dos homens”, enquanto as falhas de uma mulher representariam “as mulheres”. Apesar do gênero ainda condicionar de forma marcante a vida humana, tanto quanto a classe social ou a “raça”, dizer como os homens, as mulheres, os pobres e os brancos pensam e desejam é sempre uma homogeneização apressada e injusta, usada para atacar os sujeitos e seus grupos, ao invés de criticar suas ações.

Em relação à pergunta feita na publicidade cor-de-rosa, como então as mulheres descreveriam um “bom homem”? Já que a brincadeira é generalizar e olhar a humanidade inteira como um rebanho com comportamentos determinísticos, qual seroa a visão que as mulheres teriam de um “bom homem”? Seria ele amoroso e gentil? Ou seria um provedor que a protegesse? Será mesmo que vão aparecer descrições baseadas na diferença moral entre os gêneros, onde um deles é nobre e amoroso e o outro egoísta e utilitarista?

Estes são textos cíclicos nas redes sociais. Faz pouco tempo circulava uma monstruosidade sexista que afirmava que os homens (não alguns, mas o gênero masculino) odiava as mulheres, que não passavam de seres usados para o seu prazer, enquanto o verdadeiro amor masculino era devotado somente aos outros homens. Agora circula este, onde fica implícito que os homens não oferecem às mulheres amor e cuidado, e delas apenas desejam um bom serviço doméstico.

Este tipo de preconceito, e essa campanha anti-masculina, que floresce na seara da misandria e circula entre aquelas mulheres cuja vida afetiva foi insatisfatória ou mesmo traumática, está na raiz do surgimento do seu contraponto: os Red Pill, tolos masculinistas que usam da mesma retórica excludente e preconceituosa – mas de sinal trocado – de característica misógina e agressiva, causada por suas más experiências afetivas.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

O abandono do macho

Lee Van Cleef, em “3 Homens em Conflito” (1966), o protótipo perfeito do “homem mau”…

Hoje escutei de novo a frase: “Nem todo homem, mas sempre um homem”….

A ideia é de que, sempre que um fato ruim ocorre na sociedade – que envolva violências ou abusos – haverá um homem envolvido. Sim, alguns homens não são perversos, abusivos ou malignos, mas na malignidade e na perversão sempre haverá um macho envolvido. Os homens são a raiz e a fonte de todos os males, a violência, a perversão e o horror.

Sabem por quê? Porque as pessoas que usam essa frase com o propósito de atacar os homens acreditam piamente que as mulheres não cometem erros graves, não produzem crimes e jamais têm atitudes perversas. Devotam uma fé inabalável na perspectiva de que pessoas oprimidas são moralmente superiores aos seus opressores.Para estas pessoas existem diferenças espirituais entre os sexos, e os homens se encontram em um plano inferior em relação às mulheres. Pense nisso quando alguém acusar os homens de machistas. Sim, porque o machismo é a “crença de que os homens são – para além das diferenças físicas – moral e intelectualmente superiores às mulheres“; porém, essa perspectiva de mundo é combatida por todas as pessoas que desejam um mundo equilibrado, com justiça e equidade. O machismo é a ideologia que tenta sustentar um sistema baseado na opressão.

Agora pergunto: por que deveríamos aceitar quando alguém afirma que os homens são moralmente e intelectualmente inferiores às mulheres? Por que achamos que tal acusação deveria ser tratada de forma diversa? Por que achamos que é justo passar pano para estas atitudes sexistas? Que tipo de sociedade desejam aqueles que consideram todos os homens – e não apenas aqueles que cometem erros e crimes – como se fossem inferiores, malévolos e perversos – os famosos “estupradores em potencial”?

Atentem para o fato de que tratar os homens (metade da população mundial) como os inimigos do progresso e da justiça fez com que o homem branco, cis, hétero e de classe média (a descrição do vilão contemporâneo) se refugiasse nos movimentos de direita – e até no fascismo. Isso porque foram tratados pelos identitários (que invadiram os movimentos de esquerda) como os inimigos, como o “problema” a ser resolvido na sociedade. Para estes grupos – criados nos laboratórios e “think tanks” do partido Democrata americano – o que existe de errado nas sociedades contemporâneas é o homem e sua visão de mundo. Mais do que o patriarcado, é a masculinidade que espalha o mal pelo planeta. “Fossem as mulheres a governar seria tudo diferente“, o que é um exemplo clássico de idealismo, pois que nenhum exemplo existe para nos mostrar as diferenças morais e de competência entre as mulheres que ocuparam posições de poder.

O que faziam tantas mulheres – e de todas as cores – nas manifestações que exigiam a volta da ditadura – em 1964 e agora mesmo nos piquetes bolsonaristas? Como se comportaram as mulheres quando alcançaram o poder? O que dizer de Margaret Thatcher ou Madeleine Albright – responsáveis pelo aniquilamento dos trabalhadores ou pela morte de milhões de árabes nas invasões imperialistas? “Essa é uma pergunta difícil. Mas, sim, achamos que valeu a pena”, disse a ex-secretária de Estado norte-americana Madeleine Albright, quando, em 1996, lhe perguntaram sobre a morte de 500 mil crianças no Iraque. Já a Dama de Ferro teve sua morte comemorada por multidões na Inglaterra. A políticas neoliberais desta senhora resultaram na destruição de 20% da indústria inglesa entre os anos 1979 e 1981, maior até que o estrago na indústria causado pela força aérea alemã na II Guerra Mundial, resultando em mais de 3 milhões de desempregados. Esses simples fatos se chocam com a visão do “homem mau e perverso“, ou da famigerada expressão “sempre eles“.

Coloquem homens e mulheres, dotados de uma visão burguesa no controle de suas sociedades, e não haverá como reconhecer-lhes o gênero apenas avaliando suas ações. Não parece que existam tantas diferenças assim como alguns querem nos fazer crer; o que fica claro é que esses desvios de caráter não atacam apenas o cromossomo Y. Por esta razão simples, as esquerdas precisam urgentemente se reciclar nesse aspecto, trazendo os homens para – junto com as mulheres – criar uma sociedade mais equilibrada e justa. Abandonar o discurso identitário, de defesa das questões de gênero acima da luta de classes, é uma urgência. Rechaçar os homens do debate das esquerdas está na gênese do aparecimento do maior ícone contemporâneo dos homens ressentidos: Jair Bolsonaro. Todavia, muitos daqueles homens que se uniram a esta corrente de rancor e fanatismo poderiam ser recuperados não tivessem sua condição masculina tratada como defeito ou danação por aqueles que, na esquerda, se consideram progressistas.

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Pensamentos

Comércio dos corpos

Algumas mulheres (por certo que uma minoria) não tem ideia do quanto estas generalizações ao estilo “os homens só querem nosso corpo” são infantis, mas não só isso; elas criam barreiras desnecessárias para o enfrentamento das causas básicas dos sofrimentos evitáveis, como a real exploração dos corpos pelo capitalismo. A moda agora é dizer que “homem tem mesmo que pagar o jantar”, pois o objetivo deles é ter acesso ao corpo das mulheres sem nenhuma contrapartida. Que paguem!!! Ou seja: vamos escancarar que é comércio mesmo.

Primeiro de tudo: qual o erro ou a imoralidade em desejar estes corpos – oferecendo-se em contraponto? Por que diabos tais movimentos identitários ressuscitaram vozes puritanas fortuitamente soterradas pelo tempo? A quem serve este tipo de posição belicosa que acredita que os movimentos de aproximação dos homens são sempre mal intencionados e o das mulheres eternamente dóceis e puros?

Ao apostar nesse sexismo, criando a fantasia de que os homens são eternos e irrecuperáveis aproveitadores e opressores, enquanto as mulheres são essencialmente dadivosas, nobres e oprimidas, criamos generalizações injustas que desembocam em uma falsa dicotomia moral dos gêneros, que só gera sentimentos negativos. Tanta energia seria muito mais bem utilizada no combate ao capitalismo, que explora a todos sem preconceito de raça, credo ou gênero. Se há algo positivo no capitalismo é de que ele destrói em nome do capital e seu acúmulo, não se importando a cor ou a crenças de suas vítimas.

Combater sexismo com mais sexismo é a mais abissal das tolices. E sim, é fácil me cancelar, difícil é cancelar esta realidade.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

A Estatueta

Martyn pediu uma cerveja e dois copos ao garçom e ajeitou-se na cadeira do restaurante, como que a procurar espaço para poder dizer o que queria.

– Terry, você lembra da minha queda na cozinha, não? O hospital, a mancha roxa, o seu colega médico mal educado, a minha bronca. Pois eu lembro muito bem, parceiro, inclusive da sua gentileza em me buscar em casa na madrugada. Nunca pude lhe agradecer o suficiente por isso.

Ensaiei um “que é isso, amigo é prá essas coisas”, mas ele me interrompeu com um tapinha no braço.

– Era mentira, Terry. Era tudo mentira. Hoje resolvi lhe contar a história toda. Não fique bravo comigo, tenho certeza que você vai entender as minhas razões para ocultar a verdade.

Mentalmente minha memória viajou dez anos para trás, e pousou exatamente no dia em que, no início da madrugada, Martyn me ligou pedindo socorro.

O ponteiro maior do relógio já havia completado quase uma volta inteira depois da meia noite quando o telefone berrou nos meus ouvidos enquanto eu saboreava Nabocov na cama. Por sorte Ellen continuou dormindo sem se impressionar com a estridência do aparelho. Seu sono pesado era uma lenda conhecida por toda a sua família. No dia em que o mundo acabar ela só vai acordar do outro lado da vida. Imaginei que se tratava de uma chamada do hospital, mas eu não estava de sobreaviso.

– Terry, preciso de ajuda. Não é uma emergência, mas preciso que você venha aqui em casa agora.

– Martyn, é você? Alguma coisa que eu deva me preocupar?

– Um acidente doméstico, não precisa se preocupar tanto, mas não há como lidar com isso sozinho. Você pode vir aqui? Tipo, agora?

– Claro, claro. Fique aí. Espere só eu me vestir.

Martyn é meu amigo de infância, talvez meu único grande amigo. Crescemos juntos, e frequentamos as mesmas escolas apesar de eu ser mais velho uma meia dúzia de anos. Seu irmão, Mark, foi meu colega de escola, na mesma sala de aula, mas ele acabou se afastando de mim pelas derrapagens que a vida dá. Não foi o caso com Martyn. Fizemos muitas coisas juntos, torcíamos pelo mesmo clube, festas, conversas, bebedeiras, filosofias… mas também porque tínhamos uma perspectiva de vida igualmente sombria e pessimista. Nossas sombras eram carregadas com as mesmas tonalidades de cinza.

Martyn era casado com Anna, uma mulher inteligente e ambiciosa. Trabalhava na Bolsa de Valores e era uma espécie de expert em alguma coisa que ela um dia me explicou, mas não guardei na memória. Minha cabeça de cirurgião não tem nenhum contato com o mundo do comércio, valores, poupança, ativos, lucros. Em verdade, sequer o dinheiro exercia qualquer atrativo especial para mim. Minha mulher Ellen reclamava que eu poderia ganhar muito mais com as minhas cirurgias se tivesse um pouco mais de habilidade para cobrar, mas não há dúvida que nessa área sempre fui um fracasso.

O prédio onde Martyn morava não ficava mais do que 15 minutos de distância. Quando cheguei lá ele estava parado na rua, na frente do edifício. Achei estranho que ele não ficasse dentro de casa esperando minha chegada, mas talvez não quisesse acordar Anna. Quando parei o carro ao seu lado na rua percebi que ele abriu a porta de forma um pouco estranha. Deduzi que havia machucado o braço

– Então Martyn, o que houve? Foi algo no braço?

Ele deu um meio sorriso.

– Você sabe o quanto consigo ser desajeitado quando quero. Fui pegar algo na prateleira da cozinha e desabei do banquinho que coloquei para subir. Bati com o pulso na borda do balcão. Já faz umas duas horas, mas agora a dor apertou e eu temo que tenha quebrado algo.

– Posso ver?

Meu amigo levantou com cuidado a manga da camisa e pude ver uma grande mancha que coloria de roxo a parte inferior do seu braço direito. Era grande, e mostrava que algum vaso havia se rompido.

– Martyn, não sou ortopedista, mas sei que isso aí é uma fratura. Sua religião faz alguma restrição a amputações?

Martyn sorriu do meu característico humor negro. Em seguida explicou que não pensava me chamar mas não conseguia nem segurar a chave do carro, quanto mais dirigir até o hospital.

– Não sabia o que fazer, então resolvi lhe chamar. Sei que só mesmo um outro idiota como você entenderia minha patetice.

Rimos um pouco e lembramos de alguns fatos engraçados que passamos juntos na escola. Martyn, entretanto, parecia mais sério do que de costume, mas acreditei que sua face circunspecta era o reflexo da dor que por certo estava sentindo.

Ao chegarmos ao hospital não tardou em ser atendido. Pedi para entrar junto e me apresentei como médico. Aquele era o hospital em que eu fizera minhas primeiras cirurgias, meus primeiros atendimentos de emergência há mais de 20 anos. Ainda guardava nas narinas o cheiro das salas de clínica, onde o odor de sangue e vômito se mistura com os desinfetantes poderosos utilizados. Martyn explicou para o plantonista da ortopedia o que havia ocorrido. Este, depois de um breve exame físico, pediu uma radiografia.

Alguns minutos depois ele voltou com a radiografia e, com um sorriso no rosto, anunciou:

– Muito bem Sr. Martyn, sua travessura foi premiada. Conseguiu o que desejava: uma fratura no rádio distal. Agora o senhor vai ficar alguns dias sem fazer os deveres da escola.

Martyn fuzilou o médico com os olhos e disparou:

– Quem sabe o senhor se mete com a sua vida, seus pacientes, e me deixa em paz? Quem é você para vir aqui debochar de mim? Vá fazer piadas para a sua turma!!

Segurei o braço do meu amigo e o puxei para trás. O ortopedista ficou perplexo e balbuciava coisas como “hei, eu estava só brincando, calma, desculpe”. Coloquei Martyn sentado em uma cadeira próxima e fui falar com meu colega médico.

– O que há com seu amigo? Não sabe brincar?

Expliquei que ele deveria estar com dor e que o desculpasse. O médico fez um muxoxo e disse que ele seria transferido para uma sala ao lado onde colocariam uma tala, mas que deveria procurar uma clínica em uma semana para o gesso definitivo. Entregou-me uma receita de analgésicos, despediu-se e saiu caminhando pelos corredores do hospital.

Perguntei a Martyn o que tinha acontecido e por que dera aquela resposta.

– Ahh, desculpe aí Terry, mas não aguento esses seus colegas. São uns arrogantes, metidos a besta. Ficam fazendo piadinhas com os desastres que acontecem com as pessoas. Agem como se fossem superiores, como se fossem adultos rodeados de crianças travessas; eles são os infalíveis enquanto nós somos os tolos e idiotas.

Pedi que tivesse calma, e ele deu de ombros. Caminhamos até o estacionamento e pegamos o meu carro. Já passavam das 3h e eu tinha que atender o ambulatório pela manhã. Ele ficou em silêncio até chegarmos no seu edifício. Quando estacionamos na frente ele olhou para cima pela janela do carro, para saber se havia luz no apartamento.

– Não quero acordar Anna, Terry. Obrigado por tudo. Não sei o que dizer e nem como lhe agradecer. Falamos depois. Boa noite e durma bem.

Dirigi e voltei para casa. Entrei no quarto e Ellen permanecia dormindo. Lolita teria que esperar mais um dia para que eu voltasse a me ocupar dela.

A lembrança dessa cena permaneceu adormecida, num canto da gaveta de memórias, e foi despertada apenas agora pelas palavras de Martyn. Já haviam se passado dez anos da cena.

– Foi a estatueta e não uma queda do banquinho numa travessura na cozinha, Terry. E por trás da estatueta estava Anna.

Pedi que explicasse melhor.

– Foi Anna, Terry. Foi apenas mais um acesso de fúria contra mim. Durante anos eu havia me acostumado às suas agressões, e colocava na conta da vida estressante que ela tinha na Bolsa de Valores. Aquele dia havia sido especialmente ruim para ela. Perdeu dinheiro e clientes. Estava frustrada. Eu fui pegar pratos para a gente jantar e um deles escorregou da minha mão e caiu. Era um prato que havia ganhado de sua mãe no enxoval do nosso casamento. Aquilo a enfureceu. Passou a gritar como se fosse a maior tragédia da sua vida. Quando tentei acalmá-la passou a mão na estatueta que estava na sala e a jogou contra o meu rosto. Sabe aquela meia face pedindo silêncio? Essa mesma. Tive tempo apenas de me defender com a mão. Ela se assustou com o som do objeto batendo contra o meu braço, mas mesmo assim nada disse e se trancou no quarto. Fiquei mais de uma hora sentado na sala esperando a dor passar, e só então resolvi ligar para você. Eu até pretendia lhe contar, mas não queria que você me julgasse e muito menos que tivesse sentimentos contra Anna. Bem sei o quanto você gostava dela e não desejava que esse acidente se tornasse uma barreira entre vocês.

Eu apenas escutava e não me atrevia a dizer nada. Martyn continuou.

– Essa não foi a primeira e nem a última agressão que sofri. Sequer foi a mais dolorosa. As violências morais eram muito piores e muito mais cruéis. Eu tinha vergonha daquele comportamento dela mas, como uma boa vítima, acreditava que eu tinha culpa, que deveria ganhar mais, não quebrar coisas, ser mais impositivo no trabalho ou ser mais romântico. Sei lá… a gente não sabe exatamente o que nos falta, mas acredita carregar essa culpa, pelo menos em parte.

Martyn continuava seu relato e eu não ousava interrompê-lo.

– As violências eram diárias e eu não sabia o que fazer. As brigas continuaram até eu descobrir do caso que ela teve com Peter. Essa foi a gota d’água, e foi quando eu fui até sua casa e pedi para dormir lá por uma noite. Na semana seguinte nos separamos.

– Sim, lembro bem que você anunciou o fim do casamento e me pediu para não insistir ou tentar contemporizar. Percebi que algo de muito sério havia ocorrido e resolvi oferecer apenas a minha mão para ajudar.

– Esta foi a derradeira violência, mas as brigas foram um problema que perdurou a exata extensão do nosso casamento. Depois disso nos separamos, eu casei de novo e nunca mais a vi. Queria lhe dizer mais uma vez obrigado pela sua compreensão, por não ter insistido com perguntas quando eu não tinha condições para responder. Obrigado por ter ficado em silêncio ao meu lado; significou muito para mim. Eu nunca falei disso para ninguém, e por razões óbvias. Um homem apanhar em casa é algo vergonhoso em uma cultura machista. Nunca falei para ninguém desses fatos, e jamais ameacei Anna com essa verdade, mesmo quando ela tentou me tomar um dinheiro indevido em nossa separação. A minha vergonha era tanta que nenhum dinheiro pagaria isso.

Eu continuava a olhar para Martyn para entender o significado dessa confissão. Não acredito em casos de violência e abuso onde não exista a participação de ambos na construção do enlace doentio, e no caso de Martyn não poderia ser diferente. Mas por certo que ele era a parte frágil do casal, o espírito mais dócil e submisso. No seu caso ficou bem claro como a questão física – aparte de ser importante – não é o único determinante para os casos de violência, inclusive física. Agora, depois da separação de Martyn e Anna (por quem eu até nutria amizade e afeto), ficou bem mais clara a verdadeira imagem de Anna. Em minha mente ela era uma perversa de funcionamento neurótico, com um longo histórico de perversão e abandono na família. Afastada de ambos os pais foi criada pela avó, que também recebeu seu quinhão de maus trator por parte dela. O que ela fez com Martyn durante os anos em que estiveram casados teve características de pura crueldade. Até hoje, sempre que penso em Anna, imediatamente me vem à mente a personagem de Juliette Binoche que contracena com Jeremy Irons no filme “Perdas e Danos”. Um filme brilhante e sombrio, que eu sempre lembro, mas não consigo rever. As histórias de mulheres agressoras não são muito exploradas em um mundo infestado de machismo, e numa cultura violentamente patriarcal a escuridão que emana da agressividade masculina eclipsa a sombra da violência feminina.

Martyn recebeu as garrafas da mão do garçom que imediatamente as abriu. Serviu meu copo e saboreou um pouco da cerveja, enquanto olhava para a rua cinzenta que aos poucos perdia os últimos raios de sol. Violências domésticas com “sinal trocado” é um tema que eu tenho contato há muitos anos por causa de alguns textos que li e por inúmeras histórias de consultório. No ambiente feminino em que circulei durante décadas o tema é tabu. Falar de “misandria” é como falar de “racismo reverso”; quando eu tocava no assunto a reação variava do escárnio à fúria, em especial perto de colegas feministas. Entretanto foram tantos os casos de abuso contra homens que eu acabei por me interessar pelo tema. Apesar de ser um assunto que me atrai reconheço que no contexto em que vivemos este será por séculos um assunto “marginal”, mas não menos doloroso.

Toquei no ombro de Martyn e disse com meus olhos o que ele já sabia: “Conte comigo sempre, parceiro. É para isso que servem os amigos”.

William F. Prescott, “So down there I can’t even see” (Tão lá em baixo que nem consigo ver), ed. Panacea, pág. 135

William Francis Prescott é um escritor, ensaísta, jornalista e produtor teatral americano nascido em Westbrook no Maine em 1965. Filho de um pastor protestante e uma enfermeira ele começou a escrever desde muito cedo para os jornais da escola. Em 1983 foi estudar na University of Maine em Augusta, onde cursou jornalismo. Logo depois da graduação casou-se com Lorraine Madison, e mudaram-se em 1995 para Nova York para trabalhar na Revista New Yorker como assessor de Roger Angell, quando então começou a se dedicar à reportagem esportiva, especialmente o Baseball. Pelos contatos na revista tornou-se amigo de Woody Allen, uma amizade que perdura até hoje. Escreveu seu primeiro livro de ficção, “Até que horas posso ficar?” em 1998 que logo se tornou um sucesso de público e de crítica, para posteriormente fazer carreira na Broadway, tendo sido estrelado por Patrick Wilson no papel do coronel Samuel Bakerston. Seu segundo livro, também uma comédia dramática, foi “Azul não lhe cai bem”, onde narra as desventuras de uma vedete do teatro de revista que se envolve com um cirurgião plástico apenas para conseguir uma cirurgia de mamas por preços módicos, mas percebe que seu namorado é um traficante de drogas cuja clínica médica é apenas uma fachada. Seu terceiro livro foi “Tão lá em baixo que nem consigo ver”, que é seu único livro de contos, recolhidos de histórias verídicas que colheu enquanto jornalista no New Yorker. Mora em Washington com sua esposa Lorraine e os filhos Jeremia e Alicia

Deixe um comentário

Arquivado em Citações, Contos

Sexismo

Alguns ataques pelas redes sociais a personagens ligados ao movimento do parto humanizado se referem a um velho ranço da turma da humanização do nascimento com a presença de homens nas suas fileiras. Essa mescla contemporânea de humanização + feminismo abriu as portas para esse tipo de rejeição. Sofri isso de forma velada desde o primeiro post que publiquei na Internet há mais de 20 anos, e vejo isso até hoje (o que me garantiu o recorde mundial de blocks: mais de mil). Evidentemente que eu não posso dizer que tal circunstância é “culpa” do feminismo, assim como as cruzadas não foram culpa do cristianismo – muito menos do próprio Cristo. Entretanto, o uso inadequado do feminismo como projeto de silenciamento do masculino – em todos os níveis – é o parefeito de um projeto que, por sua origem, deveria promover a escuta de todas as vozes, sobrepujando em definitivo as barreiras de gênero.

A rejeição aos homens no debate sobre o nascimento sempre foi um fato muito evidente para mim, expressando-se através de uma constante desautorização e pelo desmerecimento de falas. Essa questão deveria ser abertamente debatida, se é que o movimento de humanização se deseja plural e aberto, e não um mero braço do movimento feminista mais radical.

Se é verdade que os homens estão alijados de falar DE parto, pois que anatomicamente estão impedidos a isso, (e aqui não vou tratar da questão trans), nada os impede de falar SOBRE o parto e por cima de suas experiências profissionais e/ou pessoais com o evento. Calar a voz de especialistas em parto como se sua masculinidade fosse um defeito é um ato criminoso.

Acho também que essa é uma questão menor, por certo, mas que vejo como importante de ser tratada nesse ambiente restrito. O mais importante no atual momento é o estrelismo, que mais uma vez nos acomete. A exaltação de egos, dos Messias da ciência, de salvadores e de “mensageiros da verdade científica” está produzindo uma autofagia absolutamente inútil e desnecessária. Ao invés de reconhecermos a nossa fragilidade diante de uma pandemia sobre a qual MUITO POUCO OU QUASE NADA sabemos ficamos destruindo reputações on line, atacando colegas e mandando “indiretas” como adolescentes.

Sei que essa minha opinião não é compartilhada por muitas pessoas, e boa parte chamará esse desabafo de “mimimi“, curiosamente a mesma expressão usada secularmente para as ilustrar queixas justas das mulheres a respeito dos abusos sobre elas cometidos. Não esqueçam que os ataques misóginos contra a presidenta Dilma foram tratados com o mesmo desdém, chamados de puro chororô de perdedor. Entretanto, também é importante olhar com os olhos dos milhares de homens que trabalham com o parto, de enfermeiros, obstetras, parteiros e pediatras que gostariam de participar desse debate, mas que são afastados dele pelos constantes ataques – por vezes sutis, muitas vezes indiretos – mas que na emergência de crises como a de agora se tornam explícitos, duros, incoercíveis e até cruéis.

Paz…

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Parto